Capuz Vermelho #21: "Último desafio"


CAPÍTULO 21: ÚLTIMO DESAFIO

O corredor se estendia por mais cinco quilômetros. Contudo, Rosie, já demonstrando indícios claros de exaustão, enxergava a porta cada vez mais distante. O Guia, por outro lado, emanava a costumeira calma inabalável enquanto flutuava no mesmo ritmo em que chegou. As chamas das tochas pareciam querer se apagar, mas ainda assim iluminavam o local aceitavelmente, cintilando aquelas duas figuras distintas que percorriam. "Não consigo aguentar um segundo a mais de aguardo.", pensou o Guia, reprimindo uma certa ansiedade. "Eu só preciso que ela ponha o talismã no devido lugar e assim eu revelo o desafio. Não deve demorar mais do que dois ou três minutos. Será rápido. Eu serei rápido."

"É óbvio que ele está me escondendo algo. Se não fosse o caso, estaria eufórico e ansioso. Minhas memórias, meu futuro, minha vida, tudo está em jogo!", pensou Rosie, segurando-se para não por aquele ser magérrimo contra a parede e lhe exigir de uma vez por todas as explicações acerca do mistério. "Tudo isso não passa de um jogo pra ele. É! Ele acredita que eu ingenuamente ponha o talismã em algum local de encaixe e, depois, em um passe de mágica, Abamanu surge na minha frente e me mata para em seguida espalhar morte e destruição por onde quer que passe. Eu não vou cair nessa!"

Por fim, aproximaram-se da grande porta dupla de madeira polida. Telecineticamente, o Guia retirou as correntes com o cadeado, destrancando-a. A porta abrira-se com um leve rangido e de um modo como se recebesse convidados de honra. Entraram devagar. Rosie percorria os olhos pela arquitetura rústica do local. Paredes com tijolos meio alaranjados, muito bem quadriculados, o teto bastante alto e abobadado, sustentado por colunas quadradas de pedra e alguns nichos onde jaziam estátuas incognoscíveis. Uma delas, observadas com estranheza pela jovem, tinha um aspecto um tanto sinistro, aparentando ser uma múmia ou demônio de olhos vermelhos com a boca aberta. Rosie assentiu com um "não" rapidamente, ignorando a estátua - se é que de fato era uma.

Com um estrondo, as portas duplas fecharam-se, graças a telecinesia do Guia. Já se viam no centro da enorme sala. Ao longe havia um largo corredor, cujo fim abrigava duas portas separadas que levavam para diferentes lugares. Rosie fixou seus olhos naquelas portas, imaginando que o desafio consistiria na escolha de uma delas. Logo abandonou tal pensamento, assumindo que seria fácil demais para um último desafio. "Não, com certeza não.", pensou, ainda fitando o corredor.

- O que significa isso? - perguntou ela, olhando ao redor. - Não há nada aqui.

- Olhe para trás. - o Guia apontou, meio distante de Rosie.

A jovem voltara-se para uma espécie de mesa redonda de pedra de tamanho médio. Voltou-se para o Guia.

- Sim. Eu já vi. Agora me fale o porque. - disse, exigente.

- Você está com o talismã? - perguntou o Guia, com ar misterioso.

Rosie, guiada pela sensação de pressa que a pergunta lhe oferecera, procurou em seu cinto ou algum bolsos de sua calça rubra apertadíssima pelo objeto. Nada. O encarou friamente.

- Aonde está?

O Guia, exalando uma aura canalha, mostrou o talismã, pois sua mão estava escondida nas costas. Rosie engoliu em seco e esperou por algo que o incriminasse de vez.

- Muito bem... - de repente, erguera a mão e, em um impulso, jogara o objeto no chão fazendo separa novamente as cinco partes.

Rosie observou o ato atônita.

- Mas... o que você fez?! - seu tom de voz ecoou pelo recinto.

- Ora, não pense que estou tentando pôr tudo a perder. - afirmou ele. - Venha até aqui e recolha estas peças.

"Agora essa! Vai ficar enrolando até fazer esgotar minha paciência.", pensou Rosie, reclamando. Obediente, embora extremamente desconfiada, a jovem dirigiu-se até as peças caídas no chão. Andou sem sequer olhar para o Guia, apenas focando nas peças. Pegou-as e enveredou até a mesa redonda de pedra, carregando-as como um pequeno animal desfalecido.

- Agora ponha as quatro partes em cada extremidade do círculo, sendo a quinta na parte central. - ordenou o Guia.

O fazendo, Rosie foi percebendo a maneira como aquele ser decadente ia tentando conduzir as coisas de um modo menos apressado, realmente escondendo sua euforia para o "grande momento".

"Então é isso. Se o último desafio for mesmo na cidade da verdade, então significa que talvez eu recupere minhas memórias quando Abamanu finalmente despertar e condenar a humanidade.", pensou Rosie, mergulhando em um profundo mar de incertezas. Pensou no Relojoeiro e em suas palavras. Sentia uma imensa falta daquele senhor de idade enigmático, embora muito gentil.

As quatro peças do talismã uniram-se em um estranho magnetismo, aparentemente sendo atraídas pela peça central. O artefato estava, novamente, intacto. O preteado do objeto reluziu sobrenaturalmente em um brilho rápido e fugaz, bem como seus detalhes dourados e a safira vermelha no centro. Rosie, mantendo-se alerta, voltou-se para o Guia.

- Bem, terminei. Melhor irmos logo. - disse ela, logo olhando o corredor e as duas portas.

O Guia inclinou a cabeça para um lado, demonstrando-se desentendido.

- Mas é claro que não. O quinto e último desafio será aqui mesmo. - disse, categórico.

Rosie franzira o cenho.

- Como assim? Não tem nada aqui, nada que sirva para me testar! Sei que está escondendo algo, portanto me fale logo de uma vez! - disse ela, elevando o tom de voz. - Havia dito que iríamos até a cidade da verdade e que lá ocorreria o próximo desafio.

- As portas, no presente momento, estão trancadas. - disse o Guia. - Não iremos a lugar algum. Ou pelo menos você não vai.

Rosie sentiu uma vibrante energia operando por trás. Virou-se de repente e deparou-se com o talismã tremendo sobre a "mesa" de pedra, como se estivesse a ponto de se partir novamente. A princípio, esta era a primeira impressão. A jovem olhou confusa para o artefato. "Mas o que é isso?"

De súbito, um raio amarelo desceu do teto caindo sobre o bloco pedregoso. Rosie afastara-se, assustada. Rapidamente, o raio pareceu sugar o talismã, logo em seguida voltando para o ponto de onde veio, levando o objeto.

Rosie virou-se para o Guia, estupefata.

- Eu vou perguntar de novo: O que significa isso? - sua expressão estava em um misto de assombro com fúria. - Para onde o talismã foi levado? Você fez isso?

- Não. - respondeu o Guia, seca e calmamente. - Esta pedra foi criada para transportar materiais de alto valor pertencentes a seres de maior grandeza e poder. Qualquer peça, qualquer artefato que se coloque sobre ela, será levado diretamente a seu proprietário. Neste caso, o talismã já deve se encontrar nas mãos de meu Lorde Abamanu.

- E daí? - perguntou ela, arqueando uma sobrancelha.

- E daí que, como eu havia lhe dito no princípio de nossa jornada, com este fenômeno que acabara de presenciar, o talismã garantirá o retorno dele juntamente com suas tropas.

- E como ficam minhas memórias? - vociferou ela contra o Guia. - Havia prometido que eu iria recupera-las quando tudo isso chegasse ao fim! Por que está parecendo que você abandonou seu propósito?!

Curiosamente, o Guia dera uma risada abafada.

- Mas eu não o abandonei. Eu cumpri boa parte de minha missão.

- Ainda não! - exclamou Rosie. - Falta solicitar à Abamanu que devolva minhas lembranças! Eu exijo isso!

- Você, a partir de agora, não exige mais nada, Rosie. - disse o Guia, imóvel, porém frio. - Suas memórias não foram totalmente perdidas. Você entende a minha língua e sabe fala-la fluentemente. Sabe de conhecimentos básicos como o dia e a noite, a natureza humana com um todo, palavras com diferentes significados, o que é o sol, a lua, a vida, a morte, etc. Mas garanto a você que não nasceu sabendo.

- Claro que não. - disse ela, encarando-o com os braços cruzados, o olhar dilacerante. - Eu tive uma vida e eu quero ela de volta. Sei que Abamanu apenas retirou minhas lembranças de fatos que aconteceram pouco depois de eu nascer até o dia em que fui transportada para aquela floresta. Se quer mesmo terminar logo isso, então me mostre o próximo desafio.

- Está diante dele. - disse o Guia, movendo levemente os braços esqueléticos.

- Você!? - Rosie franziu o cenho novamente e segurou uma risada. - Está brincando, não é?

- Rosie, eu mal consigo aquietar minhas sensações mais intensas. Quero dar um fim nisso tanto quanto você. Mas abrirei o jogo com você: Suas memórias não serão lhe devolvidas se caso morrer neste desafio.

Rosie sentira um latejo na cabeça, algo que parecera prenunciar uma sensação de mal presságio. Confiou ao Relojoeiro sua determinação de ir até o fim naquela tortuosa estrada, repleta de enigmas, mistérios e provações mortíferas Sua expressão furiosa convertera-se em ligeiro temor. Fugir jamais havia sido encarado como uma opção. Afinal, quais caminhos devia-se tomar a fim de escapar daquele engenhoso estratagema? Decerto, o Guia conseguira coloca-la em um terrível beco sem saída. "O desafio é ele? Mas como?", pensou Rosie, irritando-se pelas crescentes dúvidas. "Será que..."

- Hum. - disse ela, rindo baixinho, os olhos fechados. - Mais um enigma, não é?

O Guia riu novamente, só que desta vez o tom adquirindo um escárnio aterrador.

- Esta enganada... de novo. - pousou seus magros pés no chão, para o espanto da jovem. - Não havia prestado atenção no que eu disse? Você pode morrer a qualquer momento.

- Ah, agora finalmente resolveu querer andar. - disse Rosie, fortemente intrigada.

- Estamos no caminho da verdade, então, nada mais justo do que mostra-la a você agora. - disse o Guia, cerrando os punhos.

Um tremor leve foi sentido por Rosie. Obviamente, o epicentro estava abaixo do Guia, como pôde facilmente constatar. A jovem mal piscara observando aquele ser esquelético e cheio de cicatrizes na face sem rosto ganhar uma postura de imponência e agressividade. O tremor elevara-se abruptamente. Ma sentiu sua boca abrir-se lentamente e seus olhos arregalarem-se. "Eu não consigo respirar bem. Que energia, que poder!", pensou ela. No corpo do Guia cresciam protuberâncias que, em frações de segundos, iam se unificando, deixando crescer à medida que moldavam um físico musculoso. Rosie sentiu uma náusea ao testemunhar uma verdadeira montanha viva erguer-se. Aquele finíssimos braços deram lugar a fortes e bem enrijecidos músculos. As pernas fraquíssimas converteram-se em pesados membros que quase afundaram o chão, rachando-o. O corpo todo ganhara robustidade máxima no exato tempo em que um olho humano pisca.

A cabeça, entretanto, permanecia com o mesmo tamanho. Rosie estava paralisada, boquiaberta e trêmula. O Guia batera com os dois pés, um em cada vez, no chão, levantando nuvens de poeira, tal como um pesadíssimo lutador de sumô. A jovem parecia estar com o corpo comprimido pela massante energia liberada pela criatura durante sua transformação. Como se não bastasse o show de horrores, o Guia deixou saírem dois braços de mesmo tamanho nas laterais do corpo onde estavam os rins.

Rosie rangeu os dentes, fazendo força para reaver sua mobilidade. Para deixa-la mais impotente e em desvantagem, o Guia, já satisfeito por ter externado sua real natureza, endureceu os quatro músculos dos braços diante dela, na intenção de exibir todo o poder que neles continha. Uma força arrasadora se criou durante o ato, atingindo Rosie através de uma rajada de vento, poderosa o suficiente para fazer rachar ainda mais o chão. A jovem, ainda imobilizada, não teve como se proteger da enorme demonstração de força do inimigo. Seus cabelos e sua capa esvoaçavam com a força da corrente de vento.

- Ah, seu maldito!! - exclamou ela, semi-cerrando os olhos, furiosa.

- Testemunhe, Rosie! - a voz do Guia estava mais grave e distorcida. - Cumprirei a última parte de minha missão com o orgulho que meu Lorde me fez acreditar ter!

Usou os pesados braços para "lançar" o ar contra todos os lados da sala, o que fez com que Rosie fosse violentamente jogada para trás e batesse as costas em uma parede, além de que danificou as estruturas das colunas de pedra. Rosie tentava se levantar e se reorientar, o capuz quase tomando a sua visão.

O Guia erguera um pouco mais a coluna, mirando a jovem caída. Sua cabeça tomara um aspecto mais másculo, mantendo as cicatrizes. Finalmente andara em direção à ela, os passos deixando rastros de destruição no chão de pedra.

- Serei franco com você: No fundo, vi que tínhamos uma certa conexão. Pode-se dizer que estabelecemos uma relação de amizade, apesar das divergências. - disse ele, caminhando. - Mas não posso deixar que viva para destruir os planos de meu Lorde. Ele, assim como você, possui sonhos. - fez uma pausa, cerrando os punhos. - Só que os sonhos dele são mais preciosos. E não será uma mera humana que impedirá as concretizações deles!

                                                                                   ***

Uma grossa e nervosa mão batera temerariamente em uma porta de uma casa misteriosa. Na abertura pequena e retangular na porta viu-se um par de olhos vermelhos e irritados, vislumbrando a visita, cuja forma assemelhava-se a um gigante lutador de boxe ou segurança carrancudo.

O homem virou-se, tirando os olhos da abertura, para seu chefe.

- É ele, senhor.

- Mande-o entrar. - disse uma voz soturna.

A maçaneta girara, a trança da porta sendo retirada. A porta fora sendo aberta aos poucos. Curiosamente, o homem engatilhava um revólver calibre 42, olhando com certa desconfiança para o visitante em uma análise de cima à baixo a fim de certificar-se se de fato era o sujeito.

O indivíduo em questão era Rufus, segurando seu chapéu com as duas mãos trêmulas. Sua careca reluzia com os raios solares daquele início de manhã. O olhar do homem era incerto e solitário.

- Vai, entra. - disse o subordinado, rispidamente, abrindo-lhe passagem.

Rufus entrara, a robustez de seu corpo quase tomando toda a entrada durante a recepção. Fixara seus olhos exatamente no ponto certo: O jovem homem sentado na cadeira em uma mesa de madeira, quase escondido pela escuridão. Não havia quase nenhuma luz na casa - exceto pelos feixes de luz solar que vinham do teto -, as janelas estavam todas fechadas, com tábuas pequenas pregadas nelas. Um único facho de luz do sol que banhava a entrada da casa fora desfeito quando a porta fechou-se.

- Olá, senhor Rufus. Seja bem-vindo. - disse o homem, que usava uma túnica vermelha com capuz. - Quais são as novidades que tem para mim hoje? - ele se levantara... revelando sua face.

Michael. Emergindo daquela residual escuridão como um fantasma que acabara de sair de seu túmulo. Seu sorriso parecia leve, mas escondia um ar maléfico que só alguém muito desconfiado conseguiria enxergar sem problemas. Sua barba estava mais crescida e seus castanhos cabelos, como sempre, bem penteados e partidos à direita. Dirigiu-se à Rufus.

- Bem... eu... - o assistente de Alexia tentava encontrar as palavras para pedir aquilo. - Com todo o respeito, mas eu tenho percebido que o senhor não tem sido muito claro com suas... declarações.

Michael franziu as sobrancelhas, confuso.

- Como assim, senhor Rufus? Se trata-se da profetisa, eu posso...

- Sim, é isso aí mesmo! - interrompeu ele, apressado. - Por favor, não quero que, por nada nesse mundo, Alexia corra perigo.

- Por acaso desconfia que estejamos pensando em mata-la? - indagou Michael, na tentativa obter uma reação que denunciasse a desconfiança de Rufus diante da aliança que firmou.

Rufus assentiu com um "não" rapidamente, o olhar desesperado.

- Não, claro que não, senhor. - o suor já escorria ela sua grande testa. - Eu apenas quero me certificar de que ela vai ficar segura... nas suas mãos.

- A segurança dela não depende de mim e tampouco é de nossa responsabilidade. - respondeu Michael, friamente. - O que veio me trazer?

Rufus logo tirara do bolso de seu casaco marrom um papel amassado. Entregara-o para Michael, que não demorou para perceber que a mão de seu aliado tremia. Antes de pega-lo, olhou para ele.

- O senhor está bem, senhor Rufus?

Ele assentiu com um sorriso forçado.

- Nunca estive melhor. - mostrara, forçadamente, seus dentes meio amarelados surgindo abaixo de seu bigode. - Este é o endereço que consegui da casa de Charlie. Na última vez que liguei pra lá, Alexia foi quem me atendeu. Disse que a visitaria para matar as saudades hoje mesmo... mas acho que devido à pressa talvez ela não tenha se lembrado e...

- Isso é inútil. - disse Michael, amassando o papel em uma bolinha. Rufus ficara desconcertado.

- Mas... senhor, foi o que me disse para fazer. Consegui tudo de que precisa ao ligar pra lá...

- Acabei de idealizar um novo plano. - disse ele, andando para um lado. - O que não inclui compartilhamento de informações. Em outras palavras, o senhor é a única pessoa com a qual não devo partilhar deste plano. O senhor compreende?

- Sim... perfeitamente. "Droga! Agora não sei como proceder! Se continuo agindo como um cão com o rabo entre as pernas ou pergunto à ele tudo que está me atormentando! Esse plano envolve Alexia? É só o que quero saber!", pensou ele, hesitante em relação a como Michael pode reagir com a pergunta. Rufus já considerara a possibilidade do jovem Grão-Mestre dos Red Wolfs acabar suspeitando de uma suposta traição. Arrepiava-se só de imaginar nas implicações que isto teria.

- Não se preocupe. A profetisa ficará em perfeita segurança. - garantiu Michael, fitando um canto da sala. - No entanto... eu ainda preciso totalizar minha confiança no seu sigilo.

Rufus o olhou com estranheza.

- De que forma, exatamente?

- Seja honesto comigo, senhor Rufus. E serei bem claro. - Michael se virara para ele com uma expressão austera. - O senhor está ou não nos traindo?

O homem engoliu a saliva subitamente. Aquela pergunta dilacerou todas as suas esperanças. Tentara de todos os modos ocultar seu medo, mas parecia que a cada vez que Michael proferia uma frase seu coração disparava a mil e seu desespero tornando-se mais evidente. O filho do ex-mestre de Cerimônias Bernard Von Trask herdara a mesma aura ameaçadora do pai, capaz de fazer um corajoso e rude homem se transformar em algo similar a um animal assustado e submisso.

- Havia dito que compreendia o fato de eu me importar com aqueles jovens amigos... como se fossem meus filhos. - disse ele, esperando qualquer tipo de resposta. - Portanto, senhor, por outro lado, eu prezo pelos suas intenções, sei que quer mais do que tudo que Abamanu torne este mundo um lugar melhor, afinal é isso que vocês esperam e por isso o louvam. - fez uma pausa, tentando saber medir as palavras. - Sei também que pensou que eu poderia estar dividido. E eu realmente fiquei.

- E depois aceitou minha rica proposta. - disse Michael, remoendo o dia em que oferecera à Rufus uma quantia de mais de 20 milhões de euros em troca de informações importantes recolhidas que favorecessem a causa dos Red Wolfs. - Não fico surpreso. Afinal, é um pai de família, merece isso e talvez até mais. O motivo pelo qual eu não paguei os meus contratados foi porque eu pensei unicamente no senhor. Na sua servidão mais do que conveniente.

Rufus achara a oportunidade para desviar o assunto.

- E como vão os seus subordinados? - perguntou depressa.

- Estão confinados no local mais secreto já encontrado por nós. - disse Michael, voltando a ficar diante de Rufus. - Eu me recusei a paga-los pois o que tínhamos era suficiente para investirmos em um carregamento de armas que adquirimos ontem.

- Mas irão trabalhar de graça? - indagou Rufus, incrédulo.

- Eu não ia desperdiçar uma oportunidade pagando-os com o dinheiro que eu usaria para adquirir o arsenal. As armas são a recompensa deles. - disse, em um tom frio e malévolo.

Rufus ficou revoltado por dentro, tamanho era o desdém daquele homem em relação aos assassinos profissionais que contratara para aumentar o exército.

- Preciso que contacte novamente a profetisa. Sabe se eles já foram para a tal viagem?

- Bem... Alexia me disse que, provavelmente, sairão as sete, mas...

Rufus foi interrompido quando Michael deu uma olhada abrupta para o relógio de parede. Marcava 08:10. Voltou-se para Rufus, o olhar intrigado.

- São oito e dez! Se estiver certo, é óbvio que já devem ter ido. O senhor tem mesmo certeza? - encarou-o com autoridade quase que abusiva.

- Era provável que seria neste horário, Alexia não foi muito clara.

"Não muito foi clara, é?", pensou Michael, a desconfiança aumentando como a febre em um corpo. "Não preciso perguntar se está mentindo, por que realmente está!".

- Então porque não pediu mais informações? Deixou que ela fosse tão vaga assim!?

- Ela parecia apressada. - inventou Rufus, nervoso ao extremo. - Eu posso garantir que seria hoje, mas talvez a decisão do horário não cabia à ela. Talvez ainda estejam lá.

- Então é bom que confirme isso e me traga boas notícias. Está dispensado. - disse Michael, virando-se e andando em direção à sua mesa. - Apenas saiba que hoje é um grande dia. Vou estar mobilizando minhas quatro tropas hoje à noite com um método bem especial. - tirara de uma gaveta um grosso e empoeirado livro.

Rufus reconhecera, atônito, o exemplar. "O quê!? Goétia!? Alexia já me falou uma vez deste livro. O que ele vai fazer na noite de hoje? Libertar demônios?", pensou ele, lembrando-se logo de outra funcionalidade do livro: Constar rituais mágicos para fuga, ataque e defesa.

- Ainda está aí!? - perguntou Michael, sem olhar para ele.

Um suspiro pesaroso foi tudo o que o grandalhão pôde fazer antes de deixar o recinto. Curvou-se em uma reverência e virou-se para se dirigir à porta. O homem que o deixara entrar havia desaparecido, mas a porta não estava trancada. Temia que algo assim ocorresse no caso das suspeitas de Michael se confirmarem. Certamente uma ação imprevisível por parte do Grão-Mestre obcecado ocorreria caso Rufus desse sinais ainda mais claros de sua traição. Fechara a porta com cuidado e saiu a passos apressados.

"Só espero que Charlie e os outros ainda estejam lá.", pensou ele, ajeitando firmemente seu casaco e intencionando ir a procura de um telefone. Estava a centenas de quilômetros de Kéup. "Eles devem saber o quanto antes!".

Na casa, Michael olhava por uma fresta na janela, observando o corpulento homem sumir floresta adentro. Sabia exatamente o que fazer em seguida e não fazia muito o seu estilo. Mas era necessário se quisesse confirmar algo.

Ligou para um de seus irmãos de fraternidade.

- Alô? Dwayne, é você?

- Sim, o que é?

- Agora há pouco o nosso estimado aliado, Rufus, me fez uma primeira visita. A primeira e a última. - falou em um tom mecânico e frio. - Como ele possui relações com nossos inimigos, suspeito que ele esteja nos traindo, repassando as informações sobre nós à eles.

- Eu havia avisado à você sobre os riscos. - alertou Dwayne. - O que quer que eu faça?

- Liberte um deles. - ordenou, a fala rápida como uma bala. - Conte o que está acontecendo, dê uma descrição de Rufus e faça com que nosso homem se disfarce de um cidadão comum, quando na verdade irá se passar por um "detetive". Quero que ele siga os passos de Rufus.

- Está bem, armarei tudo imediatamente. Tem sorte de eu estar de folga hoje. Sabe para onde ele foi?

- Se sei!? - Michael deu uma risada rápida e zombeteira. - É óbvio que ele irá para alguma cabine telefônica no centro da cidade para avisar aos seus amigos sobre nossos planos.

- E pelo que parece você tem plena certeza disso. - disse Dwayne, esperando que Michael sentisse o peso do arrependimento. - Talvez já tenha nos entregado.

- Não se preocupe. - assegurou ele. - Ele não é tão esperto. Os músculos e o cérebro parecem não ter o mesmo peso, se é que me entende. Agora vá, agilize. Caso ele venha a demonstrar desconfiança e tentar algo, oriente nosso homem a não hesitar em atirar.

- Tudo bem... - disse Dwayne, meio incerto da decisão do parceiro.

Enquanto colocava o fone de volta no gancho, Michael sorrira, como se cantasse vitória internamente. Por outro lado, ele verdadeiramente sentia-se arrependido da contratação de Rufus para exercer o difícil papel de informante. Apenas dois elementos fortaleciam as suspeitas: O fato de Rufus demonstrar indecisão e medo, parecendo estar dividido, sem saber de qual lado ficar. E sua preocupação incessante com a segurança de Alexia, que era tomada como alvo principal dos Red Wolfs, julgando-a como uma peça fundamental e indispensável para o retorno de Abamanu.

"O reinado absoluto de nosso deus finalmente terá sua retomada triunfal hoje mesmo. Esta noite... a lua irá brilhar de um jeito nunca antes visto!", pensou ele, radiante ao imaginar cada fragmento do momento perfeito.

A vários quilômetros dali, Dwayne Nevill fora bem claro em suas ordens finais:

-  Você deverá ficar ao lado da cabine enquanto ele está lá dentro, fingindo aguarda-lo sair, apressado querendo fazer uma ligação. Se confirmar que ele está mesmo nos traindo, espere até que ele saia e nos ligue. Mas isto somente se caso ele não parecer desconfiado.

O contratado assentiu mecanicamente e saiu pela porta da frente. O esconderijo ficava a alguns metros abaixo daquela escura casa feita de pedra, o local onde ocorrera as angustiantes sessões de iniciações, similarmente como uma gruta. Dwayne o observara por uma brecha na porta para ver se estava indo na direção informada. Seu cabelo loiro partido à esquerda era um item muito indiscreto e certamente chamaria a atenção de alguém com observação apurada. O homem andava a passos rigorosos pelo caminho passando pelo vilarejo vizinho àquela casa. Usava um sobretudo que servia como ótimo agasalho para dias frios, além de um chapéu marrom. Suas botas de couro preto deixavam pegadas no solo arejado.

Desaparecera entre as casas e árvores.

                                                                              ***

Rufus já se encontrava no centro de Croyton, enfurnado em uma cabine telefônica, seus grossos dedos discando o número da casa de Charlie, o qual tivera trabalho para memorizar nos dias que se seguiram. A mão com a qual pegava o fone suava constantemente e ele não parava de olhar um segundo sequer para os lados. Estava chamando, para o aumento de seu desespero.

- Alô? É o Charlie. - sua voz estava trêmula.

- Err... Olá. - respondeu a calma voz do outro lado. - Sim, sou eu. Quem está falando?

- Ahn... aqui é o Rufus. Charlie, onde está a Alexia e os outros? - perguntou, sem demora.

- Ah, senhor Rufus. Bem, infelizmente, não... Eles já foram para a missão, eu já os mandei para que fossem salvar Rosie. Algum problema?

- Todos, meu rapaz. - disse, com enorme pesar. - Quando eles voltarem preciso que repasse pra eles tudo o que vou dizer agora.

Houve uma pausa do outro lado. Charlie parecia estar refletindo sobre a situação na qual o homem se encontrava.

- Senhor Rufus, pode falar.

- Tudo bem... Antes de mais nada, quero que saiba que estive traindo a confiança de vocês... - o homem sentia um imenso aperto no coração. - Eu fiz pelo dinheiro, eu fui egoísta, ganancioso! Eu... trabalho para os Red Wolfs, estes homens cruéis que seguem esse tal monstro chamado Abamanu. São uns nojentos, escórias da humanidade! Eu prezo pela segurança de todos vocês, mas Alexia vem em primeiro lugar! Ela corre um enorme perigo, Charlie. Por favor, não me entenda mal, eu estou amargamente arrependido...

Mais uma pausa no outro lado da linha. Ao que parecia, Charlie estava perplexo e tentando processar as informações de modo que as mesmas fossem assumidas com verdadeiras. Segundos depois, percebeu a verdade dolorosa nas palavras do homem.

- Senhor Rufus, por favor, acalme-se. Eu entendo como está se sentindo... Apenas me conte o que realmente está acontecendo. Eu presumo que tenha agido como informante deles por um bom tempo, portanto deve saber mais do que é obrigado a dizer. Também posso entender que o senhor pode ter sido chantageado.

- Obrigado, Charlie. - gaguejou Rufus, agradecido. - Você entender o meu lado é reconfortante... mas eu não me conformo por Alexia ser alvo destes vermes. Eles estavam recrutando assassinos para formarem um exército, o qual ele chamava de "O Real Exército do Cavaleiro da Noite Eterna".

- Espera. Ele quem? - perguntou Charlie.

- É o filho do antigo Grão-Mestre. Ele se chama Michael. - respondeu Rufus, sem perceber uma sombria figura que se postava ao lado da cabine, paciente. - Além do que eu acabei de dizer, eles torturavam aqueles homens com... ferros de marcar, eu acho, um ritual de iniciação.

O homem o olhava discretamente, o chapéu quase ocultando a parte de seus olhos, com os braços cruzados e fingindo ver as horas em seu relógio de pulso. "Esse filho da mãe...", pensou. "Está cometendo o pior erro da sua vida.".

- Isso. Ruínas Cinzas. - confirmou Rufus. - É para lá que eles pretendem ir. Dizem que é lá o lugar onde Abamanu irá descer dos céus e firmar seu reinado aqui.

- Nós também planejamos ir para lá através dos meus métodos. - revelou Charlie. - Assim que conseguirmos salvar Rosie, vamos acertar os detalhes da viagem. O senhor tem mesmo certeza de que é hoje à noite?

- Absolutamente, Charlie. - assentiu freneticamente, o suor escorrendo pelo seu rosto em várias gotículas. - Se conseguirem chegar lá em segurança, é bom ficarem espertos: Compraram um carregamento de armas ontem e talvez Michael queira usar esse exército contra os inimigos... ou seja, vocês!

- Eu não tenho mais dúvidas, senhor Rufus. - Charlie afirmou, com firmeza. - Os Red Wolfs querem impedir que nós alcancemos proximidade com Mollock, já que queremos impedir que ele se torne o receptáculo de Abamanu.

- Sim, estou sabendo desse tal Mollock. - concordou Rufus, percebendo a presença do homem que esperava do lado de fora. - Alexia já havia me dito que Hector está lá para impedi-lo. Espero que ele esteja bem. - fez uma pausa, sentindo um estranho desconforto, uma fadiga mental acometer-lhe. - Acho que preciso de um descanso. Estou nervoso demais para falar com mais segurança... aliás, eu também não estou seguro.

- Eu imagino. Senhor Rufus, o ideal é que seja o mais cauteloso possível. Se suspeitarem, podem acusa-lo de traição e o ameaçarem de morte. Prometo que não contarei nada à Alexia e nem aos outros sobre sua filiação aos Red Wolfs. Seu segredo está seguro comigo.

- Por enquanto, meu jovem, por enquanto. - parecia querer debulhar-se em lágrimas ali mesmo, tamanho era sua aflição. - A verdade virá à tona, com certeza. Eles merecem saber...

Ambos fizeram uma longa pausa. O assassino disfarçado demonstrava impaciência pela sua postura. O sol da manhã já começara a esquentar suas vestes. Abruptamente, batera forte com a mão na cabine, claramente pedindo para entrar.

- Ei! Falta muito aí, amigo? - perguntou ele, tentando, ao máximo, parecer educado.

Rufus virou o rosto. Havia sobressaltado de susto pelas batidas. A princípio, desconfiou ligeiramente da silhueta do homem, avaliando-o dos pés à cabeça. Entreviu olhos fervorosos por debaixo do chapéu. Em um instante, sentiu uma pontada de tensão lhe invadir pela espinha até os pelos se arrepiarem. "Cacete!", praguejou mentalmente.

- Ahn... Charlie, acho que vou desligar... eu preciso ir.

- Espere, tenho uma dúvida. - disse Charlie, tentando mante-lo na linha. - De que modo os Red Wolfs planejam chegar às Ruínas Cinzas? Obviamente, se fosse por meio de transporte chegariam tarde demais.

- Aí é que está a parte interessante e bizarra. - Rufus agora falava quase aos sussurros. - Eles tem um livro chamado Goétia. Vão usar uma magia que talvez, sei lá, teletransportem eles para lá. É sinistro.

- Sim, eu entendo. Livros de bruxaria já foram comentados no meu tempo na Ordem. Confesso estar surpreso por terem recorrido à métodos tão obscuros.

O homem cruzara os braços, esperando. Parecia resmungar.

- Err... olha, Charlie, melhor eu ir agora. É sério. Há alguém aqui... - seus cochichos estavam quase inaudíveis.

- Alguém? - Charlie atentara-se.

- Sim... suspeito demais. - sua boca aproximou-se do fone, quase beijando-o.

- Então é melhor mesmo que saia daí, já. - aconselhou Charlie, preocupado. - Por favor, senhor Rufus, cuide-se e proteja-se. Chame a polícia se necessário ou carregue uma arma, qualquer coisa que use para se defender. É óbvio que o senhor foi perseguido. - disse o jovem físico, acertando em cheio.

Rufus assentiu, surpreso pela resposta.

- Tudo bem, até mais. - e desligara, sem esperar.

Saiu tranquilamente da cabine, inspirando um ar puro e fresco. Ajeitou seu casaco e o chapéu que cobria sua careca reluzente. Acenou para o homem, permitindo que o mesmo entrasse.

- Pode ir, senhor. Tá liberado. - disse, sorrindo forçadamente.

Entreviu um fulminante olhar no homem enquanto o mesmo entrava na cabine, mas ignorou a impressão. Enveredara-se por um caminho alternativo ao qual inicialmente usara para chegar à casa onde Michael estava, se misturando à multidão de cidadãos ingleses que iam e voltavam pelas ruas. O assassino rapidamente discou o número do Grão-Mestre, furioso.

Logo fora atendido.

- Alô? Senhor Michael? - sua voz era de um tom rouco e frio. - Tenho péssimas e boas notícias.

                                                                             ***

Charlie sentara-se em uma cadeira, dando um suspiro pesado, encostando-se um tanto cansado. Olhou para o nada, devaneando profundamente. A luz dol sol já ocupava boa parte de sua sala através das janelas abertas e uma poeira lenta e cintilante pairava no ar, hipnotizante. O mago do tempo permanecia aturdido com as revelações daquele homem aflito e alvejado pelas mãos cruéis de pessoas que gostariam de mira-los com canos de revolveres.

"Como um pai de família pode se sujeitar a uma proposta com fins maléficos?", pensou ele, ainda em dúvidas com relação ao triste fato. "Alexia ficará arrasada, com certeza. Mas ela deve ser mantida fora do campo de batalha. Os Red Wolfs possuem um interesse nela...". Os pensamentos do jovem iam se interconectando em uma velocidade sem limites. "Alexia é uma vidente... Robert Loub a procurou para resolver um caso de situação financeira na época em que era casado... Loub, na época, era um Red Wolf... Não seria necessário levar a esposa para uma vidente para resolver uma situação como essa... A profecia do retorno de Abamanu... obviamente escrita por um profeta com o dialeto dos deuses... a Bíblia de Abamanu foi traduzida por meu pai, logo os Red Wolfs, infiltrados, pegaram as traduções e as incorporaram no livro que escreveram... se Abamanu escolheu a Terra como ponto de partida... e se há um profeta particular dele, o seu escriba original... então...". Os olhos verdes do rapaz esbugalharam-se em um lampejo súbito.

Levantou-se quase pulando. Estava em um completo transe e mal conseguia pronunciar o que pensava em dizer. Seus lábios moveram-se trêmulos. "Aí está a razão pela qual os Red Wolfs estão alvejando Alexia!"

Finalmente pôde falar com todas as letras.

- Eu já devia imaginar, estava debaixo do meu nariz o tempo todo, apenas não tive tempo para pensar sobre isso. - fez uma pausa, socando de leve a palma de sua mão esquerda. - Alexia é a profetisa de Abamanu aqui na Terra.

                                                                               ***

- Já esperava que isso fosse acontecer. - disse Michael do outro lado da linha, a voz em um tom decepcionado. - Para qual direção ele foi?

- Não sei bem ao certo. Leste, talvez?

Um suspiro cansado foi ouvido. Michael sentia-se traído, internamente possesso de raiva. Transformara-se em uma bomba-relógio humana, capaz de explodir a qualquer momento e fazer vítimas fatais, e tal explosão teria ele como sobrevivente. Pensava em fazer mil coisas terríveis, mas somente poderia considerar uma. A cartada final. Eliminar obstáculos tornou-se a prioridade.

- Esse é o mal de contratar pessoas que mal sabem conceitos básicos de Geografia! - vociferou ele.

- Me desculpe, senhor. Faltei a aula chata da Rosa dos Ventos. - respondeu o assassino, com certo sarcasmo. - Como vamos proceder?

Um minuto de pausa.

- E você ainda tem dúvidas, senhor Trevor? - indagou Michael, irritado. - Presumo que ainda se lembra das implicações quando informações importantes sobre nós são vazadas. Eu o escolhi como líder de seu grupo. A marca no seu peito possui um valor inestimável, a ardência na sua carne pulsa agressivamente... você sente esta dor, você gritou por ela quando lhe marcaram... esta dor é o seu renascimento.

- Sim, eu sei, senhor. - Trevor lembrara-se da fatídica noite em que fora marcado no peito com um ferro em formato circular faiscando e em brasas.

- Você sabe exatamente o que fazer. Reúna seu grupo. Ajam no início da noite de hoje. - ordenou Michael, a autoridade em sua voz como um estalo de um chicote. - Foi bom Rufus ter nos dado seu endereço, ingenuamente.

- Senhor, as vezes eu penso que estamos sendo atraídos para uma armadilha...- fez uma pausa, temendo a reação de Michael. - Eu não sei, estou confuso... O mundo talvez acabe esta noite.

Michael rira com escárnio.

- Fique tranquilo, senhor Trevor. Ele não vai acabar... muito pelo contrário, ele irá renascer.

O homem ficou calado, assentindo positivamente e olhando ao seu redor.

Michael dera seu ultimato.

- Agora volte ao esconderijo e prepare seus homens. Rufus é um homem morto.

                                                                               ***

Josh novamente se via envolvido em uma escuridão quase predominante no esquecível corredor que conduzia o visitante ao depósito de peças para restauração. Sem escolhas e sem temer os riscos óbvios, ligou a lanterna. Confiava em seu taco: Um poderoso arsenal de armas de fogo em sua mochila que balançava enquanto seu usuário andava, em ruídos leves. A luz da lanterna vasculhou cada extremidade, cada canto do corredor. "Porta, porta... onde você está?", pensava o caçador, quase sem piscar os olhos, sempre alertas. Sua testa brilhava devido ao suor profuso.

Passados cerca de cinco minutos, o corredor parecia interminável. "É mais longo do que imaginei. Que surpresa...", pensou, desapontado. Imaginou como Hector e Eleonor estavam se saindo. Já se encontravam na ala II das armas como havia-se planejado? Foram pegos de surpresa em uma armadilha arquitetada por Mollock? Ou, quem sabe, ainda percorriam o extenso corredor... Questões como essas e diversas outras dominavam a psique ansiosa e elétrica de Josh.

A luz da lanterna, finalmente, parecia encontrar algo similar a um objeto de madeira... Mais alguns poucos metros adiante e lá se via, estava convidativa. embora muito velha. Josh sentiu uma atração irresistível quando viu a porta e teve a impressão de que suas pernas correram involuntariamente.

Para sua felicidade, estava escancarada. Um leve rangido foi reproduzido pelas enferrujadas dobradiças, que fora tornando-se agudo à medida que Josh excitava-se com a oportunidade e abri-a ainda mais. A madeira estava praticamente deteriorada, alguns pedaços caindo. A porta, após ser totalmente aberta, batera em algo sólido... um armário de ferro, talvez. Josh pouco ligou para o barulho feito, achando que não chamaria atenção de alguém que, suspeitadamente, estivesse fazendo guarda no subterrâneo. Foi andando com cautela máxima, os passos sem fazer nenhum ruído no chão empoeirado. Olhava para cada canto, cada ponto perceptível. A sala era fracamente iluminada por uma lâmpada fluorescente no teto e a única tomada estava repleta de poeira. Estantes de ferro estavam por todas as partes armazenando caixas de papelão com artefatos, outras caixas estando no chão com pinturas organizadas e inclinadas em fileiras.

Foi tirando as teias de aranha que grudavam em seu blazer de couro preto e em sua cabeça semi-careca. Avançando um pouco mais, conseguiu ver a portinhola que dava o acesso desejado. O curador, sabiamente, na época da construção da sala, pedira para não pôr nenhuma inscrição sobre a portinhola, julgando ser desnecessário indicar que aquilo dava para abaixo do solo - algo que somente funcionários do museu sabiam.

Comumente encontrava-se coberta por uma pilha de caixas, mas, naquele momento, estava exposta e curiosamente limpa. Josh pensou em bancar o detetive e analisar se havia impressões digitais na portinhola, mas percebeu logo o quanto urgia o pouco tempo que restava para sua tarefa. Largou a mochila e a lanterna e tentou abri-la, puxando com toda a força. A portinhola, com um arranco, foi de encontro ao chão, levantando uma nuvem densa de poeira. A abertura se revelou. Josh, tossindo copiosamente, jogara a mochila para o corredor abaixo.

Desceu a pequena escada, mas percebeu um detalhe: Não encontrava-se com disposição suficiente para fechar a portinhola tendo que deixa-la aberta enquanto conduzia Loub para fora. Mas aí vinha a seguinte e duvidosa questão: "Mas se alguém acabar vindo até aqui?", pensou ele, nos últimos degraus. "Ah, dane-se, meu armamento vai salvar o dia. Um pouco de rapidez e caio fora com o nosso homem.".

Correu pelo sombrio corredor subterrâneo, a lanterna ligada. Via tubulações de esgoto enquanto percorria. Por fim, chegara diante à porta metálica revestida com um cor branca, mas destacando ferrugens em algumas extremidades. Pôs a lanterna numa axila e puxou com força equivalente a qual usara na portinhola. Puxou até cerrar fortemente os brancos dentes. As veias de suas mãos estavam em relevo devido à força aplicada. Depois do que pareceram dois minutos de pura luta, Josh deu-se conta de que estava trancada. "Merda.", praguejou.

Por outro lado, estava aliviado por não haver nenhuma quimera fazendo guarda ali. Suspirou, limpando o suor da testa, as gotículas respingando no chão. A alternativa mais viável: Atirar na pesada maçaneta. Sacou um rifle 50 mm de tamanho médio e cano duplo. Mantendo distância, disparou contra a porta.

O estampido causou um barulho ecoante. Foram duas balas em um só tiro, algo que tal arma proporcionara. Uma ótima escolha, por sinal. A maçaneta virou metal quente e retorcido e a porta foi aberta.

                                                                              ***

Loub sobressaltara no exato momento do tiro disparado pelo rifle de Josh. "Meus Deus!", gritou em pensamentos, os olhos arregalados e tremendo de susto. Seu sono profundo fora interrompido. Parecia que estava sonhando e a melhor parte tenha sido "cortada". Ofegava enquanto olhava a porta de metal se abrir lentamente. "Mas o que significa isso? Quem poderá ser?".

Levantou-se e segurou as grades dianteiras da jaula, divisando a figura nada familiar que surgia. Os olhos pareciam querer brilhar em esperança. Sua camisa branca estava suja de terra e poeira e os cabelos grisalhos desarrumados.

Josh entrara, triunfante na cela, o rifle empunhado. Loub o olhara analítico. "Quem enviou este garoto negro?", pensou ele, semi-cerrando os olhos. "Pela jeito e as roupas... não tenho dúvidas, é um caçador! Hector está aqui!", animou-se.

- Quem o enviou? - indagou Loub, cortando Josh quando ele iria falar.

Sem responder, Josh direcionou-se à jaula após avistar as chaves. Guardou o rifle e enfiou uma das chaves na fechadura.

- Eu fiz uma pergunta, rapaz. - o tom de Loub era severo. - Quem o enviou? Responda!

- Olha coroa, eu não estou fazendo isso por vontade própria, tá bem!? - disse ele, tentando mais chaves, sem olhar para Loub. - Hector me disse dos seus podres. Parece que você fez merda, acabou escorregando, se lambuzou e está prestes a se afogar. - deu uma risada baixa e zombeteira.

- Ele também pagou você pra rir da minha cara? - perguntou ele, irônico.

- Em primeiro lugar: Não salvo pessoas por dinheiro. - tentou a última chave. - E em segundo lugar: Temos que dar o fora daqui, antes que seu filhinho querido venha e crave as garras em nós. - disse ele, abrindo a jaula.

Loub o olhou confuso por uns instantes. Não acreditou no que estava ocorrendo. Queria sorrir, mas seu maxilar parecia contraído e dormente. Piscou os olhos várias vezes para ter certeza de que não era um sonho ou uma alucinação. Andou para da jaula, esperançoso e sentindo um gosto prematuro de liberdade. Olhou para Josh. De alguma forma queria agradece-lo, mas viu que o jovem caçador de aluguel estava mais do que apressado. Ele fechara a jaula, trancando-a.

- Muito bem, estas chaves vão ficar comigo. - mostrou as chaves e em seguida as guardou no bolso de seu blazer. - Agora vamos. Hector não pode esperar muito tempo. - puxou Loub pelo ombro.

No corredor, ambos andavam apressados, tendo Loub caminhando em cambaleios leves devido ao torpor sentido durante o tempo que passou confinado. Josh empunhava seu rifle, indo mais na frente.

- Qual a razão para Hector ter vindo até aqui? - perguntou Loub.

- Na verdade, são duas. Primeiro: Acertar as contas com você. E segundo: Derrubar o rei maluco e cego.

- Rei maluco? - indagou, perdido. - Está falando de Mollock, certo? Ele pretende enfrenta-lo?

- Por mais incrível e suicida que pareça. sim. - respondeu Josh, mantendo a lanterna e a arma firmes nas duas mãos.

Loub ficou pensativo sobre o tal "acerto de contas". "Se Mollock for colocado fora de alcance por um tempo, eu diria que Hector planeja uma vingança contra mim.", pensou ele, suspeitando. "Não! Eu devo impedi-lo! Não, melhor ainda: Convence-lo de quem realmente é o inimigo. Convence-lo de que o curso da profecia saiu de meu controle e que estou arrependido!", desesperou-se.

Quando estavam quase próximos da escada, ouviram-se passos longínquos. Pararam abruptamente, olhando para cima, atentos e alarmados. Entreolharam-se desconfiados.

- Você não acha que é... - disse Josh.

- Não acho, tenho certeza. - afirmou Loub, convicto. - Lá vem os malditos guardas!

- Ótimo, você pode ficar bem aqui atrás de mim... - pediu Josh, apontando para trás com o polegar. - ... que eu vou abrir fogo contra essas quimeras licantrópicas. - carregou o rifle.

- Não será necessário. - disse Loub, calmamente. - Pelo que consigo ouvir... não parecem estar tão próximos quanto pensamos. Só basta subirmos e nos escondermos. - caminhou em direção à escada.

Josh quis para-lo para que ele se explicasse melhor, mas resolveu acompanha-lo, intrigado. O caçador subiu por último e, rapidamente, tentou fechar a portinhola. Com um gesto autoritário, Loub o impediu.

- Não. - segurou o antebraço de Josh. - É bom que a deixemos aberta para no caso de descerem. Se isso ocorrer, nós fechamos e eles ficam presos lá embaixo. - a fala do homem estava veloz. - Geralmente Mollock me visitava acompanhado de seus soldados, que ficavam do lado de fora da cela, no corredor. Apenas Mollock é capaz de abrir e fechar esta porta sem dificuldades... - soltara o caçador, esperando que ele entendesse a situação.

- O que significa que... Ah, não! - descobriu a resposta, sentindo um arrepio percorrer-lhe o corpo inteiro e fazendo uma cara desanimada.

- Sim, exatamente. - Loub passeou os olhos pelo depósito á procura de um lugar para se esconder. - Mollock está vindo para cá. Talvez acompanhado, talvez não. Não importa, precisamos dribla-lo. - ponderou o cientista.

- De que forma? - perguntou Josh, apreensivo. - Vamos, você é o cérebro dessa dupla! Eu só tenho as armas.

Loub não o deu ouvidos, Estava concentradamente procurando um ponto ideal onde se esconder. Os passos foram tornando-se mais audíveis e rígidos. Mollock parecia sentir odores não-familiares no depósito... e apressava-se para chegar a tempo de descobrir do que se tratava - ou de quem se tratava.

Loub pensou melhor e olhou para sua direita. Havia um enorme quadro ao lado de uma estante metálica. Estava coberto por um lençol branco para que fosse protegido da poeira. Além disso, estava inclinado, apoiado na parede. "Ótimo! É ali!", pensou Loub, sorrindo.

- Venha. - disse ele, puxando Josh pela gola do blazer.

Os dois se enfurnaram no "esconderijo". Por incrível que parecesse, cabiam perfeitamente os dois lá dentro, além de que uma parte do lençol ocultava uma lateral e a estante enorme ajudava bastante.

- Se não tivesse falado naquele tom espalhafatoso, Mollock não teria se apressado. - sussurrou Loub, repreendendo Josh.

O caçador fez uma cara de desconforto e moveu a mão perto do nariz como se quisesse dissipar algum cheiro ruim.

- Aí, o que você andou comendo, hein? - perguntou ele, em reprovação ao hálito de Loub.

- Nem queira saber. - respondeu Loub, secamente. - Preciso que deixe sua respiração o mais lenta possível. Um único movimento que humanos comuns não possam escutar, e ele nos encontra.

- É, eu sei, mas ajudaria bem mais se parasse de falar...

- Shhhh - Loub pôs o dedo indicador na boca, pedindo silêncio. - Aí vem ele.

Alguns segundos depois, Josh pôde divisar uma silhueta sinistra através da brancura quase transparente do lençol. Olhou um pouco mais atentamente. Mollock estava diante da portinhola aberta e parecia estar com dois de seus soldados. Ambos respiravam do modo mais lento e baixo possível, mantendo a calma. "Nunca pensei que fosse tão... grande e forte.", pensou Josh, meio surpreso. "Essa coisa deve pesar uns 380 quilos só de músculo!", espantou-se ele, exagerando ao estimar a grandeza do pupilo de Abamanu.

- Senhor, por que não entra? - perguntou um soldado.

Mollock estava em transe pensativo e desconfiado.

- Algum de vocês entrou aqui sem minha permissão? - perguntou ele, rigoroso.

"Putz! É a voz mais monstruosa que já ouvi!", pensou Josh, já recomeçando a suar. Loub pousou a mão em seu ombro e assentiu em um contato visual que se poderia traduzir como "Vai ficar tudo bem". Enquanto isso, Mollock já suspeitara do que ocorreu.

- Hum... Esperem-me aqui, só por via das dúvidas. - olhava discretamente ao redor. - Não demorarei mais do que dois minutos. - e encaminhou-se para descer a pequena escada.

"Droga!", praguejou Loub. "Esse demônio está ficando mais esperto a cada dia! Já suspeita que isso seja obra de algum intruso. Não... suspeita que nós estejamos aqui!"

Josh olhou para Loub em um leve gesto de cabeça, como que perguntando sobre como irão proceder.

Loub assentira de volta. Gesticulou com as mãos que intencionava empurrar o enorme quadro por cima das quimeras. Assentiu novamente perguntando à Josh se estava de acordo. O caçador ficou em dúvida por alguns instantes, sentindo a ameaçadora presença daqueles lobos bípedes. A tensão fervilhava em seu sangue como nunca antes. Fechou os olhos e suspirou pesadamente. Loub o cutucou com o dedo e o olhando com reprovação balançando a cabeça.

As quimeras ergueram levemente suas orelhas e cochicharam umas com as outras:

- Procure por ali. - sussurrou uma. - Vou por aqui. - apontou para a sua esquerda com a lança.

- Pode deixar. - respondeu a outra. - Também sinto o mesmo.

"Decida-se, rapaz. Confia ou não em mim?", pensou Loub, olhando fixamente para Josh quase que querendo tornar-se um telepata. Josh abrira os olhos... a quimera já estava a poucos metros de onde se encontrava o quadro, farejando minuciosamente dois odores contrastantes ao cheiro de poeira fina e densa da sala. Em um impulso corajoso, Josh reunira forças dentro de si novamente. Empurrou o quadro com as duas mãos, sem precisar da ajuda de Loub.

A obra emoldurada caiu por cima da quimera que estivera próxima, fazendo a lança que a mesma portava cair por outro lado. As figuras de ambos os fugitivos se revelaram diante da que investigava da outra parte da sala. A mesma rosnou ferozmente, a lança em punho.

Os dois correram em direção à porta rapidamente, mas a quimera, em um pequeno e rápido pulo, conseguiu bloquear a passagem, apontando a lança mortífera para eles. A figura da criatura era espantosa em meio à luz mortiça do depósito. Recuaram alguns passos. Loub ficara alguns centímetros atrás de Josh, que não hesitou em disparar duas balas de prata com seu rifle em uma mira precisa diretamente na cabeça da quimera.

A criatura largou rapidamente a lança urrando de dor, encostando-se na parede enquanto o sangue manchava-a e derramava-se no chão, jorrando como uma fonte. A outra quimera, outrora caída sobre a pintura, levantara-se abruptamente chutando o quadro, praticamente destruindo-o. O mesmo chocou-se contra a parede, a moldura quebrando-se. Pegou a lança e avançou contra Loub, que, em um ato rápido e mantendo-se alerta, segurou a ponta da arma e fez com que o cabo da mesma atingisse o rosto da quimera. Depois dera um chute violento em seu tórax, que a fez voar a alguns metros quase passando por cima da abertura da portinhola.

Josh, aproveitando a munição, carregou o rifle e disparou novamente. Quatro balas em dois tiros. A massa encefálica da quimera ficou quase que inteiramente exposta, esparramando-se no chão juntamente com uma crescente poça de sangue que se formava ao redor de sua cabeça. A criatura se contorcia de dor em urros estridentes. Ambos entreolharam-se... logo após um outro urro, ainda mais alto, que abafou o reproduzido pela quimera desfalecente. Vinha do subterrâneo. A dupla, em simultâneo, arregalou os olhos em desespero.

Foi instintivo. Correram para fora da sala como se não houvesse um destino pré-definido, até avançarem no escuro corredor vazio. No exato momento em que saíram da sala, a quimera que bloqueara a passagem antes tentara, em vão, usar suas últimas forças para agarrar a perna de Loub, na intenção de cravar suas garras naquela carne humana fugaz. Não fora rápida o bastante.

Mollock subia rápido a escada, possesso de fúria, quase espumando pela boca como um cão raivoso.

Deparou-se com seus soldados já mortos e ensanguentados. "Como eu havia imaginado! Se espalharam!", pensou ele, rosnando intensamente, os olhos esbugalhados. Olhou para o corredor semi-escuro à sua frente, enxergara, ao longe, duas pernas que dobravam de direção para outro corredor. "Papai!". Acontecera o que o rei em ânsia por ascensão temia mais do que sua possível ruína: Seu "pai" fora libertado por um dos intrusos e levado para sabe-se lá onde.

Não precisou correr. Era um ótimo andarilho quando apressava seus passos e sincronizava com sua força de vontade ilimitada. Havia pisado no sangue que ainda escorria da cabeça da quimera morta próxima à portinhola, deixando pegadas pelo chão da sala e, posteriormente, no corredor, bem como alguns miolos cerebrais grudados em seus calcanhares. Seus olhos amarelos fumegavam de ódio.

Alguém havia raptado seu "pai" e ele não mediria esforços para consegui-lo de volta. "Inadmissível! Inaceitável! Farei com que sofram até o último segundo de agonia por este ato petulante!", pensou, determinado a fazer o que fosse preciso para restaurar o andamento de seus planos.

                                                                             ***

Loub sentia suas pernas doloridas, especificamente os ligamentos dos joelhos. Fazia eras que havia corrido tão rápido e em tão pouco tempo. Diminuiu o ritmo quando enveredou, atrás de Josh, por mais um corredor escuro, desta vez mais largo em relação ao anterior.

- Está me levando até Hector?! - perguntou ele, arfando de cansaço, o suor molhando a camisa branca.

Josh ligara a lanterna.

- Sim! Ele me disse que eu deveria me encontrar com ele na ala II das armas antigas! Levando você vivo, é claro. - respondeu, apressado enquanto corria mais velozmente.

- E você sabe onde ela fica?

- Tenho um mapa, mas acredito que estamos na direção certa!

- Sei que não é uma boa hora... - fez uma pausa, seguindo a luz da lanterna para se orientar. - ... mas eu adoraria saber qual é a razão de Hector querer acertar as contas comigo! Eu não quero morrer!

"Então ele adivinhou.", pensou Josh. Loub, obviamente, já sabia dos intentos de Hector: Vingança. Fria e justa. Sem arrependimentos e sem piedade. Temeu que o caçador fosse faze-lo pagar uma penitência para expiar seus pecados em uma sessão de tortura, mas considerava a possibilidade de uma morte rápida, cuja dor não duraria mais do que 10 minutos. A morte poderia ser enganada. Apenas se... o convencesse. A tarefa seria árdua, mas não impossível. Tinha seus trunfos contra Mollock guardados como cartas Coringa na manga. Era tudo ou nada. Se quisesse sobreviver aquela guerra, teria de fazer o improvável para se aliar a seus ex-inimigos.

- Vai descobrir quando chegarmos lá! - respondeu Josh, friamente, sem parar de correr.

"Hector o orientou a esconder o jogo. Por que?! Ele terá de entender. Sim!", pensou Loub, perseverante em seu plano de sobrevivência.

                                                                              ***

A terceira porta alternativa da ala II das armas abria-se em uma lentidão que seguia um ecoante rangido. Fechou-se, porém, rápido.

Os passos de Hector, embora calmos, escondiam uma tensão compreensível. Estava prestes a se encontrar novamente com aquele que idealizou a morte de seu pai. O precursor da profecia do retorno de Abamanu à Terra. Procurou, de todas as formas possíveis não se exaltar em pensamentos, o que desgastaria sua mente para o clímax esperado. Olhou à sua volta. A sala com paredes de pedra meio alaranjadas ou meio sépia, iluminada por velas castiçais e candelabros luxuosos, dando um clima mais medieval correspondente ao conteúdo da ala.

Havia somente uma coisa que bloqueava seus pensamentos em Loub, mas não ajudava a diminuir a aflição nem um pouco: Eleonor.

A moça sumira misteriosamente, sem deixar rastros nem nada. "Ela utilizou uma magia para escapar do museu? Será que ela se sentiu cansada demais para o que vinha pela frente e simplesmente abandonou o barco? Será que... ela decidiu me trair?", pensou Hector, devaneando em um oceano de dúvidas. Seu olhar estava vago, desatento. Passou as mãos pelos espessos e lisos cabelos pretos afastando-os de sua testa, perdido. As mãos chegaram à barba, já um pouco crescida em um acariciamento decrescente e lento. Encontrara um médio bloco de pedra construído em uma parede atrás de si, situado no chão. Havia mais alguns semelhantes nas outras extremidades do salão.

Sentou-se tranquilamente, logo dando um suspiro pesaroso. Apoiou os braços nas coxas através dos cotovelos e pôs as mãos na cabeça, sentindo uma amarga solidão em meio ao silêncio.

As incertezas relacionadas ao plano passaram a pesar ainda mais sobre sua mente. Passaram-se dois... cinco... dez minutos. Silêncio total. Mais dez minutos apreciando as exuberantes armas medievais armazenadas nos tampos de vidro sustentados por retângulos médios de pedra. Andou por durante trinta minutos por todo o recinto. Silêncio permanente e insistente. A vagarosidade do tempo só torturava-o.

Passadas uma hora e meia de puro e maçante tédio. Mais uma meia hora de devaneios profundos e respirações de desalento. Duas horas completas. Olhou para o relógio, preocupando-se com Josh. Marcava 10:30. Não acreditava que o tempo ainda estava em plena manhã. Sentou novamente no bloco de pedra que havia estado outrora. Praticamente deitando-se, pensou em tudo: Rosie, seus grandes amigos da Legião - Adam, Lester e Êmina -, Rufus, a avó de Rosie que viajara e jamais dera notícias, o Mestre que lhe ensinou tudo o que sabia sobre o desconhecido, em sua firme parceira de missão Eleonor desaparecida... e em Josh, que demorava a chegar trazendo Loub consigo.

Tantos sonhos lúcidos e pensamentos ao mesmo tempo resultaram em mais tédio. O tédio converteu-se em sono. Que logo tornou-se em profundo adormecimento.

Hector estava ali, deitado sobre o tal bloco pedregoso, dormindo como se não houvesse um amanhã. Talvez matando as saudades das noites tranquilas em sua cama quando morava no leste do país.

Cerca de oito horas passaram-se. Oito horas de sono profundo.

Contudo, o silêncio fora rompido pela segunda vez naquela sala. A batida de uma das portas alternativas da ala estrondou por todo o recinto. Hector sobressaltou, despertando finalmente.

Levantou-se e logo pôde divisar, com a temporária visão turva, uma figura ligeiramente sombria e, sobretudo, ameaçadora à primeira vista. Levantou os olhos por definitivo e pôde ver. Arregalou-os no mesmo instante enquanto se postava de pé. Quis falar algo, mas as palavras pareciam presas.

- Não pode ser... - balbuciava o caçador, encarando com raiva a figura. "Droga! Ele não deveria estar aqui neste momento! Josh, onde você está? Terá se perdido? É o mais provável", pensou ele, o desespero cegando sua visão de futuro próspero.

- O que faz aqui!? - vociferou Hector.

- Ora, ora, se não é o caçador que invadiu o meu palácio deliberadamente e sem temor.

- Como soube que eu estaria aqui? Aliás, você, obviamente, tem algo a ver com o sumiço de Eleonor? O que fez com ela? Onde ela está? - perguntava Hector, a vontade de avançar contra ele crescendo.

A figura fez um gesto com a mão pedindo calma.

- Uma pergunta de cada vez. Mas eu também possuo minhas dúvidas e você será obrigado a responde-las.

Hector passou a encara-lo ainda mais fervorosamente.

Mollock estava diante dele, sorrindo canalhamente... como alguém que está cantando vitória antes do tempo.

                                                                                 ***

Vibrações no chão causavam-lhe uma ligeira sensação de impotência que foi tomando conta de cada músculo contraído de seu corpo. Rosie Campbell testemunharia a própria morte nas mãos de um ser dissimulado e nojento como aquele? Suas unhas quase cravavam-se no chão, arranhando-o, denotando a raiva por se sentir caída e supostamente derrotada. Os passos do Guia em direção à ele ficavam mais vibrantes e intimidadores. Uma estranha letargia tornou a jovem sua refém.

Um gigante de quatro braços se aproximava decidido a fazer o que fosse para cometer um ato brutal e Rosie mal movia um dedo... talvez idealizando um ataque-surpresa.

- Presumo que esta falsa demonstração de derrota não tenha lhe sido uma forma conveniente de escapar da situação. Como depois de tanto tempo enfrentando aqueles desafios consegue se mostrar tão ingênua em seus últimos minutos de vida?! - dissera o Guia, alongando os ombros, aquecendo-se.

Rosie ainda mantinha-se imóvel, caída no chão. A parede atrás dela estava meio rachada devido ao impacto da força arrasadora propagada pela aura do Guia. A "mesa redonda" permanecia intacta.

- Vamos, sua humana miserável! Profira suas últimas palavras! É a minha última ordem!. - pressionava o Guia, poucos metros próximo à ela. - Ou então a matarei neste estado deplorável em que se encontra sem diga nada. Falsamente rendida e inerte. Jamais imaginei que, a julgar pelo que você demonstrou em outrora, isto fosse ser tão fácil. Estou decepcionado, Rosie, decepcionado!

Seu pé esquerdo quase afundou o chão com o último passo que dera para se aproximar de Rosie. A jovem, por fim, levantava-se aos poucos. O Guia exalava um infestante odor de pele humana suada. Os olhos dela foram de encontro à face sem rosto e cheia de cicatrizes. Soavam como faíscas.

- Ninguém disse que seria fácil. - disse ela calmamente, recompondo-se. - Mas houve alguém... apenas um alguém que foi capaz de me fazer repor as esperanças... alguém que me mostrou um caminho quando eu achava que não havia mais nenhum... alguém que me fez acreditar que eu conseguiria todas as respostas para minhas perguntas... - erguera a coluna, ganhando uma postura correta.

O Guia fitou por um tempo aquela face firme e brava de Rosie.

- Alguém que pareceu provar que cumpriria sua palavra... alguém mais próximo de um amigo que eu tive durante toda essa aventura repleta de obstáculos. - deixou seu olhar fulmina-lo por completo.

- Oh, Rosie, eu sinto muito... - disse o Guia. - Mas pode me dizer quem era esta pessoa? Algum amigo imaginário que você criou apenas para não escutar o que eu tinha de importante a dizer?

O semblante de Rosie converteu-se em profunda possessão furiosa.

- Não se faça de desentendido! Era você, seu imbecil! - esbravejou ela.

Em um pulo impulsivo, Rosie dera um chute com sua perna direita diretamente na face vazia do Guia. O ser recuara alguns passos devido ao golpe, mas manteve-se rígido. Mais um ataque de Rosie. Desta vez fora no abdômen, com um cotovelo. Ouviu-se um grunhido de dor do Guia. Mais golpes. Rosie iniciou uma sucessão de fortes cotoveladas no abdômen enrijecido da criatura. O som ecoava pelo aposento. Parecia interminável de tão intensa. Como "encerramento", esticou os braços para cima e segurou a cabeça do Guia, dando-lhe uma tremenda joelhada em seguida. Pulou virando de cabeça para baixo e voltando ao chão. Sacou a sua adaga segurando firmemente o pequeno cabo, a ponta da lâmina voltada para o outro lado, horizontalmente.

- Se tem algo que você verá pela última vez... este alguém sou eu! - disse Rosie, em posição para lutar.

O Guia recompunha as forças e deu uma gargalhada estardalhaçante.

- Não há chance alguma de você me matar, Rosie! Reconheça a sua óbvia desvantagem! O que foi isso, afinal? Um número circense de um ser insignificante que acha que possui algum tipo de poder!? - zombou ele, ainda rindo.

Rosie continuou a encara-lo friamente.

- Se eu já não tinha nenhum medo de você antes... agora percebo que você continua o mesmo chato e cretino desde o início.

- Suas ofensas meramente humanas mal penetram na minha aprimorada mente. - gabou-se o Guia, inflando o ego. - Irei acabar com esse seu momento de auto-confiança cega em um minuto! Observe e aprenda como alguém como você deve se curvar diante de um ser como eu em uma luta!

- Mente aprimorada é!? - Rosie deu um sorriso sacana. - Vamos ver se ela é aprimorada o suficiente para aguentar a dor de uns bons cortes profundos. - manteve a adaga em riste, a lâmina reluzindo.

- Eu não teria tanta certeza... se eu estivesse no seu lugar, pequena. - disse o Guia, estendendo os quatro e musculosos braços para os lados. - Você conhecerá a dor... de um modo que jamais sentiu antes.

Em uma fração de segundos, uma espada muito familiar surgira na mão esquerda superior do Guia. Rosie esbugalhou os olhos, chocada. "Mas... esta é... está é a Lâmina Superior!", recordara-se. A primeira arma que utilizara para conseguir vencer o primeiro desafio. Uma réplica surgiu na outra mão superior do Guia. Mais outra na mão inferior esquerda e, em seguida, na direita. Rosie logo havia percebido, para sua iminente infelicidade, que seu oponente possuía vantagem sobre os aspectos.

- Reconhece esta arma, Rosie? - perguntou ele. - Você a usou em seu primeiro desafio... quando decapitou aquela criatura da floresta e depois a utilizou para abrir o seu corpo e arrancar o coração dela. A Lâmina Superior. Imponente e com poder inestimável, ela foi dada à mim como um presente de meu Lorde Abamanu para que fosse empunhada por você no início mas por mim no final. E aqui estamos nós. Frente à frente. É o poder desta espada que decidirá o verdadeiro vencedor.

- Que com certeza não será você. - retrucou Rosie.

As quatro espadas, repentinamente, adquiriram certo calor... logo entrando em brasas, crepitando. Rosie impressionara-se novamente. "Isso com certeza não é um jogo limpo.", pensou ela.

- E então, Rosie? Como está a sua confiança em si mesma? Abalada, eu creio. Em ruínas, talvez. - moveu um braço superior, preparando uma das espadas para um ataque imprevisível. - Eu, por durante inúmeras eras, fui visto como um simples brinquedo por meu Lorde... até que tive a honra de ser designado a tarefa de orienta-la e vejo só! Eu não me sinto mais tão desvalorizado! Eu sou o opressor e você, agora, é o meu brinquedo!

- Vai aprender que brinquedos também matam. E faça o favor de não contar a sua "infância sofrida", não estou interessada. - rebateu Rosie, andando calmamente para um lado, ainda em posição de combate.

- Você realmente espera que sua adaga possa me ferir enquanto estou munido por quatro espadas invulneráveis e em brasas?! - questionou o Guia, com ar arrogante. - Eu lhe dou duas opções para uma morte certa: Queimada ou partida ao meio. Qual delas você acha mais apropriada?

Batidas abruptas na porta principal da sala foram ouvidas. As portas duplas pareciam estar quase sendo arrombadas pelo que aparentavam ser chutes violentos. A maçaneta praticamente estava caindo devido aos golpes persistentes. Ambos olharam para a entrada quase ao mesmo tempo. Uma interrupção evidentemente inesperada, o que de imediato irritou o Guia.

- Chega de perdermos tempo! - voltou-se para Rosie, deixando as espadas em posições diferentes para ataques. - Você já está morta! Declare-se derrotada!

Rosie dera um estranho sorriso de satisfação e esperança. Olhou para o Guia, mantendo o sorriso.

- Acho que hoje não. - disse, secamente.

As batidas tornavam-se mais fortes. A tranca das portas estava quase se rompendo. O Guia ficara indeciso se alimentava sua curiosidade para esperar e saber quem estava do outro lado e prestes a entrar ou se atacava Rosie de uma vez com uma das espadas. De qualquer forma, não deveria admitir falhas naquela última missão, muito menos uma invasão de intrusos. O último desafio. Aquele era o momento perfeito para golpear Rosie e parti-la em mil pedaços com apenas uma Lâmina Superior estralando em brasas. Mas parecia que algo o paralisara. As portas estavam quase arrombadas... faltava pouco.

- O que foi? - perguntou Rosie. - Não ia me atacar agora? O que aconteceu? A curiosidade pegou o gato? - ironizou ela, olhando-o firme.

O Guia virava a cabeça para ambos os lados. Rosie, as portas, e vice-versa. Não havia nenhuma decisão plena em mente. Seu plano, sua missão, tudo o que seu ego e confiança sustentavam seriam destronados com apenas uma revelação.

A última batida. Decisiva e invasora.

A maçaneta voou. As portas duplas abriram-se vibrando, tremendo após o impacto. Não fora sido um chute, mas sim um tiro muito bem disparado... por Adam!

Um quarteto de humanos entrava rapidamente na sala. Dois rapazes empunhando armas de fogo, um magrelo e branquelo e um corpulento e musculoso. Duas jovens moças desarmadas, uma bela vidente ruiva dos cabelos alaranjados e ondulados e uma caçadora e alquimista com uma trança lateral apoiada no ombro.

Os dois oponentes desfizeram suas posições, estupefatos. "Não era bem o que eu esperava.", pensou Rosie, confusa. "Quem são eles, afinal?".

"Isso não pode estar acontecendo! Malditos sejam!", vociferou o Guia para si mesmo.

Adam apontou o rifle direto para a figura monstruosa do Guia, o olhar sério como nunca antes. O ser percebera a ameaça que os quatro representavam. Havia sido previamente avisado daquela possibilidade arrebatadora. Fitou o cano da arma de Adam, mirado em sua cabeça a certa distância.

O líder da Legião dos Caçadores deu sua palavra de ordem:

- Largue estas espadas e se renda de uma vez! Seu jogo diabólico acabou!

                                                                            ***

Dois mundos se confrontavam em silêncio. Duas faces, uma diante da outra, diferentes e divergentes. Os punhos fortemente cerrados de Hector denunciavam sua ascendente preocupação. Josh já havia demorado tempo demais apenas para trazer um homem decadente. "Não. Eu estou sonhando... É um pesadelo, só pode ser! O esperado era que Mollock viesse logo após Loub...", fez uma pausa nos pensamentos para avaliar as possibilidades. De fato, não lhe era muito fácil dar-se conta dos inevitáveis fracassos que cada plano idealizado tendia a sofrer. Naquela situação específica, Hector jamais admitiria uma falha sequer. "Tudo bem... vou tentar manter a calma na medida do possível. Na esperança de que Josh virá em pouco tempo ... mas as implicações... Não, não quero nem imaginar! Só a presença de Mollock aqui já derruba mais da metade da eficácia que eu previa para o plano.", pensou o caçador, claramente desanimado.

Ambos ficaram trocaram olhares distintos e mantinham uma certa distância. Hector e sua raiva irreprimível. Mollock e seu sorriso de prematura vitória. Ambos esperavam que um deles fosse quebrar o silêncio.

- Diga-me. - disse Mollock, calmamente. - O que realmente está esperando?

Hector fizera esforço para tentar responder algo que soasse convincente para aquela mente em desenfreado progresso. Instantes depois, a resposta mais cabível estava na ponta da língua.

- Espero que me revele o que fez com Eleonor! - exclamou o caçador, ríspido. - Apenas me diga onde ela está!

- Como um rei em evidente ascensão, eu peço que me trate com mais respeito. - exigiu Mollock. - Você é um intruso e não faz ideia do quanto eu estou segurando minha vontade de estripa-lo até a morte, sem deixar nenhum pedaço de carne solto. - disse ele, com firmeza. - Foi fácil demais captura-la. No exato momento em que vocês estavam sendo levados pelo exército que mandei, um deles dirigiu-se à um atalho em um corredor alternativo. Este atalho levava até a minha sala. Sendo assim, fui informado dos caráteres dos intrusos. Dois caçadores e uma bruxa.

- E como procedeu para rapta-la? - perguntou Hector, baixando o tom de voz.

- Simples demais. Muito antes de vocês alcançarem a metade do corredor, eu havia enviado um soldado para que ficasse "preso" ao teto e, assim, realizasse um ataque-surpresa, muito eficaz e silencioso que só os meus soldados são capazes de fazê-lo. Técnicas precisas de perda temporária de consciência. - revelou, exalando uma soberba sem igual.

- Para onde a levaram? - indagou Hector, retomando o tom severo.

- Um lugar especialmente secreto, nada muito relevante. Afinal, seria muito fácil para você se presumisse que ela estaria na minha sala, mas, a princípio, não me passou pela cabeça leva-la para meu recinto. - contou, andando tranquilamente para um lado. - Ela foi muito abusada para meu gosto, se quer saber. Se não suporto ofensas gratuitas, eu revido com o dobro do peso da palavras.

Hector sentiu o sangue ferver e subir à cabeça.

- "Eu revido"? Você a violentou? O que esperava obter com isso?

Mollock fez um gesto com o indicador, exigindo paciência por parte do caçador ansioso e desesperado.

- Repito: Uma pergunta de cada vez. - disse ele, categórico. - Vamos à primeira: Sim, e com muito prazer, ressalto. - fechou os olhos, sorrindo. - A segunda: Eu apenas necessitava de um último elemento para que eu pudesse concluir minha missão. Ao que parece, uma bruxa entre nós foi muito conveniente para nós dois. Não acha. Hector? - soltou uma baixa risada.

Hector continuava a fulmina-lo com os olhos, espantado com audácia daquele monstro de pelagem marrom escuro e de quase 1,90m.

- E do que se trata a sua missão, afinal?

- Eu li sobre a magia negra utilizada pelas antigas bruxas. É fascinante. E percebi, logo de imediato, que aquilo era exatamente o que eu precisava para ter acesso ao lugar de minha ascensão. Irei me tornar um Deus, e apenas um feitiço me separa desta conquista.

"Um feitiço!? Não... se for o que estou pensando...". Hector paralisou, em transe, imaginando o pior.

- Talvez ela tenha lhe dito uma lista específica dos que usaria quando se aliou a você. Estou certo? - perguntou Mollock, desafiando a paciência de Hector.

- Não desvie do assunto! Sei muito bem o que está objetivando. Que tipo de feitiço ela revelou à você? - o caçador deu alguns passos à frente, quase que como ganhando coragem para enfrentar o algoz sem hesitação.

Mollock deu uma risada de escárnio, como se estivesse bêbado ou comemorando alguma façanha.

- Você é insistente, como eu esperava. - olhou para Hector analiticamente. - Mas sendo direto... Eu recorri a métodos radicais para obter uma resposta. Em alguns livros que li, os humanos possuem uma espécie de força de elite protetora chamada Polícia, designada a lutar contra aqueles que praticam atos que vão contra as leis humanas. Eu utilizei um método especial deles quando queriam conseguir uma confissão. - fez uma pausa. - Tortura... a melhor forma de fazer alguém falar. Impor o medo da morte lenta e dolorosa é a chave para que seu cativo revele tudo o que você precisa saber...

                                                                                ***

Uma cusparada de sangue cintilou em meio à luz branca e fluorescente daquele recinto imundo e quadrado. No chão haviam gotas e manchas de sangue. Sobre ele, uma mulher... amarrada com os braços para cima com cordas presas ao teto. Seus pés mal tocavam o chão, balançando enquanto tentava se libertar. 

Eleonor voltou seus olhos para o ser ignóbil à sua frente. Fitou-o furiosamente, desejando que através de seus olhos dois raios disparassem e pulverizassem aquela monstruosa figura. Seus lisos cabelos castanhos estavam meio bagunçados e seu rosto estava deveras machucado, os hematomas inchados. 

Mollock a olhava sério, ansiando apressadamente por respostas. Três soldados estavam atrás dele, de reserva para no caso dela tentar alguma artimanha. Lera sobre bruxas atentamente e sabia que as feiticeiras mais temidas e perigosas da história sempre possuíam cartas na manga. "Uma pena que não tiveram tanta sorte nos tempos da Inquisição.", pensou Mollock, relembrando os bons e velhos livros de história que devorara. 

- Eu vou repetir: Eu preciso da magia de teleporte. O Goétia! - vociferou ele contra Eleonor, impaciente. - Não me pergunte para quê, apenas me responda! 

- O Goétia possui um exemplar único e de valor incalculável, praticamente invendável. - disse Eleonor, arfando e falando muito depressa. - O que quer que você tenha lido ou quem quer que tenha trazido este livro para o museu, talvez seja uma cópia falsa muito barata e alguém sem nenhum conhecimento de verdadeira e pura magia negra. Além do mais, por que um livro de bruxaria como este faria parte da biblioteca? Até onde eu sei, a Biblioteca do museu é um dos pontos mais visitados em todas as épocas do ano. Alguém que tenho encontrado o Goétia por acaso já teria dito à direção do museu e teria causado alguma polêmica. 

- Então argumenta que o exemplar que li dias atrás não passa de um falso livro de bruxaria!? Impossível! - exclamou Mollock, nada convencido. 

- Você mesmo disse! A parte dos rituais e feitiços de defesa e ataque não constavam nesse livro! Eu posso jurar pra você, seu "lobisomem-demônio": Ainda não faz muito tempo que faço parte do Coven, embora eu já tenha certo aprendizado de nível mais alto e a última parte do Goétia está além do meu alcance. Em outras palavras: Eu não posso dar o que você quer! - a bruxa dera um sorriso de canto de boca. 

Mollock, impulsivo, bofeteou o rosto da moça, castigando-a pela atitude e postura. 

Eleonor, cansada, cuspiu mais um bocado de sangue. 

- Está perdendo o seu tempo, se acha que me fazer de saco de pancadas vai ajudar você a se tornar um rei digno. - provocou ela. - Talvez eu me lembre... mas já não encontro forças para continuar vivendo... 

- Bruxas são mentirosas patológicas. - afirmou Mollock, com desdém. - Então admite que mentiu esse tempo todo. Você sabe como se faz... - aproximou o rosto do dela, seu focinho expelindo uma respiração gélida. - Sabe, as vidas de seus amigos caçadores vão estar por um fio em pouco tempo. A menos que me fale as palavras mágicas. É só o que preciso. - a fitou mais penetrantemente. 

- Você quer as palavras? - disse Eleonor, olhando-o fixamente. - Aqui vai três: Vai se ferrar! 

Mais uma bofetada violenta. Sangue espirrou para um lado, as garras de Mollock conseguiam trazer seriedade aos ferimentos de Eleonor. Agarrou o seu pescoço e aproximou-a ainda mais de seu rosto. 

- A ascensão de um futuro Deus não pode esperar. - disse ele, quase sussurrando. - O que é a dignidade de um rei comparada à magnificência de um Deus? Hein? - sacudiu de leve o pescoço da moça. - Algo está à minha espera. Algo foi reservado à mim e eu não posso ficar um minuto a mais sem saber como conseguir este tesouro. Eu vou enlouquecer se não me disser! 

- Então enlouqueça... como naquela vez... - Eleonor mal conseguia falar, quase sem fôlego, o pescoço sendo fortemente apertado. - ... quando você enfrentou Belial. 

- De quem está falando? 

- O demônio... - tossiu de leve. - ... o enviei para que distraísse você... para que você se convencesse de que o poder não é uma conquista, mas sim uma ilusão. E isso é verdade. Você não tem poder nenhum. Apenas uma ambição cega e... 

- Cale-se! - vociferou Mollock, soltando o pescoço de Eleonor. - Eu vou pedir pela última vez! Quais são as palavras para se fazer a magia de teleporte? - rangera os dentes, no limite da explosão de ódio. - Se negue mais uma vez e diga adeus aos seus companheiros! 

Eleonor baixara a cabeça por uns instantes, parecendo reflexiva quanto à ameaça. Queria chorar naquele momento, mas estava intimidada demais para deixar cair alguma lágrima. Respirava com dificuldade naquele ambiente infestado dos piores odores que o olfato humano pode rejeitar. "Hector... Josh... me perdoem.", pensou ela, corajosamente decidida. "Principalmente você, Hector. Se minha voz mental pudesse te alcançar... eu faria mil pedidos de perdão... pelo erro que vou cometer agora.". Uma lágrima escorrera finalmente... e caiu cintilante no chão sujo. 

Levantou lentamente a cabeça. Olhou para Mollock com ar melancólico e taciturno. 

- Muito bem. - disse ela, preparando-se. - Você deve desenhar um símbolo... que só poderá conseguir se me libertar e eu desenho para você. - fez uma pausa, fechando os olhos para fazer escorrer mais uma lágrima. - Mas antes... vou falar o dialeto do ritual... Você só precisa dizer... 

                                                                             ***

- E foi assim que consegui o meu maior trunfo. - disse Mollock, orgulhoso de si. - Embora eu não entendesse aquela palavras, elas soaram como uma música sinfônica... Isto me lembra um humano chamado Beethoven, cujas criações sonoras são belas. Talvez eu não odeie tanto a raça humana por existir esse incrível invento chamado música. - revelou ele, honestamente.

Hector deu mais um passo à frente, olhando para o relógio. 16:20. Um suspiro vagaroso e desesperançado foi o máximo que o caçador poderia fazer a fim de aliviar o desespero. Voltou-se para Mollock.

- Daqui a 4 horas o Exército virá para desfazer seus planos. E não pense que o que fez à Eleonor ficará impune.

- O que vai fazer? - desafiou Mollock, também dando passos à frente. - Pelo que pude constatar em minhas leituras mais profundas, a justiça humana é genuinamente falha. Não vai cometer o erro de usa-la a seu favor. E quanto a estes humanos com seus poderios militares... eles vão sentir o calor das suas bombas bem de perto. - deu um sorriso malicioso.

Hector logo percebera uma ponta de ameaça analisando a expressão do pupilo de Abamanu.

- Planejou algo para barrar a ação do Exército?

- Medidas preventivas, nada mais. - respondeu, secamente. - E quando meu reinado como um Deus se constituir, este lugar não será nada além de cinzas... se é que me entende, caçador.

"O que ele quer dizer com tudo isso? Espere... cinzas... medidas preventivas...." , pensava Hector, com cuidado. Um lampejo súbito quase fez seu queixo cair. "Será que... Não, não pode ser! Mollock realmente considera explodir o museu!?".

- Chegou a hora de sanar as minhas dúvidas: Onde está o meu pai? - perguntou Mollock, rosnando.

As portas duplas que fazem a entrada principal da Ala II das armas se abrira repentinamente. Surgiram duas figuras exaustas e arquejando intensamente, entrando em disparada... mas parando logo no mesmo instante. Josh carregava Loub segurando seu braço sobre sua nuca. O cientista desistira facilmente da corrida desenfreada se queixando da dor lancinante nas pernas e joelhos. Ambos esbugalharam os olhos simultaneamente ao depararem-se com Mollock, parado bem diante de Hector e com as garras crescendo, provavelmente querendo tentar um ataque inesperado.

- Ah! Não pode ser! Maldição! - praguejou Loub em voz alta.

- Ai, meu deus... - disse Josh, sentindo as pernas ficarem bambas. - Chegamos tarde demais.

Mollock fixou seu olhar diretamente em Loub, assombrado com o que via. "Papai!".

- Largue-o! - exclamou ele para Josh. - Agora!

O caçador de aluguel virou-se para Hector. "O que eu faço agora? Ficamos perdidos por horas e agora me meto em mais uma encrenca de novo! Se eu joga-lo para Hector, talvez... não, não, isso seria estupidez e das grandes! Pense, Josh, pense em algo!".

Loub discretamente olhou para a figura de Hector no centro da sala. O enxergou como a faceta de um herói persistente e esbanjando uma bravura única. "É o meu garoto prodígio", pensou ele, relembrando os tempos em que visitava seu velho amigo e colega de universidade John, pai de Hector... assassinado a sangue frio pela primeira quimera licantrópica criada por Loub. "Se ele soubesse o quanto me arrependo... todo esse rancor... todo esse ódio sumiria de seu coração pra sempre.".

- Eu mandei larga-lo! - exigiu Mollock, sua voz reverberando por todo o espaço.

Josh tremera. Sabia exatamente o que devia fazer se quisesse sair daquela enrascada. Loub voltou-se à ele e deu uma piscadela seguida de um aceno com a cabeça. Josh retribuiu e decidiu-se.

- Vai! - soltou Loub na direção de Hector com um leve empurrão.

O ex-Red Wolf correra mancando até o caçador-detetive. Mollock, por instinto, endoidecera de raiva. Lançou um urro rápido no ar e um rosnado logo em seguida, correndo a toda a velocidade na direção de Josh, intencionando ataca-lo, as garras prontas para uma investida. O caçador de aluguel sacara uma pistola calibre 45 e correu para o outro lado disparando incessantemente.

- Josh, não! - gritou Hector.

As balas ricocheteavam quando atingiam o corpo de Mollock indo direto para as paredes ou para o chão. Uma delas atingiu o ombro esquerdo de Josh em uma fração de segundos. O caçador rapidamente caiu, abatido, largando a arma. Ouviu um rápido gemido de dor por parte dele logo ao cair. Rolou pelo chão umas duas vezes, contorcido, o sangue jorrando em abundância. Tentou pressionar a ferida, mas, antes que tivesse a chance, Mollock já se via próximo o bastante para lançar um golpe mortal. O rei erguera uma mão com as garras reluzindo à luz dos candelabros no teto.

- Não vou deixar! - berrou Hector, sacando um revólver e apontando para Mollock. Loub ficara aturdido assistindo á cena, sem ação.

As garras de Mollock desceram contra o corpo de Josh quase que imperceptivelmente. Um som baixo de pele sendo esfaqueada foi ouvido. Josh sentiu as garras atravessarem a lateral de seu corpo como inúmeras facas cirúrgicas entrando de uma só vez. A pior dor que temia estava sentindo naquele exato momento. Vomitou uma certa quantidade de sangue no chão.

Hector, rápido como um foguete, atirou na cabeça de Mollock, que logo rolou pelo chão, mas quase não sentindo nada do disparo. Já estava se levantando quando pequenas gotículas de sangue escorriam pela sua testa para sua boca. Lambeu uma gota, sorrindo. "Armas humanas...", pensou ele.

O corpo de Josh gemia e tremia, quase agonizante. Hector foi se aproximando lentamente dele... com enorme pesar nos olhos marejados. Agachou-se ao lado do amigo gravemente ferido.

- Seu tolo. - disse ele. - Deveria ter escapado enquanto teve a oportunidade.

Josh o olhou, forçando um sorriso, os brancos dentes sujos de sangue.

- Hector... você é um cara de muita sorte, sabia?

- Por que diz isso?

- Tá brincando? Essa é a criatura mais poderosa que já vi um caçador enfrentar. - fez uma pausa, tossindo fortemente. - O Mestre ficaria muito orgulhoso. Se lembra que no acampamento você era minha maior inspiração? Você era o melhor do grupo de seleção, vencia todos os testes.

- Sim, eu lembro... como se fosse o dia de ontem. - disse Hector, os olhos lacrimejando.

- Pois é... eu posso estar sentindo essa dor insuportável aqui, mas eu me sinto feliz.

- Pelo quê? - a voz de Hector estava trêmula.

- Por ter dado o meu melhor... e principalmente por ter sido o seu parceiro... isso é um mérito que jamais vou me esquecer. - Josh já estava ofegando de modo dramático, a ferida expelindo um sangramento constante. - A gente sobrevive com um só rim, não é? Diz que é verdade...

Hector baixara a cabeça, fechando os olhos, as lágrimas tomando seu curso pelo rosto.

- Ahn... Hector. Bruxas conseguem se comunicar com espíritos? - perguntou, os lábios ressecando.

- Eu não sei. - disse o caçador, balançando levemente a cabeça. - Talvez, quem sabe.

- Eu espero que sim, porque... diga para Eleonor que ainda vamos nos encontrar... no lado de lá.

- Eu também desejo que isso aconteça, Josh. - disse Hector, não resistindo ao choro.

- Por favor, não ponha a culpa nela por ter me chamado... ela não sabia... ela não quis me pôr neste cerco para que eu morresse. - seu olhos já estavam adquirindo um tom cinzento. - Minha família não vai saber que morri... você dará a notícia à eles, Hector, faça isso por mim. Diga que morri fazendo o que gosta e com orgulho. Orgulho de um caçador. Me prometa, Hector, me prometa.

- Sim, sim, eu prometo, Josh, seus pais ficarão sabendo. - barrou as lágrimas que viriam. - Eu juro, pela honra da Legião, que sua morte não terá sido em vão. Iremos vinga-lo. Todos juntos.

- Isso. - forçou novamente um sorriso. - Acaba com todos eles, amigo. Esse merda que tá aí atrás de você... ele tem que morrer. Depois que mata-lo, tira a pele e vende para um bom taxidermista... por um preço justo. - tossiu mais sangue, sem forças restantes para falar. - Eu queria ir pra casa... mas acho que tá na hora de me mudar... Adeus.

Os olhos de Josh pararam de mover-se. Permaneceram abertos. O último suspiro mal foi dado. Hector, engolindo em seco aquele terrível fato, pôs a mão sobre os olhos do companheiro de caçada e os fechou. Levantou-se, cabisbaixo. Foi andando em direção à Loub com um olhar vago e tristonho. Um aperto no coração o sufocava. Loub estava de pé, olhando triste para o corpo de Josh.

- Garoto teimoso. - disse o cientista, lamentando. - Aconselhei a não atirar se caso visse Mollock e que fugisse quando fosse atacar. - voltou-se para Hector, hesitante. - Eu sinto muito, Hector.

O caçador-detetive, em câmera lenta, virou seus olhos para Loub, convertendo-os de tristeza e dor para ódio e desprezo. Não tardou para que se visse engatilhando seu revólver... e apontando-o diretamente para Loub.

O cientista recuou vários passos, espantado. Os olhos de Hector fervilhavam novamente em fúria.

- Ei, ei, muita calma nesta hora, rapaz. - disse Loub, mostrando a palma da mão, em um gesto para pedir que pare. - Meus conflitos com você acabaram há um bom tempo. Não me culpe pela morte do seu amigo.

- Mas é claro que devo culpa-lo. - disse Hector, frio como um iceberg. - Você criou estas malditas quimeras, dando início à profecia que traria de volta Abamanu. Você sente muito... e vai sentir... vai sentir uma dor tão forte quanto a que estou sentindo agora.

- Espere, Hector, não está entendendo. Mollock... Ele é o verdadeiro inimigo! - exclamou Loub. - Estou amargamente arrependido por tudo que fiz! Faria de tudo para voltar atrás...

- Mas isto não é possível! - disparou Hector, chegando mais perto, o revólver em riste. - É óbvio que está dizendo isto porque está nesta foça que Mollock o colocou! Onde está aquela sua postura arrogante e maquiavélica de outrora? Hein? Onde está? - balançou levemente a arma. - Mollock conseguiu transformar você em um carro velho e sem combustível quando antes era um trem desgovernado. Você está com esta pose deplorável porque perdeu tudo que tinha para sua própria criação!

- Eu não o criei! - defendeu-se Loub.

- Metade dele sim! - retrucou Hector. - Suas defesas caem por terra só com a menção do fato de você ser o precursor de todo esse caos que gerou esta guerra. Os Red Wolfs deveriam escolher pela opção mais prudente: Abandonar a crença cega e seguir com suas vidas. Você enxerga algum significado em toda a loucura que você e seus antigos colegas tanto sustentavam?

- Não. Honestamente, não. - disse Loub, olhando de relance para o cano do revólver de Hector. - Deve estar pensando que tive que passar por tudo isso para perceber o erro terrível que cometi. E está certo. Estou pensando nisso agora. - olhou para um canto do chão. - O horror que causei... se eu tiver que sobreviver a este erro será me redimindo... e se eu tiver que me redimir vai ser me aliando à você, Hector.

- Isto é bem ridículo da sua parte, Loub. - redarguiu Hector, nada convencido. - Já é tarde demais para se lamentar... para se martirizar mediante aos erros... sobretudo para pedir perdão! - esticou o braço, aproximando a arma para o cientista.

- Não! Não, por favor, não acho bom que se precipite. - disse Loub, em tom tranquilizador. - Você precisa abrir sua mente para novas possibilidades, Hector. Admita que agora você me vê como uma vítima e não mais como o vilão. Admita que podemos ser aliados... talvez, quem sabe, amigos. - o olhar de Loub aparentava ser mais de carência do que de arrependimento.

- Diz o homem que criou o monstro que matou o meu pai! - continuou Hector, irredutível. - Eu cheguei até aqui por uma razão... Eu vou saber aproveitar esta oportunidade como jamais pensei no início. Não faz ideia das noites e dias que passei sonhando com este momento. - seus passos eram sorrateiros e lentos. - Se lembra de Rosie? Por sua causa houve uma quebra de confiança entre nós... por uma chantagem sua, uma ameaça... como você acha que vou olhar para ela e saber como me portar? Olhando para ela e lembrando daquela noite horrenda. A pior que já vivenciei em toda a minha vida. - Hector destravara a arma, os projeteis prontos para serem disparados.

Loub assentiu rapidamente com a cabeça, compreendendo o verdeiro sentido da raiva do caçador.

- Agora consigo entender. - mordeu os lábios, olhando para baixo. - Eis o motivo da sua vinda a este belo museu e da sua vingança: 50% de Mollock e, principalmente, eu. Dois monstros.

- Finalmente admitiu, meu pai! - uma voz macabra ressoou pelo recinto. Mollock se levantara por completo. Estava todo aquele tempo quase agachado, ouvindo, em silêncio, a discussão entre Loub e Hector.

- Eu adoraria confirmar que estivesse morto ao invés deste jovem que você assassinou a sangue frio. - disse Loub, voltando-se para Mollock, o olhar duro e sério.

- Tão a sangue frio quanto as pessoas inocentes que você sequestrou e usou como cobaias. - atacou Hector, novamente.

- Hector, há duas soluções prudentes para você: Abaixar esta arma e deixar o passado no seu devido lugar: no passado. - afirmou Loub, categórico. - Além disso, tenho algumas coisas que preciso contar... Mas não interprete como segredos obscuros, não planejei nada para esta situação em que estamos!

- Hum, isso é interessante e instigante. - disse Mollock, irônico. - Que tal começar pelo mistério do senhor não ter se transformado em um dos meus soldados!

- Quer mesmo saber? - Loub voltou-se para Mollock exibindo um sorriso enigmático. - Pois bem... - tirou algo do bolso de sua surrada e suja calça comprida preta. - Isto aqui foi a chave para a minha salvação. - mostrara uma seringa vazia e sem agulha.

Mollock e Hector o fitaram igualmente desconfiados. O caçador não desvencilhava-se da decisão de manter a arma apontada para o ex-Red Wolf. Mollock, por sua vez, excitava-se de ansiedade.

- O que significa isso? - perguntou Hector, o tom de voz inalterável.

- Eu é quem pergunto! - vociferou Mollock. - O que significa isso? Meu pai, o que esteve fazendo durante todo o tempo que passamos juntos?

- Durante todo o inferno que passei ao seu lado, Mollock, eu estive injetando em mim o "líquido da salvação". - balançou de leve a seringa, como se estivesse provocando seu "filho". - Sendo mais claro... este líquido impediu que o efeito da mordida contagiosa chegasse à minha corrente. Em outras palavras, ele foi "acionado" no exato momento em que aquela quimera estava com suas presas cravadas no meu pescoço.

- Impossível! - esbravejou Mollock, inconformado. - Você foi mordido! Eu vi!

- Eu pude sentir meus olhos se alterando... depois apaguei. Quando acordei, me vi em uma cela imunda, preso como um animal selvagem enjaulado neste zoológico de horrores. - encarou Mollock com uma avidez agressiva. - Para minha felicidade, não senti nada de anormal no meu organismo. No silêncio quase absoluto daquela sala eu ouvia meu sangue circular... estava como deveria estar. Normal. Limpo.

Mollock cambaleara enquanto andava para um lado, apoiando-se em um tampo de vidro no qual exibia-se uma espada da Era Colonial. Sentia uma náusea invadir sua garganta. Precisava de um instante para conseguir digerir aquelas verdades até então secretas.

- Criou um antídoto secretamente e fez questão de esconde-lo para que usasse a seu favor em uma ocasião conveniente. - acusou Hector, deduzindo.

- Não! - exclamara Loub, irritado. - É bem verdade que, na época, não me passava pela cabeça a ideia de produzir mais desse antídoto quando eu fosse capturado. Eu seria encaminhado a um interrogatório e ainda teria direito à um advogado. Neste interrogatório eu revelaria a existência do antídoto, porém, as circunstâncias não conspiravam a meu favor. - fez uma pausa, recuperando o fôlego. -Se esta besta infernal não estivesse no meu caminho, o antídoto seria produzido em abundância, mesmo que eu temesse ser preso em pouco tempo depois. Mas vendo a realidade como ela é... posso ver que fiz bem em criar somente poucas quantidades. Eu não tinha tempo suficiente.

- Porque, meu pai, porque!? - disse Mollock, em voz alta, amargurado. - Por que fazer isso comigo?

- Você merece isso e muito mais, seu monstro asqueroso. - disse Loub, humilhando-o. - E para sua informação, uma dose não foi suficiente. Eu senti recaídas. Por isso, guardei comigo, antes de ser preso, mais quatro frascos no meu bolso. Quatro doses foram o bastante. Matou o vírus por completo. Dias depois me senti somente um homem encarcerado e arrependido de seus atos.

- Como isto seria possível sem antes passar por uma revista policial? - indagou Hector, ainda apontando o revólver para Loub.

- Me prenderam cedo demais e com pressa demais. - respondeu ele, seco. - O que veio depois? Cela. Eles já consideravam meus laboratórios como provas incriminatórias suficientes. Revistar seria pura perda de tempo.

Hector pensara um pouco a respeito. Loub tentara uma medida desesperada e potencialmente arriscada. Antes que a polícia arrombasse as portas do seu pequeno-médio castelo no meio da floresta, o cientista estava recolhendo as primeiras amostras do composto líquido que barraria qualquer ação virulenta de caráter infeccioso e degenerativo em um organismo vivo. Tudo para guardar a surpresa para o  grand finale. Após este feito, escondeu-se em uma sala, aguardando a chegada de polícia com uma arma em punho...

- E não foi só isso. - disse ele, prestes a acrescentar mais um detalhe importante. - Havia um elemento crucial... que apenas eu, como inimigo de Mollock, possuía. Eu tinha a arma secreta o tempo todo... somente esperei o momento certo para agir com ela. - olhou para Hector por um instante e, em seguida, sacou um revólver de mesmo calibre que o do caçador... mas acabou por apontar para Mollock.

O rei franziu o cenho, confuso. Um sorriso de escárnio foi se formando em sua larga boca, logo evoluindo para uma histérica risada, deixando mostrar as longas presas. A crise de risos de cunho quase psicótico cessou após cerca de dois minutos.

Mollock já sentia sua barriga doer de tanto rir.

- Sabe, papai, agora que o senhor declarou-se um inimigo meu, tenho que admitir que, depois do discurso honesto, esperava que o senhor me surpreendesse. Mas vejo que estou enganado! - seu tom logo alterou-se, indo do cômico ao ríspido.

- Pode me dizer o que espera conseguir com uma simples pistola? - sussurrou Hector. - Matar Mollock? Com isso?

Loub dera uma piscadela discreta para ele, escondendo o jogo por mais uns instantes.

Depois, finalmente, obrigou-se a falar.

- Apresento a vocês o Coringa do meu baralho. - afirmou Loub, balançando a arma de leve, mirando no coração de Mollock.

- Uma mera arma humana que meu próprio pai está apontando para mim!? E com a intenção de me matar!? - perguntara Mollock, demasiadamente incrédulo.

- Não exatamente a arma, mas o que está dentro dela. - salientou Loub, um pouco mais calmo. - Hector, devo dizer que, na época em que eu era professor na universidade, John, o seu pai, me foi de grande ajuda. Ele me emprestou seus livros de caçada e havia um tópico... que jamais imaginei que seria tão adequado para este momento. - disse ele, rememorando sua falsa amizade com o pai de Hector. - Eu estava curioso para saber do que se tratava o manual para um caçador e ele me emprestou gentilmente aquele livro. Li sobre como se matava um vampiro. Eles tornavam-se pó após serem mortos com uma estaca de bronze no coração. - fez uma pausa, olhando de relance para Hector, sorrindo. - Cinzas de vampiro. Um veneno mortal para qualquer licantropo, seja um dos meus, criados em laboratório, ou um dos puros, como os Lycans.

"Ele está certo.", pensou Hector, surpreso. "Antigos caçadores recorriam a esta forma alternativa de se matar um licantropo quando a estaca de prata se tornava inútil durante uma luta. Era bastante eficaz, de acordo com o livro".

Mollock percebia a autenticidade da ameaça tornar-se mais evidente. Retesou os músculos, pois, havendo o que houvesse, deveria estar preparado para absolutamente tudo.

- E então, Mollock? O que acha de experimentar? - Loub deu alguns passos para frente, sem escapar da mira insistente de Hector. - Só aviso que apenas uma parte sua será afetada. Uma vez espalhadas na corrente sanguínea diretamente por uma artéria do coração, as cinzas, automaticamente, tornam o sangue impuro e tóxico. O seu "eu" quimera será liquidado. - fez uma pausa, respirando fundo. - Pode-se dizer que, dentre os efeitos posteriores, sua parte demônio sofra um severo coma do qual, provavelmente, não poderá sair tão cedo. De qualquer forma, você será completamente neutralizado.

Uma onda de pânico atingira Mollock como a poderosa carga elétrica de um raio. Sua respiração ficava pesada a cada minuto. Ao recuar alguns passos, Loub dera uma rápida risada.

- Ha-ha! Aí está! Ele sentiu a noção do perigo! - disse ele, satisfeito com a reação. - Viu isso, Hector? Agora pode abaixar esta arma. Agora somos nós dois contra ele!

O caçador não saberia como decidir. "Loub... você me provou que sabe muito bem esconder suas segundas intenções. Se o que estiver dentro da única bala desta sua arma não for nada de cinzas, terei mais um motivo para me vingar. Portanto, eu não vou baixar esta arma até você me convencer.".

- Eu me recuso. - disse Hector, friamente. - Neste jogo perigoso sou eu que decido quem vive e quem morre. Ainda mantenho minha decisão, Loub. Não pense que com esse trunfo vai deixar de ser um alvo. Mesmo que meu braço passe a ficar dormente, irei aguentar até o fim... até me convencer de que está falando a verdade.

- Mas... mas... - gaguejou Loub, preocupado. - Ainda desconfia que eu possa estar armando contra você!? Conspirando com esse monstro!? Eis a prova, Hector, bem aqui nesta arma que seguro! - balançou o revólver freneticamente. - Não tenho mais nada a esconder! Eu só não posso tirar a bala para provar á você, pois ela já está carregada e pronta para disparar. Além do mais, estou com pressa para acabar com esse monstro de uma vez por todas! Portanto, à esta altura, eu mereço um único voto de confiança. E quem melhor para fazer isso, senão você, Hector? - alterara o tom de voz desesperado para um mais amigável.

O caçador pensara profundamente sobre a árdua questão. Decidir o destino do mandante do assassinato de seu pai era teoricamente fácil. Na prática, o inverso se mostrava cruel. Foi baixando o cano da arma lentamente, à medida que seus pensamentos fluíam de modo menos caótico. "Eu não posso contrariar meus princípios! O meu propósito de estar aqui... Loub pode estar sendo sincero, no entanto, não posso baixar a guarda e abrir brechas para um possível contra-ataque dele. E se ele estiver realmente querendo matar Mollock para em seguida assumir o controle?", pensou Hector, com o máximo de cuidado.

- E então, Hector? Você está comigo ou não? - perguntou Loub, dando ao caçador uma última chance para decidir. - Não é uma bala de prata, mas de aço inoxidável. Havia um buraco debaixo dela e aproveitei para pôr um pouco das cinzas. É pouco mas é o suficiente, eu lhe garanto. - foi acompanhando o revólver baixar.

Hector ergueu um olhar cansado para Loub.

- Os ideias da fraternidade... Como ficam?

- Eu não me importo mais. Eu só quero matar Mollock e recomeçar minha vida. - garantiu Loub.

- Sabe que seu filho faz parte do novo clã e que assassinos estão participando das seitas.

- Sim. Josh me contou enquanto estávamos perdidos. Michael transformou a irmandade em algo similar a uma facção criminosa.

- E não lamenta por isso? - as perguntas de Hector foram ficando mais incisivas. - Seu filho pode morrer, sabia?

- Digamos que me dei conta de que ele consegue viver sem mim. Talvez não esteja sentindo minha falta. Mas eu o amo. - olhou para um lado da sala, pensativo, a arma permanecendo apontada para Mollock. - Vou sentir pela perda dele, se caso ele vier a falecer. Por favor, não me entenda mal, não quero parecer insensível.

- Mas você é insensível. Por isso mandou seu primeiro monstro matar meu pai. - Hector aproximava-se dele ameaçadoramente.

- Hector, por favor, não voltemos ao epicentro deste terremoto. Eu já provei que estou arrependido, droga! - exclamou, já impaciente por tudo aquilo e mantendo distância de Hector. - Eu imploro, Hector. Me dê só mais uma chance. Tudo o que passei naquela jaula me mostrou que eu devo repensar sobre meu conceito de vida.

- Você até poderia matar Mollock... mas jamais eu o queria como aliado. - Hector parara bruscamente. - As cinzas estão aí, pois posso sentir o cheiro forte delas, mesmo que em pouquíssima quantidade. - engatilhou novamente a arma e erguendo a coluna. - Mas não vai ser você quem matará Mollock...

- Então tome. - disse Loub, entregando o revólver à Hector educadamente. - Faça-o por mim. Pelo seu amigo.

- Sim... farei algo por Josh... - manteve um ar de mistério em seu semblante. - ... mas antes farei algo por você.

Loub inclinou-se para ouvir, esperançoso.

- Diga-me, por favor.

- Isto.

Um tiro ecoou por todo o espaço, a onda sonora assustadora atravessando as paredes.


                                                                              CONTINUA...

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