Capuz Vermelho #22: "Avante, Legião!"


Nota do capítulo: Partes em itálico representam flashbacks ou menções específicas.

CAPÍTULO 22: AVANTE, LEGIÃO!


O Guia aparentava estar petrificado diante daquela invasão arruinadora para seus intentos mortais. Apenas as espadas, cobertas em brasas, moviam-se, pendendo quase prestes a cair. Sua face sem rosto mirava naqueles quatro jovens perseverantes que ali estavam, encorajados por uma força de vontade singular. "Maldição!", pensou ele. "Lorde Abamanu havia me garantido que eles ficariam completamente fora do caminho pelo menos até o fim de minha missão! Será que... Ele havia me ocultado algo que eu não deveria saber?". Abamanu, sagazmente, tratou de manter seu sigiloso acordo com os Coletores como uma valiosa joia trancada em uma caixa inacessível e a sete chaves. Era fácil imaginar como seria estressante e desconfiante por boa parte do tempo ver que um subordinado, de uma classe declarada inferior, carregaria na mente uma informação impactante como aquela. Apenas os soldados do alto escalão tinham o digno direito de saber todos os detalhes do acordo. Rememorou, em um transe entorpecente, sua mais recente - e provavelmente derradeira - conversa com o Cavaleiro da Noite Eterna.

                                                                                 ***

Aquela criatura magérrima, esquelética e de pele meio beje estava imersa em um ar pesado naquele espaço escuro. Apenas uma fonte luminosa se fazia existir naquele recinto: Um buraco precisamente circular no teto dava entrada à uma luz embranquecida... banhando aquele corpo fino e flutuante, destacando um certo aspecto solitário. Podia-se ver que as paredes ao redor eram de uma pedra esverdeada escura, podendo-se notar os pilares de sustentação que recebiam mínimos fragmentos da luz que descia no centro. 

- Lorde... - ele tentava vasculhar na mente palavras decentes para proferir aquela dúvida. - Ainda estou intrigado sobre a minha escolha para uma responsabilidade tão árdua como a que me propõe. Por que eu? - ergueu sua cabeça, fitando seu superior, as cicatrizes quase reluzindo à claridade. 

Um silêncio mortal durou alguns minutos. 

Uma voz igualmente cavernosa à do Guia ressoou da escuridão. Uma voz, porém, de tom amedrontador. Entrevia-se contornos cinzentos de um enorme trono... e uma figura imponente sentada nele. 

- Não escolho súditos à missões de força maior à toa, que fique bem claro. Por alguma razão eu vi em você uma inclinação única para conduzir a minha preferida pelo caminho que eu modelei. 

- É apenas uma mortal, senhor. - redarguiu ele. - Qual a razão para insistir com um plano destinado a um ser de tamanha insignificância?

- Suas perguntas são de revirar entranhas, seu verme! - vociferou ele. - Ela possui algo dentro de si mesma que pode decidir o destino de minha guerra com Yuga. 

- E o senhor pretende usar o que há dentro daquele corpo sem saber exatamente do que se trata? 

- O que eu almejo é usar o poder de Yuga contra ele mesmo. 

- Usar a mortal como arma? Fazer o feitiço voltar contra o feiticeiro... é isto? - perguntou, desconfiado. 

- Acaba de adivinhar a premissa de meu plano. Agora vejo que fiz uma excelente escolha. 

- Sei que não sou merecedor de saber tudo, mas... - fez uma pausa, relutante. - Sinto que há mais coisas escondidas... as quais devem ser, obrigatoriamente, colocadas em conspiração secreta. 

- O que está insinuando, Repo? - perguntou Abamanu, em tom severo. 

- Por favor, não me nomeie assim, meu Lorde. - encolheu os ombros, envergonhado - Sinto-me constrangido por ser comparado àqueles fracassados que o senhor deixou para trás já que fui designado a uma tarefa que tenho a honra de cumprir. Presumo que estejam se roendo de inveja agora. Eu apenas quis salientar meu desmérito para com as informações mantidas em segredos. 

- Eu não costumo argumentar sobre isso com meus soldados de menor posto. É uma padrão máximo compartilhar meus intentos secretos com meus privilegiados. - fez uma pausa, soltando um ar pesaroso e ruidoso em um suspiro. - Tendo em vista sua promoção, eu consideraria uma exceção para você. Entretanto, as circunstâncias não exigem isso. O que recentemente foi discutido em segredo deve permanecer como tal. - afirmou categoricamente, destruindo as esperanças do Guia de poder saber das reuniões secretas. 

Cabisbaixo, o Guia curvou-se novamente. 

- Quando devo iniciar minha missão, meu Lorde? 

- Em pouco tempo. O momento decisivo pelo qual tanto esperei está prestes a ocorrer. Esteja pronto. Ela perderá suas memórias, mas os conhecimentos básicos e prévios permanecerão. Os humanos que querem impedir meu retorno estarão focados nisso e serão atrasados quando entrarem em ação. Ficarão desesperados tentando salva-la, enquanto meu nobre receptáculo se fortalece. Eu estou a um passo à frente. Yuga está parado no mesmo lugar de onde ficou desde nosso último encontro... mas é previsível que ele surja no momento que achar conveniente. Ele vai intervir... e competiremos sobre de qual lado a mortal ficará. Eu irei salva-la... salva-la de suas mãos. 

"Salva-la de suas mãos"  

                                                                                     ***

Aquelas últimas palavras de seu encontro com Abamanu ecoaram em sua cabeça e jamais se desafixaram. "Yuga...", pensou. "O maior inimigo de meu Lorde também possui planos para Rosie.". Se desvencilhou de seus devaneios e voltou sua atenção para o grupo que o encarava, especialmente para o cano de um rifle com médio poder destrutivo mirado na sua cabeça por Adam, o líder.

- Eu já vou avisando: Largue as espadas! Acabou! - ordenou o caçador, autoritário.

Rosie observou os quatro jovens. "Vieram para me salvar, com certeza. Mas como e porque?". Reparou em uma jovem de cabelos ruivos alaranjados que a fitava preocupada. os dois olhares azuis se cruzaram. "Rosie... é bom vê-la sã e salva!", pensou Alexia, hesitantemente aliviada. Rosie percebeu o aspecto desesperado da moça. "Quem é ela? Parece aflita. Como se quisesse me dizer algo às pressas.", constatou.

Lester também apontava um rifle na mesma direção.

- Ahn.. Adam, o que você acha de seguirmos um padrão mais radical? Atirar primeiro e perguntar depois. - relanceou a figura de Adam. que não dava a mínima para o que ele dizia. - Estou afim de meter umas balas nessa coisa medonha.

Êmina o repreendeu bruscamente.

- O que nós conversamos sobre pressa mesmo, Lester? - fuzilou-o com o olhar.

- Chega! - disse Adam, por cima do ombro, com a clara intenção de evitar um novo desentendimento entre os dois. - Da próxima vez que brigarem eu vou atirar pra cima! - voltou-se para o Guia. - Muito bem, seu feioso! Nós sabemos exatamente o que você é: Um boneco Repo.

"Boneco Repo? Do que ele está falando?", perguntou-se Rosie, confundindo-se. "Seria este o nome real do Guia?". O Guia estacou, perplexo.

"Sabem até o que sou! Lorde Abamanu poderia, ao menos, ter tido a ideia de me fornecer informações sobre esses humanos enquanto eu observava Rosie concluir os desafios! Um movimento brusco e tudo estará acabado!", pensou ele, sem a mínima ideia de como barrar aquela operação.

Teve de ceder às ordens firmes de Adam. Rapidamente, as espadas foram sumindo, uma à uma, como se ficassem invisíveis, mas pareciam estar se desmaterializando. O Guia abaixou os braços, mas cerrando os punhos e erguendo a coluna para torna-la plenamente retilínea.

- Cometeu um grande erro ao pedir que me desarmasse. - disse o Guia.

- Por que? - perguntou Adam, em profundo estado de alerta, sem tirar a mira da arma.

A resposta para aquela simples pergunta iniciou com o Guia erguendo os quatro braços com os punhos fechados, deixando emanar uma impenetrável aura de energia concentrada. Todos o fitaram atônitos, como se, involuntariamente, sentissem que deveriam esperar um manifesto agressivo por parte daquela criatura robusta de quase dois metros e meio.

Após ter concentrado uma enorme quantidade de energia, o Guia baixara os braços em uma velocidade surpreendente, gerando um intenso impacto no chão de pedra que fez Rosie voar alguns poucos metros quando atingida por uma rajada de poeira. O golpe produzira uma espécie de "onda de pedra" que foi indo na direção do grupo a toda rapidez. O quarteto se jogou para ambos os lados na tentativa de escapar do ataque. A "onda" batera subitamente em uma parede, que se rachara quase que por inteiro, fazendo com que o teto vibrasse e caísse um pouco de pó lá de cima.

O chão ficou severamente destruído, em um rastro de destruição. Lester e Adam, que haviam pulado para a direita, levantaram-se olhando o resultado, estupefatos.

- Viu só? Não era para termos esperado! - disse Lester, em alarde. - Já chega. - carregou seu rifle e o apontou para o Guia.

Adam fizera o mesmo, percebendo que era a hora perfeita para agir em ataque.

Alexia preocupara-se com Rosie, que levantava-se do chão, tirando a poeira das vestes.

- Rosie! - disseram Alexia e Êmina, quase em uníssono.

Os dois caçadores, sem perder mais nenhum segundo, dispararam a toda disposição na criatura. O corpo se Guia se remexeu e se contorceu violentamente enquanto as balas faziam enormes estragos, recuando alguns passos.

Os disparos não cessariam até que o ser que conduzira Rosie àquele suposto fim da linha estivesse completamente caído e agonizando rumo à morte. As balas continuaram sendo disparadas dos dois rifles, os olhares dos caçadores exibindo uma característica vingativa e agressiva. Alexia e Êmina tentavam ajudar Rosie, que tapava os ouvidos devido ao barulho ensurdecedor dos tiros. A levaram para longe da zona de perigo.

Já podia-se ver sangue sendo derramado no chão. O Guia gemia de dor, suportando o máximo que aguentaria, tentando fixar seus pés no solo. Quando deu por si, já se via abatido completamente. Os últimos dois disparos o acertaram bem na cabeça brutalmente. Sentiu suas musculosas pernas ficaram bambas e trêmulas e um calafrio percorreu-lhe o corpo inteiramente baleado. Saía fumaça a partir dos buracos de bala feitos em seu corpo, bem como uma boa dose de sangue. Seu corpo gigante caiu com um baque assustador no chão, levantando a poeira fina. "Acho que quem está vivendo o pesadelo sou eu desta vez.", pensou, sem forças. "Jamais pude imaginar que eu fosse ser tão frágil. Que tipo de criatura eu sou, afinal? Que tipo de criatura é esta que mal conhece a si mesmo!? Eu não me perdoo por isso! Eu me odeio!"

- Fique aqui, Rosie, é bom não se aproximar. - disse Êmina. - Vai se surpreender... de novo. - ela sacou seu giz e olhou para o desfalecente corpo.

Agachou-se e desenhou no chão um símbolo alquímico para realizar transmutação.

Pôs as duas mãos sobre a imagem e uma luz azul emanou com pequenos raios intermitentes. Como se estivessem armazenados debaixo da terra, pontiagudos ferros saíram do chão ao mesmo tempo em diferentes posições - inclinados ou retos -, perfurando o corpo do Guia em todos os pontos, dos pés à cabeça. Tal ação fora pensada como uma maneira mais segura de mantê-lo preso, na falta de algemas, cordas ou correntes.

O Guia tremia e gemia incessantemente, sem conseguir mover nenhum músculo.

- Mas o que é isso!? - exclamou Rosie, aturdida. - Que tipo de pessoa você é? Como fez isso?

- É uma longa história, mas eu tenho certeza que você saberá de tudo e mais um pouco quando voltarmos pra casa. - disse ela, aproximando-se e sorrindo. - Será que eu devo me apresentar?

Alexia a olhou com estranheza.

- Êmina, nós ainda precisamos achar a saída e isso pode levar algum tempo. Ter matado esse monstro não pareceu garantia de que nós nos safamos. - disse ela, mantendo-se preocupada.

- Como assim? Por que você diz isso? - perguntou Rosie, inquieta e curiosa.

Êmina interveio, pondo a mão no ombro da jovem.

- Olha, Rosie, esta é Alexia, ela é vidente, e geralmente não costuma nos contar suas visões. - disparou ela, para o desagrado da companheira.

- Êmina! - protestou a ruiva, olhando-a com reprovação. - Eu faço isso por uma questão de segurança. Não quero deixa-los preocupados. - voltou-se para Rosie. - Veja bem, Rosie: Sabemos que está com várias perguntas na cabeça, mas nós garantimos que todas vão ser respondidas. Vai recuperar suas memórias. - disse, com ar esperançoso.

Um leve sorriso foi deixando se formar no rosto de Rosie lentamente, logo evoluindo para um mais largo e risonho. Esperava ter aquela reação desde muito tempo. Precisava sorrir para o futuro mesmo em meio ao caótico presente. Uma lágrima desceu pela sua alva pele. Olhou para as duas moças à sua frente, também sorrindo, querendo abraça-las, mesmo que não se lembrasse de absolutamente nada em relação à elas. Necessitou sentir aquela confiança em alguém verdadeiramente.

Adam e Lester, após recarregarem suas munições, correram na direção delas.

- Bom trabalho, Êmina. - elogiou Adam. Olhou para Rosie, a expressão alterando-se de séria para uma mais aliviada. Foi até ela.

- E Rosie... - pôs uma mão sobre seu ombro. - É muito bom reencontrar você... viva. Eu sonhei com esse momento todas as noites. Todos nós, eu acho. - sorriu levemente.

- Humm. - gemeu Lester, maliciosamente olhando para Adam.

Êmina, novamente, o repreendeu, desta vez dando um cotovelada em seu braço, sem olhar para ele.

- Au! Isso dói, caramba! - reclamou ele.

Rosie enrubesceu instantaneamente. Assentiu para Adam, agradecendo pelo apoio.

- Eu apenas posso dizer uma só coisa: Obrigada. Todos vocês. - olhou à sua volta, ligeiramente feliz.

Uma poça de sangue se formara no ponto onde o Guia jazia semi-morto, nos últimos instantes de sua vã existência. Se fosse vista de cima, seria entendida como um enorme círculo rubro crescendo vagarosamente, banhando o chão. O ser esquelético entortava o pescoço apenas para observar a breve reunião dos amigos, enraivecido pela derrota. "Malditos sejam!".

O grupo caminhou em direção ao largo corredor, cujo fim abrigava duas portas separadas que levavam para as chamadas Cidade da Mentira e Cidade da Verdade. Mas Rosie sabia que era mais uma enganação. O lugar onde estavam era um castelo, situado em uma época medieval em algum universo alternativo. Sendo assim, as portas, obviamente, levariam para outros corredores e compartimentos da estrutura. Passaram pelo corpo do Guia aprisionado entre aqueles grossos ferros pontudos. Ignoraram-o, como se isto tivesse sido combinado antes de retomarem o caminho.

Ao pisarem no corredor, foram parados pela gutural voz daquele ser.

- Ei! Esperem! A vitória que obtiveram é tristemente efêmera! Não estão livres ainda!

- Você ainda não morreu!? - disse Lester, franzindo a sobrancelha.

Adam voltou-se para ele, logo em seguida se aproximando calmamente.

- Você foi vulnerável demais para nossos padrões. - disse o caçador, friamente. - Com essa aparência de gigante, pensamos que fosse tão imbatível quanto dizia ser. Digo que saímos daqui decepcionados. Mas satisfeitos por termos chegado a nosso objetivo. O seu, pelo visto, desmoronou só com a nossa chegada. Tem o corpo todo feito de pele humana... por isso não está resistindo aos ferimentos.

- É mesmo. - disse Rosie, pondo a mão no queixo, pensando em algo. - Quando eu estava o agredindo, eu pude sentir que a pele dele tinha uma flexibilidade igual a de um ser humano. Nem quero saber porque ele foi criado assim. - afirmou ela, olhando-o com frieza.

- Espera, você bateu nele? - perguntou Lester, incrédulo.

- Sim. Não foi tão difícil. Possuída de raiva, era o mínimo que eu podia fazer. - respondeu ela, com satisfação.

- Você teve sorte, Rosie! - vociferou o Guia, arquejando. - Eu tinha a intenção de facilitar as coisas para você naquele momento, apenas com o fato de eu usar a minha primeira transformação!

Todos o encararam, intrigados.

- Primeira? - perguntou Rosie. - Então quer dizer que...

- Sim! Essa é a primeira de quarenta das transformações! - respondeu ele, sua força de vida esgotando-se. - Eu optei por usar esta porque eu achava que com ela eu a mataria mais rapidamente! Mas não! Se não fosse pela chegada destes humanos miseráveis, você não teria a menor chance contra mim!

- Era uma luta injusta, seu idiota! - disparou Rosie, ríspida. - Quatro espadas pegando fogo contra uma adaga!? Você queria ganhar de modo sujo, mas nós vencemos de modo justo.

- Que seja! Lorde Abamanu irá ressurgir em seu mundo! - disse o Guia, logo chamando a atenção do grupo por definitivo. - Vocês tem um ínfimo tempo! Em apenas duas horas, ele despertará seu novo reinado no lugar onde pisou pela primeira vez naquele mundo!

O quinteto se entreolhou, atônitos. Adam lembrara-se subitamente da conversa que teve com o Coletor. "Controle-se Adam. Você não vai dizer absolutamente nada. Não estamos mais sendo vigiados... ele falou a verdade, parecia sincero. Eu fiz um juramento contra minha vontade para salvar a vida dos meus amigos. Me sinto péssimo por causa disso, mas acho que valerá a pena.".

- Enquanto meu tempo de vida se esvai, o de vocês, automaticamente, também! - disse o Guia.

- O que quer dizer com isso? - perguntou Adam, rigorosamente.

- Nós fomos concebidos para sermos apenas insetos insignificantes. Mas somos os insetos insignificantes mais letais já criados! - fez uma pausa, arquejando mais fortemente. - Em menos de dois minutos, meus irmãos virão aqui para vingar minha morte! É assim com qualquer Repo que morre! Possuímos um mecanismo que é "ativado" quando morre um de nós e nos comanda a fazer uma vingança! - revelou.

- Tipo as formigas - disse Lester -, quando matamos uma delas e toda a colônia fica meio "doida" por causa disso?

O Guia moveu o pescoço esforçadamente para um lado, o sangue ainda escorrendo por todas as partes de seu corpo.

- Isto mesmo. Compare-nos à insetos! - exclamou ele, aborrecido. - Eu, definitivamente, não mereço estar no pedestal em que fui colocado! Mas esta foi a minha vida! Ainda que derrotado, sinto-me orgulhoso, honrado!

- Pouco nos importa sua honra. - afirmou Adam, com o olhar severo. - O seu deus cairá como você, agora, agonizando de dor. Vamos, pessoal. - e caminhou pelo corredor, indo na frente, ajeitando as alças de sua mochila nas costas.

No entanto, o Guia insistira em falar suas últimas palavras, desta vez direcionadas somente à Rosie, repentinamente parada por sua voz exasperada.

- Rosie! Espere, por favor! - pediu ele.

A jovem parou e virou-se lentamente, o encarando com desdém. Êmina, Alexia, Lester e Adam iam devagar na frente, já sabendo que a conversa seria breve. Não pareciam estar preocupados com a chegada dos irmãos do Guia, assumindo a ideia de que seriam tão fracos em suas formas originais quanto o irmão decadente.

- O que é? - perguntou ela, fria como um cubo de gelo.

- Eu tenho plena convicção de que exerci um papel de suma importância para o seu crescimento nesta jornada. - arquejou mais uma vez. - Você redescobriu suas inclinações. Aprendeu com os perigos que passou. - fez uma pausa. - O monstro que habitava a floresta. O assassino do baile. O gigante gladiador. Os pégasos que guardavam o caminho do viajante. Eu... agora, pergunto à você, Rosie: O que conclui a respeito de todo nosso aprendizado?

Os olhos de Rosie se fixaram na deplorável situação em que o Guia se encontrava. Por um lado, sentia-se desiludida e decepcionada, como se fosse a primeira vez que se via mediante àquela experiência. Por outro, restava uma plena e inabalável sensação de liberdade. De alguma forma, ela lhe seria grata se o processo tivesse o fim prometido, não pela recuperação das memórias, mas pelo preenchimento de um vazio que a solidão proporcionaria se caso seguisse sem rumo, sem orientação e sem noção dos perigos e meios de sobreviver às mais diversas situações-problemas que surgiriam pelo caminho. Embora chateada e passando a odiar aquele ser do fundo de seu coração, Rosie enxergou seu enorme papel. Ele fez sua parte. E aquilo bastava.

- O que eu concluo? - perguntou ela, fingindo pensar em algo para responder. - Que você teve o que mereceu. - virou as costas e saiu andando pelo corredor para alcançar os outros. - Adeus. - disse, por fim.

O Guia lançou um rosnado de aborrecimento e passou a esbravejar contra Rosie enquanto a mesma se afastava em direção à saída.

- Eu só queria estar lá para ouvir você e seus amigos gritarem de dor! - vociferou. - Irão vivenciar um castigo que jamais se esquecerão! A tortura é o caminho mais lento para uma morte significante!

- Blá-blá- blá. - resmungou Êmina, andando ao lado de Rosie. - Me pergunto como você conseguiu aguentar.

- Nem me fale. - respondeu ela, andando mais depressa igualmente como os outros.

Enquanto os últimos segundos do Guia estavam sendo contados, naquela sala quadrada alguns seres cinzentos e vestindo armaduras velhas e mal-feitas se materializavam em todos os pontos. Possuíam olhos vermelhos brilhantes, rostos esqueléticos e enrugados e usavam elmos metálicos e negros que reluziam. Surgiam como se inúmeros grãos de pó se unificassem e os criassem ali mesmo. Desembainharam, simultaneamente, suas espadas com dentes nas lâminas e bradando um aterrador grito de guerra, seus olhos irradiando uma luz vermelha como laser. Colocavam-se a postos como elfos em direção ao campo de batalha frente à ao exército do inimigo.

O quinteto, ao perceber a vinda rápida dos seres, se pôs a correr já na metade do longo corredor. Aquele pequeno exército - que nada mais era que uma espécie mais elevada de bonecos Repo - avistou os executores de seu irmão de raça e correram furiosamente. Mais deles surgiam a cada minuto, seguindo a mesma direção.

Lester corria e olhava para trás o tempo todo.

- É meio diferente do que eu esperava! - já estava ofegante demais para falar muito. - Posso atirar?

- Não! - berrou Adam, lá na frente. - Nós ainda temos mais um problema. - fixou seus olhos nas duas portas. - Êmina pode cuidar disso!

O exército arrastava-se como uma multidão em alta velocidade, empunhando suas espadas prontos para perpetrar um golpe. Êmina fora a única a parar a corrida, virando-se para aquela onda de bonecos Repo que se aproximava e aumentava como se estivessem multiplicando-se. Sacou seu giz depressa e desenhou um símbolo alquímico de transmutação. Pôs as duas mãos no chão e, de repente, uma enorme parede se ergueu diante dela, fechando toda a passagem, do chão ao teto, e deixando-os sem saída.

- Foi por pouco. -  disse ela, limpando o suor da testa e, em seguida, voltando a correr.

Batidas vigorosas podiam-se ouvir. A parede tremia incessantemente.

Finalmente, puderam chegar ao "fim do caminho". Pararam abruptamente, ora encarando a parede que vibrava com os baques estrondosos, ora voltando-se para as duas portas. Como Adam dissera, havia mesmo um problema a se solucionar antes... o que levaria tempo para pensar.

- Pessoal - disse Adam. - estas portas... qual delas? - perguntou, recuperando o fôlego.

Alexia, Êmina e Rosie entreolharam-se, indecisas e confusas.

- Aquela parede parece que não vai suportar por muito tempo. - disse Lester, preocupado. - Êmina... o papel... - arqueou as sobrancelhas para lembrar a caçadora das palavras de Charlie.

- Ah sim, bem lembrado. - disse ela, rapidamente, tirando o papel do bolso da calça apertada.

- Espera, Êmina. - interveio Adam. - Ainda não temos certeza sobre qual destas portas é a que nos leva de volta.

- Relaxa, eu aposto que o Charlie, na hora de pronunciar as palavras, imaginou aquela floresta onde estávamos. - deduziu Êmina. - Mas há uma dúvida: Deveríamos sair pela mesma porta?

- Esperem... - disse Rosie, tentando se orientar. - Quem é Charlie? De que floresta falam? - olhou para eles, ávida para saber tudo em detalhes. - Desculpe... É que depois de conhece-los eu fiquei com a sensação de que perdi muita coisa.

- Você não faz ideia. - respondeu Êmina, rindo leve e forçadamente.

Alexia, inconformada por não se ver participante, decidira propor uma ideia rápida.

- Acho que Êmina levantou uma questão interessante. - disse ela, pondo-se ao entre a caçadora e a jovem de capuz. - Digo isso pela ideia de que Rosie só pode reaver suas memórias se conseguir voltar ao seu mundo, mas em um lugar com o qual ela estava familiarizada. - seus claros olhos azuis brilhavam com a promissora solução.

Adam suspirou, um tanto incerto do plano. As fortes batidas na parede elevavam-se em um som de fazer qualquer doente cardíaco ter um ataque fulminante devido a um susto. Já era possível ver protuberâncias e rachaduras consideráveis na muralha. Comum à primeira vista... exceto por um detalhe gritante: Nas rachaduras, tremeluziam fachos de luz branca, em primeiro momento imperceptíveis, mas logo tornariam-se chamativos.

- Alexia, como tem tanta certeza de que isso é possível? - perguntou Adam, curioso e relutante.

- É simples pensar. - disse ela, sorrindo animada. - Se partirmos da ideia de que Charlie, ao pôr a mão sobre o símbolo na porta, como nós vimos, imagina o local que deve aparecer no outro lado...

- Não sei quanto à vocês... - interrompeu Lester, a voz trêmula ao olhar para a parede rachando-se. - ... mas é melhor que decidamos logo o que vai ser. - cutucou Adam e apontou.

- Essa não! - disse o caçador corpulento, olhando atônito para a parede. Voltou-se para Alexia. - Aonde você quer chegar exatamente?

- Eu tenho de confessar algo. - disse ela, denotando insegurança na voz.

- Ah não, lá vem história... - disse Lester, impaciente.

- Fala logo, Alexia. - disse Êmina, curiosa e apressada, relanceando a parede com rachaduras iluminadas.

- Mesmo após Abamanu ter encerrado seu controle sobre minha mente... eu ouvia sussurros recorrentes, não sei bem como explicar... eles diziam: "Ela deve chegar ao lar.". De início eu não entendi, depois eu soube que tinha a ver com Rosie. - disse ela, olhando para a jovem. - Além disso, ele havia ponderado, desde o começo, que reaveria as memórias pouco antes de sua vinda. é exatamente isto que está ocorrendo... o talismã, agora Abamanu está com ele, mas não necessariamente precisaria dele para voltar... foi tudo um jogo, com se ele quisesse ganhar tempo para alguma coisa. - suspirou vagarosamente, sem partilhar da aflição dos demais. - Rosie, o lugar para o qual deve voltar é a sua casa! Eu já vi você em muitas das minhas visões e lembro exatamente de como é o seu antigo quarto!

Êmina aproximou-se das duas, esperançosa.

- E sendo assim, Alexia diz as palavras tocando no símbolo e imaginando o quarto de Rosie! - ela sorriu. - Agora tudo está entendido. - socou de leve a palma da mão.

- E isso explica a sua pergunta, Êmina. - disse Adam, impulsado por uma carga de excitação. - Você deve dizer as palavras na outra porta. De preferência, que voltemos à cabana, para vermos como está Rufus. - idealizou ele, para o ânimo de Alexia.

Um novo estrondo foi ouvido. A parede caíra em ruínas cada vez mais rapidamente, a luz branca do outro lado quase cegante. Viram os olhos vermelhos das criaturas opressoras prestes a avançar. Gostariam de entender aquele fenômeno, de onde provinha tal habilidade daqueles seres, mas não havia mais tempo para discutir ou pensar profundamente, entretanto.

- E o que estamos esperando?! - disse Rosie, sem questionar as enormes dúvidas que cresciam. O motivo era óbvio: Elas sumiriam assim que ultrapassasse a soleira daquela porta.

Lendo as palavras escritas no papel, Alexia pôs a mão direita sobre o símbolo usado pelos magos do tempo que Êmina havia desenhado em ambas as portas. A caçadora também estava proferindo, em voz baixa, o rito de passagem para o outro lado, com a imagem nitida do interior da cabana em Kéup em sua mente. Ambas estavam realizando o surreal feito ao mesmo tempo. A claridade veio com uma tsunami, dando aos exército Repo a oportunidade parar passar com a parede já praticamente rompida, bem como uma atmosfera de puro terror que emanavam.

- Os relógios estão parados. - disse Adam, olhando para seu relógio de pulso. - Parece que neste universo o tempo possui um andamento completamente diferente do nosso.

- Podemos ter perdido a noção do tempo... - disse Lester, extremamente desesperado. - ... mas eles, com certeza, não perderam a vontade de nos esmagar! - encarou com horror a multidão de bonecos Repo vindo aceleradamente. - Estão chegando perto!

Rosie ficara apreensiva a cada segundo que se passava, enquanto tentava não olhar para trás, mesmo os sons das vozes sussurrantes das criaturas ressoando em seus ouvidos.

Os dois símbolos, por fim, brilharam a luz amarela. As portas abriram-se sozinhas, como esperado. Alexia, rapidamente, juntou-se ao trio da Legião. Dois lugares se revelaram. Na porta esquerda estava um dos quartos da cabana. Na da direita um outro quarto, bastante arrumado, que Rosie observara curiosamente.

A jovem virou-se brevemente para o quarteto, com um genuíno olhar de agradecimento, enquanto a claridade alva que vinha arrasando com tudo, juntamente com o exército infame, cintilava seu rosto.

Os quatro olharam de volta, com o cristalino sentimento de missão cumprida.

- Boa sorte pra todos vocês. Obrigada, de coração. - uma lágrima de emoção rolara pela sua bochecha.

- Boa sorte, Rosie. - desejou Adam, falando e assentindo depressa. - Vamos lá! - voltou-se rapidamente para a abertura, entrando primeiro...

                                                                                ***

O pôr-do-sol em Kéup tivera sido demasiadamente efêmero para um dia dito especial. A noite estava prestes a cair com a mesma velocidade com a qual o sol se despedira. Sob os últimos resquícios de luz, através da janela de seu quarto, Rufus estava sentado à uma mesa pequena, de madeira velha, porém ainda utilizável, próxima à única janela do cômodo. Escrevia, tremulamente, com um lápis de grafite negro em uma folha de papel meio amarelada.

"Me perdoe, Alexia. Eu sou o culpado!", pensou ele, enquanto discorria um corajoso desabafo.

Charlie havia ligado para ele, poucas horas de quando havia chegado do centro de Croyton. O homem de 1,90m e pai de família havia revelado sua intenção abaladora ao mago do tempo. O rapaz entendera perfeitamente, sem questionar o porque de tal medida.. aceitando com um implícito pesar. Ou, como termo alternativo, rendição.

Por um longo instante, fitou o céu do fim da tarde já tomando seu tom preto-azulado prenunciando o véu da escuridão cair rápido. Suspirou pesarosamente, voltando os olhos para o papel.

Seu olhar jamais estivera tão tristonho como naquele dia.

Apertou o lápis com uma força intensa... querendo esmaga-lo... enquanto pingos de lágrimas caíam sobre o papel.

                                                                                  ***

O estampido fez todo o recinto imergir em um silêncio arrepiante.

Se dissipou em uma fração de segundo... mas para Mollock, cabisbaixo e mergulhado em seu mundo particular, era como se o mundo e o tempo à sua volta estivessem lentos em relação à velocidade estonteante de seus pensamentos sombrios. "Inaceitável!", pensou, repetindo para si mesmo a única definição cabível para uma desilusão como aquela. Seus punhos cerrados tremiam, as veias em relevo com um sangue fervente como lava de um vulcão prestes a entrar em erupção.

O cano da pistola de Hector soltava uma fumaça lenta e transparente. O olhar do caçador fitava friamente um corpo jazido dormente no chão... cujo braço esquerdo apertava uma ferida grave no direito, pressionando para estancar a hemorragia.

- Já que concordou com minha decisão em matar Mollock... - disse Hector, sem alterar a expressão dura. - ... terá de me dar a arma, se quiser que acabemos com isso por definitivo.

Robert Loub gemia dolorosamente, rangendo os dentes e olhando inconformado para seu agressor.

- Acabar... assim!? - esbravejou ele. - Por um momento eu achei que fosse me matar!

- Era exatamente isso que eu faria, mas dúvidas acabaram de me ocorrer... elas prorrogaram sua sentença. - disse o caçador, sem desviar a mira.

- Hector, me escute, por favor. Você tem que me ouvir com o máximo de atenção! - pedia ele, desesperadamente, se rastejando para trás com os cotovelos apesar da dor lancinante no braço direito. - Eu iria entregar a prova à você se me deixasse atirar em Mollock. Se tivesse herdado a sensatez de seu pai, teria me dado a chance... Assim escaparíamos deste museu e seguiríamos nossos caminhos.

- Deixa eu adivinhar: Você seguiria seu caminho reassumindo o controle sobre o exército de quimeras, para depois, por meios ilegais, falsificar sua identidade fazendo-se passar por outra pessoa a fim de se ver livre da polícia. Robert Loub não existiria mais e caso os sequestros e experiências voltassem a acontecer, uma outra pessoa, que nem ao menos existe, levaria a culpa, com a polícia tendo em mente que você desapareceu do mapa ou estaria morto. - disse Hector, fuzilando-o com o olhar.

Loub franziu as sobrancelhas, com ar irônico.

- Pelo visto, o DNA paranoico de John também foi partilhado com você.

- Não me faça atirar outra vez! - ameaçou o caçador, aproximando a arma. - Há mais duas balas aqui. Uma para disparar em qualquer outra parte do seu corpo e outra para mata-lo de uma só vez. Agora quero que me responda algumas questões. Mollock havia me dito que exigiu de Eleonor uma magia de teleporte... para o lugar onde ele deve tornar-se deus! Obviamente, para mim, são as Ruínas Cinzas. - fez uma pausa, olhando de relance para o rei, estranhamente deprimido no centro da sala. - Se Mollock tem este desejo, significa, indubitavelmente, que ele obteve acesso a uma cópia da Bíblia de Abamanu... mas, claro, uma cópia do exemplar traduzido.

Ao ouvir a última frase, Loub sentiu calafrios contínuos. "Já era de se esperar. Afinal, ele é o pupilo de Abamanu. Como iniciei o decorrer da profecia... Oh, não, ainda devo muitas explicações!".

- Escute, Hector... - ele se esforçava para falar em um tom menos rouco. - Na época em que eu e Ethan éramos infiltrados no grupo de estudiosos da conspiração... nós, de fato, obtivemos acesso às traduções feitas pelo célebre líder das reuniões... - fez uma pausa, tentando lembrar-se do nome do sujeito - Ele se chamava Gustaff Brienord. Nos revelou ser um mago do tempo...

As três palavras fizeram Hector ficar em alerta máximo. "Ele disse mago do tempo!?", pensou, embasbacado. "Adam me disse que a pessoa com quem estavam aliados era um mago do tempo!".

- Já explico: Tudo o que ele nos revelou sobre sua alcunha foi em relação à habilidade que os membros desta irmandade tem com a língua dos deuses. - disse Loub, suportando a dor da ferida cada vez mais aberta. - Quando eles nos apresentou a verdadeira Bíblia de Abamanu, nos deparamos com um idioma difícil de ser lido, praticamente indecifrável. Gustaff traduziu, todas aquelas páginas, do dia para noite, sem nenhuma dificuldade. Foi então que ele nos revelou o que era. Pouco tempo depois, Ethan e eu roubamos as traduções feitas por Gustaff e nos desvencilhamos do grupo, depois incorporamos elas no nosso livro. Eu apenas copiei o início da profecia, por isso, tempos depois, fui declarado como precursor da mesma, e isto já na época em que Richard Campbell, o herege, morreu e assim a fraternidade desfez suas atividades, mas com a esperança de que a profecia se cumprisse o mais breve possível.

- Ótimo. - disse Hector, satisfazendo-se com as informações. - Mas ainda resta explicar como as cópias chegaram até aqui.

- Gustaff fizera um pacto com o diretor deste museu. - contou Loub, ofegando. - Ele escreveu uma cópia do exemplar original e a ofertou para o museu... quando ele havia vencido o leilão organizado pelo diretor com um lance bilionário. Correu um rumor entre nós, da fraternidade, de que o ex-diretor deste museu era um mago do tempo e por isso, não só aceitou a oferta, como também havia combinado a vitória de Gustaff no leilão. Nada foi confirmado, mas há a suspeita. Além disso, ofereceu também a cópia traduzida, todos os quatro exemplares existentes possuem a mesma capa.

"O original se encontra com o tal Charlie, como herança do pai.", pensou Hector, ligando os fatos. "O livro traduzido pelos Red Wolfs está em poder da Legião. As cópias do original e da traduzida se encontram neste museu... e Mollock, obviamente, leu a cópia traduzida.", fitou o pupilo de Abamanu discretamente, cravando seu olhar frio no rei caído em depressão.

Tornou a se aproximar de Loub um pouco mais, vendo que ele tentava se afastar a todo momento. Seu olhar interrogativo mesclando uma tonalidade gélida e melancolicamente denotando uma alma perturbada faziam Loub sentir-se um animal sob o domínio de seu caçador. "Eu odeio me sentir assim! Ele está completamente cego pela vingança! Ele... Não, não, não! Ele precisa se convencer de que ficarei fora de cena se seguirmos com minha ideia!".

Hector voltou-se para Loub, a arma em riste. Baixou a cabeça deixando os lisos cabelos negros ocultarem seus olhos por alguns instantes. Seu semblante exalava um ar de luto densamente inalterável. Tornou a falar, erguendo um pouco a cabeça.

- Eu perdi muitas pessoas importantes... mortas pelas mãos de monstros... e eu, como protetor nato, não devo deixar que estas mortes fiquem impunes - a mão que segurava a pistola agora estava trêmula. - Loub, infelizmente, você foi um destes monstros. Você já disse quase tudo o que eu precisava saber... mas é o bastante, pelo menos por ora. - fez uma pausa, deixando um suspiro pesado ressoar levemente pelo silêncio temporário. - É através da punição por nossos atos que demonstramos arrependimento. Mas ele não é um modo correto de expiar os pecados. O arrependimento é somente o fator resultante do medo causado pela punição. Você, Loub, sente medo agora.

- Não... Hector... - Loub o fitava com os olhos arregalados, em desespero completo. - Eu confessei minha inveja pelo seu pai... cometi muitos crimes... mas eu ainda sinto que não perdi minha humanidade... Por mais que agora seja tarde para pedir por clemência, eu, ainda me entendendo como ser humano, posso recomeçar. Não posso trazer seu pai de volta, mas posso abraçar uma segunda chance que só você pode me dar... Eu sou como você... apenas um ser humano! - vociferou, querendo fazer com que sua voz alcançasse o coração petrificado de Hector naquele momento. - E como tal eu tenho direito de consertar minhas falhas. Direito de apagar aquela faceta maléfica. Não pense que estou me rendendo pelo fato de Mollock ainda estar vivo...

- Mollock é a razão para você estar arrependido! Parte dele foi criação sua! - esbravejou o caçador.

- Eu não sabia que a profecia seguiria este caminho, seu tolo! - exclamou Loub, rispidamente. - Aqueles que escreveram suas partes do livro apenas leram aquelas partes! Eu apenas memorizei meu escrito e minha parte do mantra. Agora, diga-me, Hector: O que eu preciso fazer para você se convencer de que eu quero sacrificar esta crença para reparar meus erros e recomeçar minha vida como outra pessoa? - perguntou Loub, o olhos exibindo uma triste carência.

Hector permaneceu a olha-lo com desprezo.

- Eu duvido muito que seria isto que aconteceria se caso matasse Mollock. Ou se vive perigosamente para enfrentar este mundo perigoso ou você se torna perigoso o bastante para torna-lo assim. - disse Hector, o dedo prestes a apertar o gatilho involuntariamente. - Você, Loub, é alguém perigoso e transformou o mundo em um lugar mais árduo de se viver. Recomeçar não vai bloquear as memórias de seus atos, que atormentarão a mim e a você. - deixou sua mão novamente firme. - Não seremos mais atormentados por memórias assustadoras. Vou me livrar deste luto... e vou livra-lo deste fardo.

Mollock, apenas escutando as duras palavras de Hector, ergueu os penetrantes olhos amarelos para o caçador ainda apontando a arma para seu "pai".

Viu um rápido ponto brilhante perpassar pelo ar saindo da arma... seguido de um estouro ensurdecedor.

Relanceou os olhos para a sua direita e viu uma cintilante lágrima cair do rosto de Hector. Voltou-se para a sua esquerda, sem mover a cabeça, e viu sangue se espalhar pelo chão... que vinha da cabeça de Loub... um corpo definitivamente desfalecido e inerte, cuja cabeça, mais precisamente na testa, mostrava um buraco de bala, com finos rastros de sangue sinuosos que passavam pelo rosto.

- Não! - berrou Mollock, aturdido com a cena.

Hector largou a arma como alguém que descarta um papel velho. Agachou-se próximo ao corpo de Loub para pegar o revólver que continha a bala especial.

- Fique longe dele! - gritou Mollock, andando lentamente na direção de Hector. - Se arrependerá de ter feito isso! Seus aliados irão pagar pelo seu ato! Papai se juntaria à mim, estava na cara que ele iria trair você se tentasse me matar!

Hector, tranquilamente, lhe dera as costas, ignorando seu falatório. Mexeu no mecanismo da arma e retirou a bala ao destravar. Jogou o revólver no chão e analisou o projétil de aço inoxidável na palma de sua mão. Virou-a de cabeça para baixo e viu o buraco onde Loub conseguiu colocar as cinzas. Balançara de leve a bala, deixando as cinzas saírem de dentro. Passados poucos segundos, já não havia mais nada dentro. "Apenas isso?", pensou ele, franzindo o rosto.

- Ouça-me, seu verme insolente: Descontar a vingança das mortes de seu pai e de seu amigo nele é algo imperdoável! Se quer vingar-los, enfrente à mim! - sua boca movia-se furiosamente enquanto falava e andava até Hector. - Teve a sua vingança, agora terei a minha! Vou retalhar seu corpo sem deixar nenhum membro intacto! Irei banquetear meus soldados com suas entranhas verminosas!

O caçador mantinha-se alheio às palavras do rei. Segundos depois, com Mollock já a poucos metros de aproximação, Hector virara-se vagarosamente para frente... fechando o punho com o qual segurava as cinzas de vampiro.

- Morra! - disse Mollock, andando mais depressa e erguendo as garras da mão direita.

Em um veloz movimento, Hector jogara o pó negro diretamente em seu alvo planejado: Os olhos de Mollock. Instantaneamente, o rei lançou um grito gutural que reverberou pelo espaço, pondo as duas mãos nos olhos e movendo sua cabeça, loucamente, de um lado para o outro. Intercalava seus gritos de dor com gemidos inquietantes. Cambaleou pela parte parte central da sala, sentindo como se seus olhos tivessem sido incendiados.

- Seu maldito! - vociferava, continuamente.

Assistindo com plena satisfação àquela cena, Hector enveredou para uma saída, sem tirar os olhos de Mollock. Algo ainda precisava ser esclarecido.

- A quantidade das cinzas me levou a pensar se Loub estava mentindo ao querer mata-lo para em seguida me trair ou estava desinformado acerca da medida certa para se matar um licantropo com as cinzas. Agora que o matei, jamais saberei a resposta. - disse, enquanto andava para a segunda porta alternativa da ala. - Segundo relatos mais profundos e arquivados de antigos caçadores, eram necessárias duas ou três balas com estas cinzas, sendo esta a medida perfeita. - fez uma pausa, parando em frente à porta sem se importar com os agudos e contínuos gritos de Mollock - Não se preocupe. Uma vez jogadas nos olhos, seja nos de licantropos ou de humanos, as cinzas de vampiro causam cegueira temporária. Se a mesma medida que fosse ser usada para mata-lo fosse cair em seus olhos, elas teriam um grave efeito nos globos oculares, corroendo-os das veias até à retina. - revelou.

Mollock interrompera os urros... apenas para dar uma escabrosa e ensandecida risada.

- Deve estar sorrindo ao me ver nesta condição, não é!?

- Na verdade... - disse Hector, com um sorriso leve. - ao vê-lo sofrer desta forma e o cadáver de Loub bem diante de mim... sinto que a morte de meu pai foi parcialmente vingada.

- O que quer dizer com "parcialmente"? - perguntou ele, mantendo as mãos nos olhos.

Hector se pôs na soleira da porta após abri-la. Virou o rosto para Mollock.

- Significa que eu e meus amigos encontraremos uma forma de matar você. Mas antes disso, encontrarei Eleonor. Vamos impedi-lo de explodir o museu. - e saiu, fechando rapidamente a porta.

Mollock novamente rira em escárnio. Ajoelhou-se diante de um escudo usado pelo exército Persa na batalha de Termópilas, exposto e mantido preservado em um tampo de vidro junto às outras armas daquela sala.

- Ela está perdida! Nunca irá acha-la! Nos vemos nas Ruínas Cinzas, caçador! Farei questão de enfrentar você e seus aliados se tentarem nos impedir! Grave minhas palavras: Eu me tornarei um deus! Espere minha cegueira passar e vou até meus soldados prepara-los para a viagem!

Enquanto Mollock vomitava esbravejamentos desesperados, Hector já tivera saído da sala há pouco tempo... e estava longe o suficiente para não ouvir nenhuma daquelas palavras de ameaça, correndo à procura de Eleonor.

O relógio de parede da Ala II das armas marcava 18:00.

                                                                                ***

Rosie entrara em seu quarto com o pé direito. Virara-se depressa e deparou-se com a imensa horda de bonecos Repo aproximando-se, erguendo suas espadas a todo vapor. A jovem, por ínfimos segundos, encarou os brilhantes olhos vermelhos das criaturas acentuados pela claridade branca que vinha por trás, invasora e agressiva. Quando um deles estivera prestes a adentar no cômodo, rugindo sem parar, Rosie fechara a porta a toda rapidez. Com um baque, ela se fechou. Rosie encostou-se na porta de madeira polida pintada de branco, suspirando aliviada. Olhou devagar para a maçaneta, esperando temerariamente que um daqueles monstros cinzentos fosse querer invadir. Cerca de vinte segundos passaram-se e nada.

Hesitante, ficou de frente à porta e a abriu de modo lento. Arqueou as sobrancelhas, surpresa.

Sem bonecos Repo ou luz cegante. Somente a parede bege de um corredor sem iluminação. Verificou os dois lados do corredor. Em ambos a escuridão era quase predominante. O início parecia dar na cozinha ou sala de jantar. Já o fim era um beco sem saída, inteiramente escuro. Fitando o começo do corredor, Rosie divisou, com dificuldade, cadeiras e uma mesa coberta por uma toalha branca. Um filme ia sequenciando em velocidade máxima na sua mente...

"Mas o que... O que estou fazendo aqui? Onde está Michael? Hector?", pensou ela, fechando a porta e lembrando-se da noite em que fora assolada por um vendaval de verdades difíceis. "Eu estava me sentindo estranha... estranhamente irritada, do mesmo jeito de quando eu discuti com Hector... Ah, merda, Hector!", fechou a cara ao lembrar-se do caçador. "Ele havia me enganado esse tempo todo! Eu estava no templo dos Red Wolfs! Então como vim parar aqui tão de repente?".

Seus pensamentos foram cortados ao avistar uma doce recordação... aliás, duas delas.

Aproximou-se de sua cômoda, olhando fixamente para os dois objetos. Baixou o capuz e pôs algumas mechas dos cabelos negros e ondulados atrás das orelhas. Sentiu que seus olhos haviam chorado, além de uma extrema fadiga e, sobretudo, fome.

"Porque estou tão cansada?". Pegou um dos objetos delicadamente.

Era uma antiga foto em um porta-retratos mostrando a jovialidade de sua estimada avó. "Vovó.", pensou ela, os olhos enchendo-se de água. "Não faz ideia da loucura que a minha vida se tornou... depois que você atendeu aquele maldito telefone.". Uma lágrima deixou-se cair sobre a fotografia.

"Sinto saudades... Substituiu os meus pais e nunca cogitou me mandar para um orfanato. Eu não teria sido feliz se fizesse isso. Minha única família... foi a senhora.". pôs uma mão na boca, soluçando enquanto as lágrimas caíam. "Sei do seu segredo... e agora percebo que não está aqui... quando irá voltar?". Deixara a foto no seu devido lugar. Tornou a olhar o segundo objeto.

Uma caixinha de música com uma bailarina. Fazia tempos que Rosie houvera tocado aquela caixa pela última vez. Ganhou-a de presente de sua avó, quando fizera dez anos. A recordação encheu sua mente de uma nostalgia pura. A fim de relembrar os bons tempos de sua infância para afastar a atordoante temporada que passara ao lado de Hector, Rosie sentou-se na cama e girou a pequenina manivela cuidadosamente. A bailarina em miniatura começava a rodopiar ao som da leve música. "Ah, essa música... ela me fazia acreditar que, na época, a vida era um paraíso na terra. Depois que li aquela carta, é como se eu tivesse sido banida do céu e fosse condenada a pagar uma penitência no inferno.", pensou ela, com um semblante sério. Deitou-se confortavelmente na cama, colocando a cabeça sobre o travesseiro, segurando a caixinha. "Monstros não existiam pra mim naquela época. Essa música vai me ajudar a afasta-los da minha mente... pelo menos por um tempo."

Enquanto a doce melodia tocava, enchendo o ambiente de calmaria impenetrável, Rosie fitava o teto, deixando-se entorpecer ao som.

Meia hora se passou e a música tinha parado. Em decorrência do cansaço, os dedos de Rosie não conseguiram mais girar a manivela.

Havia adormecido, readaptando-se ao conforto que só a sua casa podia oferecer.

                                                                                  ***

Na cabana em Kéup, o relógio marcava 18:35. Adam e Êmina estavam sentados à pequena mesa da cozinha, iluminados pelo luar através da janela envidraçada. O caçador de braços fortes massageava as têmporas com os grossos dedos, com os olhos fechados. A alquimista, por outro lado, estava entediada e impaciente, roendo as unhas. Esperavam Lester sair do banheiro.

Alexia estava no quarto, provavelmente dormindo. Mas, na verdade, estava diante da penteadeira, passando uma escova macia pelos cabelos ruivos laranjas. Aquele momento de pura calma se fazia mais do que necessário. A vidente olhara para o espelho, divagando em milhões de pensamentos. Não queria acordar Rufus, que estava dormindo muito profundamente na sua cama, inteiramente tomado pelo cobertor. "Rosie, espero que esteja bem.", pensou ela, interrompendo o seu hobby. Relanceou os olhos para a janela do quarto. A lua estava cheia e seu tamanho estava maior do que normalmente se via nesta fase. Para os astrônomos, era um evento raríssimo conhecido como "Superlua". Para os Red Wolfs, era o indicativo para a chegada do Cavaleiro da Noite Eterna, Abamanu.

Alexia voltou seus olhos para Rufus. "Mas que sono profundo. Estou surpresa, nem está roncando.".

Sorriu levemente ao levantar-se da cadeira. Saiu do quarto e enveredou para a sala de estar... que ainda não havia sido verificada.

Êmina socou a mesa raivosamente, cansada de esperar.

- Droga, por que logo agora o Lester vai fazer "arte" no banheiro!? - disse ela, visivelmente irritada.

- E pensar que essa é a menor das nossas preocupações. - disse Adam, com ar forçadamente brincalhão.

Êmina o olhou com reprovação.

- A dor de cabeça fez você ficar engraçadinho de repente? - perguntou ela, ríspida. - Adam, sei que odeia ouvir reclamações, mas Lester precisa de uma advertência. - suspirou, olhando para a janela. - Mas ele é nosso melhor estrategista, então vamos precisar dele esta noite mais do que nunca.

- Além de uma boa dose de cafeína. - disse Adam, olhando para a garrafa com café ao seu lado na mesa. - Me passa uma xícara, por favor. - pediu ele.

Entregando a xícara à Adam, Êmina lembrou-se de Alexia.

- O que a Alexia tá fazendo?

- Não sei. - disse ele, abrindo a garrafa e em seguida pondo o café. - Vamos dar à ela um pouco mais de espaço. Ela precisa respirar melhor, engolir tudo o que ela viu naquele lugar, principalmente aquele monstro asqueroso de quatro-braços que perseguia Rosie. - tomou um longo gole.

- Pouco depois de voltarmos, ela me garantiu que já viu coisas piores... - disse Êmina, olhando na direção da entrada da cozinha. - Ai, acho que eu seria uma péssima confidente, ainda mais com essa minha curiosidade quase obsessiva de querer saber das visões dela. Não sei porque, mas... o motivo que ela deu foi forçado demais.

Um repentino chamado da vidente fez Adam quase engasgar-se com o café.

- Pessoal, venham aqui! - gritou Alexia da sala.

Os dois levantaram-se abrupta e apressadamente. Correram para a sala em disparada tendo em vista o tom do pedido da ruiva.

Ao chegarem lá, viram a vidente parada diante de um objeto coberto por um pano branco.

- Eu... não faço a menor ideia do que isso seja... - disse ela, gaguejando apreensiva. - Hesitei em tocar, não sei porque. Não estava aí antes? - perguntou ela, dirigindo-se à Adam.

- Não... não estava. - disse o caçador, fitando fixa e seriamente a coisa. Foi aproximando-se devagar, desconfiado ao extremo.

Êmina também se pôs a andar na mesma direção, curiosa sobre o que de fato era. Cautelosamente, Adam tocou no pano e foi tirando-o. O que se revelou foi uma caixa de papelão média.

- Mistério no ar: Quem deixou essa caixa aqui? - perguntou Êmina.

- Rufus, talvez. - respondeu Alexia, incerta.

Adam foi abrindo lentamente a caixa. Êmina, apesar de estar a poucos metros, não conseguia ver pois o corpo robusto do caçador impedia sua visão de alcançar o objeto. Alexia mantinha-se afastada, pensativa.

Adam esbugalhara os olhos. Um suor frio seguido de um arrepio forte em seu corpo o paralisou. Segurou as laterais da caixa com as duas mãos, as veias ficando em relevo, tremendo... não de medo, mas de raiva. Raiva da mais venenosa natureza. Êmina notou o corpo do caçador ficando trêmulo e olhou com preocupação.

- Adam? -indagou ela, a voz trêmula. - O que tem aí dentro?

Impulsivamente, o caçador levantou-se e andou a passos firmes até a mesa da sala. Segurou a madeira velha e repleta de farpas do móvel. Usando sua extrema força, derrubou a mesa, jogando-a contra a parede em clara demonstração de descontrole emocional. Alexia deu um grito com a atitude de Adam. Logo outro grito ouviu-se. Êmina vira o conteúdo da caixa.

- Oh, meus deus! - exclamou ela, horrorizada com o que via. Uma náusea excruciante subiu-lhe pela garganta e ela cambaleou desnorteada para um lado, sem saber o que pensar enquanto chorava.

Alexia chegara perto da caixa... e teve a pior visão de sua vida.

Os olhos da moça passaram de um claro azul para um cinza melancólico, cintilado pelo luar. A expressão de puro horror percorreu seu âmago. Pôs uma mão na boca, enojada... não com o conteúdo, mas com tamanha barbaridade. Correu até uma parede, chorando... e ficou lá, batendo no concreto, enquanto suas esperanças se esvaiam. "Isso só pode ser um pesadelo!", pensou ela, chocada.

Adam ofegava, ainda cego pela raiva. Olhou para Êmina. A caçadora estava com os olhos vermelhos devido ao copioso choro.

- Adam... não dá pra acreditar...

O caçador assentiu com a cabeça negativamente, a expressão furiosa.

- Eu vou... - disse, enquanto cerrava os punhos. - ... eu vou arrancar os corações daqueles malditos. Eu quero faze-los sangrar... de um jeito pior do que fazem. - uma lágrima surgia em um de seus olhos. Pela primeira vez em muitos anos, Adam se via chorando.

Nenhum dos três ousou olhar novamente para a maldita caixa e seu tenebroso conteúdo.

Sentiam-se culpados por terem chegado tão tarde.

A caixa havia sido deixada por um dos novos Red Wolfs que invadiram a casa sob as ordens de Michael.

Rufus fora decapitado... sua cabeça, com um aspecto cinzento e os olhos abertos, jazia na caixa.

                                                                                  ***

Fazia pouco mais de trinta minutos que Hector saíra a passos desesperados à procura de sua parceira. O tempo certamente estava contra ele, e em menos de duas horas o Exército Britânico colocaria seus motores em ignição para iniciar a tão esperada ofensiva contra Mollock, com as finalidades de investir contra as forças do inimigo com força bruta, proteger e preservar as obras historicamente valiosas do Museu, além de garantir a segurança da população da grande Londres com o impedimento do avanço das tropas de Mollock caso ele resolva expandir seu reinado pelo país ao trilhar seu caminho com derramamentos de sangue.

O caçador se via perdido, sem mais ideia de qual rumo seguir. "Me perdi.", pensou, preocupado. "Definitivamente, me perdi!". Parou na metade do corredor onde estava. Teve a impressão de estar preso em um imenso labirinto sem fim ou saída. "Mollock com certeza, a essa altura, já deve ter se recuperado da cegueira. Se ele deixou Eleonor ser libertada, significa que ela deu o que ele queria. Caso fosse o contrário, Mollock me desafiaria a procurar seu cativeiro, me fazendo perder tempo, mas nesta situação Eleonor não teria revelado nada e ele sairia de mãos vazias.",

- Droga! - praguejou ele, olhando em volta.

"Presumo que Mollock previamente armou os explosivos. Apenas precisa iniciar a contagem.", pensou Hector, suando em demasia ao se dar conta das inúmeras possibilidades que acarretariam a sua escapada do museu.

Fazendo-o sobressaltar, uma voz distante atravessou seus ouvidos... uma voz apressada e feminina.

- Hector! - chamava ela. - Hector!

Virando-se para a direção de onde vinha a voz, o caçador mal sentiu sua expressão se amenizar rapidamente. Seu olhar suavizou-se, enquanto um sorriso se formava involuntariamente em seu rosto e via aquela moça de vestido azul escuro correr a toda velocidade até ele.

No entanto, o sorriso desaparecera com a instantânea lembrança mórbida do corpo de Josh eclipsando seu alívio. Tentou não imaginar como ela se sentiria ao saber da terrível notícia.

Eleonor sorrira levemente, chegando mais perto e andando mais devagar. Seu rosto estava com hematomas e cortes, mas o inchaço havia sumido por completo. Ao perceber a expressão pesarosa de Hector, andou a passos largos para chegar até ele logo.

- Hector, que ótimo vê-lo! - quis abraça-lo, mas se deteve quando viu a postura do caçador. - E então? Como foi com Robert Loub? O que aconteceu lá?

- Vinguei meu pai. - disse, melancolicamente. - Pelo menos, uma parte da justiça foi feita. Mas ela acarretou um preço... muito alto. - tentou conter as lágrimas, cerrando os dentes. - E agora estou me culpando por isso a todo momento.

Eleonor o olhou seriamente. Recuou alguns passos, aflita.

- Onde esta Josh?

Hector dera um suspiro longo e pesado. Fechou os olhos tristemente e fez que não com a cabeça. A bruxa, sentindo o chão ceder sob seus pés, interpretou aquele gesto. Os esverdeados olhos ganharam um aspecto mais lúgubre. Como uma martelada na cabeça, Eleonor um lampejo de clareza ao notar o erro que cometera. Um aperto em seu coração quase a fez gritar. Hector tentou abraça-la, mas lembrou que era um péssimo consolador. A moça encaminhou-se para perto de uma parede do corredor. Agachou-se e pôs os cotovelos sobre os joelhos e as mãos na cabeça. Seus soluços já estavam audíveis.

- Eleonor, por favor, eu peço que não...

- É tudo culpa minha! - disse ela, enquanto chorava. - Foi um erro eu te-lo chamado! Ele era tão jovem... - ergueu a cabeça, olhando para Hector com lágrimas nos olhos. - Mollock estava lá, não estava?

- Sim. - disse Hector, secamente. - Ele o matou.

- Desgraçado! - vociferou ela, levantando-se e enxugando o rosto. - Eu devia te-lo matado enquanto tive a chance! Agora ele vai aproveitar a oportunidade para usar a magia de teleporte e ir para as Ruínas Cinzas!

- Você tentou matar Mollock? - perguntou Hector, incrédulo.

- Sim. - respondeu ela, virando-se para Hector. - Enquanto eu estava sendo libertada, recuperei o equilíbrio das forças que agiam dentro mim, o meu chackra. Bruxas de nível Ômega ainda em estágio de treinamento, como eu, tem seus chackras vulneráveis quando expostas a situações de alta pressão, como um sequestro, por exemplo. O equilíbrio se esvai. - fez uma pausa, respirando fundo. - Fazendo um breve resumo: O chackra é a energia residual que cada bruxa possui quando passa a conjurar múltiplos feitiços, incluindo combinações. No caso da vulnerabilidade, ela é temporária, claro, mas mesmo assim pude sentir a energia da parte demoníaca de Mollock... - olhou para o caçador, o olhar cansado denunciando o pesar.

- E? - perguntou ele, curioso.

- Eu repensei sobre a tentativa. - disse ela, novamente enxugando as lágrimas. - Era um risco desnecessário. Um tiro no escuro. O demônio dentro de Mollock é um dos mais poderosos já libertados, até mais do que Belial.

- Quem é Belial?

- O demônio que libertei para o nosso plano fracassado de distração. Mollock bebeu do seu sangue após mata-lo. - respondeu ela. - Ah, eu não consigo explicar mais nada sem pensar no Josh... Hector, você tinha razão o tempo todo, chama-lo foi um erro terrível...

Hector foi se aproximando dela com um ar acolhedor. Tocou em seus ombros de modo tranquilizador.

- Eleonor... Juro, pela alma de meu pai, que a morte de Josh não terá sido em vão. - afirmou o caçador, firme em seu tom. - Não use essa fatalidade como justificativa para uma culpa inexistente. Você não tinha como saber. E ele veio de tão longe, não havia como manda-lo de volta, tampouco convence-lo a ir embora. Nossa próxima batalha contra Mollock será para vinga-lo.

Eleonor, percebendo a intensidade daquelas palavras, olhou fundo nos olhos de Hector, ainda derramando lágrimas. O toque de suas mãos lhe proporcionou uma paz alentadora. Eram verdadeiros braços protetores, pudera constatar com mais clareza. Ela assentiu, mudando o semblante como se uma força inexplicável fosse responsável por revigora-la e não deixar resquícios de luto mancharem a vontade de seguir em frente.

As lágrimas haviam secado. Era hora de escapar com vida e se preparar para a verdadeira batalha.

- Muito bem - disse Hector, olhando seu relógio de pulso. - Faltam cinco minutos para as sete. O Exército chegará as oito e meia, mas temo que possam vir com antecedência. Portanto, devemos encontrar a saída antes das oito.

- Não está com o mapa, não é? - perguntou Eleonor, preocupada.

- Não, está com Josh e exatamente onde Mollock cravou suas garras. - disse ele, lutando para não rememorar a horrenda cena que testemunhara. - Deve estar rasgado, picotado e sujo de sangue.

- Então devemos nos apressar. Mollock já deve ter movido suas tropas para todas as entradas e saídas, precisamos chegar antes deles. - disse Eleonor, andando para a direção de onde veio.

Hector puxou-a de leve pelo braço.

- Espere. Mollock nunca recorreria a um plano tão batido e que levasse tempo. Ele fará algo muito pior. - disse, arqueando as sobrancelhas. - Explodir o museu com nós aqui dentro. O que acha?

A moça empalidecera de repente, engolindo a saliva.

- Mas... como? Este museu por acaso abriga algum covil onde armazenam-se explosivos?

- Não sei. Uma coisa é certa: Mollock armou os explosivos por todo o museu previamente. Ele planejou isso desde a hora em que ouviu aquela transmissão, creio eu.

- Ou talvez já tenha planejado muito antes. - presumiu Eleonor. - Um rei que anseia por poder certamente sente vontade de saber tudo relacionado ao povo que quer dominar. Mollock estava antenado nas notícias sobre o Exército desde o início.

- Então, tudo que devemos fazer agora é encontrar a saída, antes que a contagem se inicie. - disse Hector, começando a correr para a direção onde iria.

- Ei, por que ir por aí? - indagou Eleonor, seguindo-o. - Nós nem sabemos onde estamos, nem quanto tempo a contagem terá! - correu tentando alcança-lo.

- Eu acredito que estamos em algum ponto próximo a uma das galerias. - disse Hector, correndo enquanto olhava em volta.

- A Grande Galeria talvez esteja perto! - disse Eleonor. alcançando-o. - Você memorizou praticamente o mapa todo, pode ser que se lembre de algum ponto à medida que nos aproximamos. - sugeriu ela.

- Olha, depois de tudo que passei nas últimas horas, garanto a você que vai ser bem difícil. - afirmou ele, avistando um outro corredor à esquerda. - Vamos tentar ali! - apontou, correndo mais depressa.

A dupla dobrara para o corredor escolhido em velocidade máxima.

A noite já caíra por definitivo na localidade do Museu de História de Londres e uma corrida acelerada se iniciara pelos dois intrusos que desejavam naquele momento, acima de tudo, sobreviver.

                                                                               ***

As portas do grande salão de festas do museu abriram dando passagem a um verdadeiro furacão tempestuoso. Mollock pisara triunfante no piso quadriculado com lajotas preto e brancas. Se sua raiva crescente possibilitasse-o de entrar em combustão espontânea, seus passos deixariam sérios rastros de fogo e brasa pelo chão. O musculoso monstro de 1,90m entrara, os olhos cravados no símbolo antecipadamente desenhado por todo o amplo espaço circular.

Parara, encarando os soldados formando um vasto exército. Mais de 152 quimeras, empunhando suas lanças, esperavam por sua majestade adentrar no recinto para, enfim, entoar o mantra que os levaria para o destino planejado.

Alguns soldados que estavam em sua frente lhe deram passagem, formando um "beco" para que ele se dirigisse ao centro do salão. Andara calmamente até a ponto central do símbolo, sem dizer uma única palavra.

Anteriormente, ordenara cronometrar a contagem das bombas, programando o detonador para iniciar as explosões em uma hora e dez minutos. Naquele relativamente curto espaço de tempo toda a estrutura do museu voaria pelos ares, dando margem para a ruína de um inestimável patrimônio público. E quanto aos livros que lera... não importava mais. Nada mais daquele conteúdo importava. Tudo o que precisava ser assimilado e compreendido foi, com paciência e prazer, desfrutado intensamente.

Eleonor dissera todo o processo em mínimos detalhes, para que se adaptassem a surrealidade da magia em questão. Para quebrar de vez o silêncio, lhe fora entregue o papel com as palavras a serem ditas. Leu letra por letra como que querendo se certificar de que era, de fato, uma magia pertencente ao livro mais primoroso que Mollock já lera: Goétia. Sem saber, leu o ritual de invocação do demônio que foi essencial para a sua criação.

Mollock erguera a cabeça, como que aparentando ter memorizado todo o rito.

- Etza uk transportu's me et behezov materiallis uk locus uk temporious ruptoru's! 

As linhas dentro do símbolo, bem como o contorno do círculo, irradiavam, gradativamente, uma luz embranquecida que se erguia iluminando Mollock e seu exército de baixo para cima. O rei abriu um largo sorriso macabro, sentindo o ar ficar abafado ao seu redor. As quimeras mantinham-se quietas, sem manifestar nenhum desconforto perante aquele fenômeno. Segundos depois, uma lenta fumaça se formara em torno do círculo, rodeando o símbolo como uma tempestade de areia.

Não tardou para que se visse a vagarosa poeira cobrir inteiramente o campo de visão. Mollock e as quimeras foram completamente envolvidos por aquela densa fumaça... até desaparecerem.

Instantes depois, a poeira dissipou-se... O símbolo, por sinal, estava intacto.

Mollock e suas tropas finalmente se despediram daquele museu ameaçado.

                                                                                ***

"Que coisa estranha... nem sei por onde começar. Realmente não sei o que passou pela minha cabeça quando decidi aceitar aquela oferta tentadora. Fui tentado pelo diabo. Sendo mais claro, aquele filho de uma meretriz chamado Michael me ofereceu uma boa quantia em dinheiro... em troca de um favorzinho nada confortável para mim. Fui forçado a ceder... Antes mesmo que eu percebesse eu já me encontrava na palma da mão dele. Passar informações que vocês coletavam diretamente à eles era como uma facada no coração, uma atrás da outra. É, meus amigos, acho que já podem entender... Eu me rendi ao mal dos Red Wolfs. Estes malditos merecem morrer e o inferno deve ser um hotel cinco estrelas para eles, logo merecem o triplo do castigo eterno. Ah, só estou dizendo por pura raiva... Afinal, quem sou eu para julgar a condenação de alguém? Bem, mas se for para pedir perdão, mesmo que seja em vão, eu digo que fiz pela sobrevivência da minha família. Eles foram ameaçados. E cometi um erro, então devo pagar por ele. Minha vida talvez não possa valer nada neste mundo horroroso e repleto de injustiça em que vivemos, mas ainda assim... Como ser humano fiz o meu papel: Fui egoísta e ganancioso. Pois é... se é difícil para mim encarar isto como minhas últimas palavras, imagine como será para vocês. Eu tento não pensar. Não sofram com a perda. Apenas quero que vão à luta. Durante o tempo que passamos juntos, nós rimos, nos preocupamos, comemoramos... e agora nos despedimos. Quero que me prometam duas coisas: Erradiquem o verdadeiro mal deste mundo e protejam Alexia. Ela foi como uma filha mais velha que já tive, assim como vocês, durante este tempo, foram como meus filhos. Não espero que minha morte signifique algo ou motive vocês a irem com tudo para a batalha. Mas se for assim, eu desejo que sobrevivam. Não esmoreçam. São as pessoas mais guerreiras que já conheci. Bem, ouço algumas batidas na porta, acho meu tempo se esgotou. É hora de partir. Sinto muito ter escondido isso de vocês por tanto tempo. 

Adeus!

Rufus."

Êmina lera aquela carta aos prantos, sentada na cama do quarto de Alexia. Os cobertores haviam sido retirados e jogados ao chão quando foi descoberto que não era Rufus quem estava dormindo naquela cama. Na realidade, fora Lester quem fizera a surpreendente descoberta: Havia saído do banheiro aliviadamente e estranhado o silêncio pesado da casa. Se dirigiu ao quarto de Alexia para se estavam lá. Quando abriu a porta, se deparou com alguém dormindo na cama completamente coberto pelos lençóis. Estranho de imediato. Foi retirando o cobertor lentamente para ver quem era. Obviamente, pensava ser Rufus, mas também achou estranho um homem como aquele dormir tão cedo à noite. Não ouvira respiração alguma, o que elevou a desconfiança. Foi tirando os lençóis de forma apressada, eram vários. Tocou em alguma coisa... fofa. Tirando o último cobertor, quase levou um susto. Eram travesseiros. Um velho truque. Colocar vários travesseiros e cobri-los com lençóis para fazer parecer que alguém estava dormindo. Era bastante comum com criminosos menores e fugazes da polícia que se hospedavam em hotéis e tinham suas localizações confirmadas.

Mas com certeza o susto provinha de algo além dos travesseiros. Ligeiramente, o caçador pensou que Rufus pudera ter saído escondido, mas largou a ideia assim que vira o que estava no interior dos travesseiros, outrora de pluma branca. Estavam abertos e dentro de alguns deles, para o choque de Lester, haviam membros decepados e ensaguentados. O caçador se afastou depressa, enojado.

Rufus tivera seus pés e mãos brutalmente cortados como carne de açougue.

Alexia, no momento da leitura da mórbida carta, estava agachada em um canto do quarto, deprimida e isolada, ainda chorando. Adam não conseguia conter sua fúria e um desejo de vingança subiu à sua cabeça como lava de vulcão. Lester estava encostado na parede, em estado de choque e sem saber como reagir àquilo.

- Sempre odiei despedidas... - disse Êmina, enxugando as lágrimas. - Sinceramente, eu não esperava por essa.

- Ninguém esperava. - retrucou Adam, andando devagar de um lado para o outro. - Vamos fazer o que ele pediu. Vamos cumprir a promessa. Em vingança.

- Fizeram isso para nos provocar, com certeza. - disse Lester, inconformado. - Poxa, por que logo o Rufus, por que!? - enraivecido, chutou uma cadeira.

- Calma, Lester. - pediu Adam. - Todos nós estamos sufocados de raiva até o pescoço. Rufus justificou sua traição. Ele se deu por vencido... mas foi por nós. - olhou para cada um de seus amigos. - Ele sabia que morreria se caso esse Michael soubesse que ele estava traindo os Red Wolfs.

- E vai saber se havia garantia de que iriam pagar a tal fortuna. - disse Êmina. - Com uma sociedade secreta como essa, alguém que fosse um cúmplice independente dos cultos certamente seria alvo de desconfiança e perseguição. Na pior das hipóteses, dá em queima de arquivo. Exatamente o que ocorreu com Rufus. - afirmou ela, com um tom pesaroso e triste.

As atenções, repentinamente, voltaram-se à Alexia. "Nossa, tadinha.", pensou Êmina, olhando para ela com um suspiro cansado.

A vidente caíra em uma depressão profunda. Mas lá no fundo, sentia seu âmago arder. Uma chama que há muito ela esperava que viesse a acender. Mataram Rufus barbaramente. Aquele que foi como seu segundo pai, embora dava ordens à ele por ser seu assistente, se fora. Seu choro parou. Alexia levantou-se com calma e enxugou o rosto. Voltou-se para o trio.

- Como você se sente, Alexia? - perguntou Adam, preocupado com o estado da jovem.

A vidente o olhou firmemente.

- É só mais uma perda. - disse ela, com um tom lúgubre. - Eu acho que... após tantas outras que já suportei na minha vida até aqui... eu não sinto mais nada. Algo dentro mim me anestesiou. Jurei não mais chorar. Mas nunca ousei jurar não mais seguir em frente. - um semblante firme e determinado se formou em sua face. - Seria ainda pior se eu descobrisse sozinha. Mas vocês estiveram aqui... aliás, ainda estão. As presenças de vocês foram essenciais para que eu me fortalecesse.

Os três passaram a suavizar suas expressões e a olharam com orgulho.

A vidente prosseguira:

- Poucos minutos atrás eu senti um vazio imenso no meu coração. Vou preenche-lo com o sentimento de justiça pulsando dentro mim. - falou, revigorando-se gradualmente. - Isto não vai ficar impune, de modo algum ficará. Robert Loub entrou na minha vida e sugou minha felicidade por anos. Eu também quero fazer parte do cumprimento desta promessa.

Um silêncio pairou naquela atmosfera pesada de puro luto.

Êmina foi se aproximando de Alexia, contendo as lágrimas, embora estivesse sorrindo levemente. Lhe dera um singelo abraço. A vidente retribuiu o gesto rapidamente.

- Ao menos você revelou seus sentimentos. - disse a caçadora, sorrindo mais abertamente enquanto uma lágrima caía.

- Você está curiosa demais para meu gosto. - brincou Alexia, sussurrando enquanto a abraçava fortemente.

Adam e Lester se entreolharam e puderam sentir o clima se amenizar. Ambos assentiram um para o outro.

- Muito bem. - disse Adam, preparado. - Hora de usarmos o símbolo. Vamos para a casa de Charlie e nos planejarmos.

Diante da porta de entrada da cabana, o papel com o símbolo já se encontrava grudado na parte superior. As fitas adesivas foi uma das melhores invenções daquela época e sentiam-se agradecidos por isso. Êmina estava na frente, com a mão sobre o desenho, recitando as palavras em voz baixa e de olhos fechados. Imaginara a sala de estar da casa do mago do tempo. A característica luz amarelada emanou do símbolo, brilhante. A maçaneta girou e a tranca se abriu. Enquanto a porta revelava a passagem, foram iluminados pelas lâmpadas alaranjadas do cômodo. Êmina ajeitou sua trança lateral e o sobretudo preto e andou em direção ás escadas.

Alexia ajeitou seu vestido simples preto esverdeado e seguiu atrás da caçadora. Adam e Lester entraram por último. O caçador estrategista não escondera sua pouca vontade diante de um feito como aquele. "Quantos mistérios um mago do tempo pode esconder durante a sua vida?", se perguntou enquanto entrava.

A porta fechou-se com um baque veloz.

Charlie, de fato, estava os esperando ansiosamente.

                                                                                   ***

Os passos apressados competiam contra a rapidez implacável do relógio. Nele marcava 19:50. O museu ainda estava intacto, mas a dupla de aventureiros, felizmente, tivera tempo tanto para escapar da iminente explosão quanto para descobrir a contagem: Exatamente 35 minutos. Mollock assumira a ideia de que a chegada do Exército seria adiantada, presumindo ser uns dez ou quinze minutos antes do que foi dito na última transmissão no rádio. Os segundos contavam aceleradamente, as bombas armadas em todas as partes, com exceção do subterrâneo.

Hector corria por uma área mais aberta da floresta, suas botas deixando pegadas irregulares no solo arejado, com seu rosto sendo cintilado pela luz azulada da "lua gigante" que parecia crescer a cada vez que se olhava no céu. Eleonor vinha logo atrás, correndo na mesma velocidade, porém, extremamente exausta. Os ferimentos no braço começavam a tornar-se doloridos. Após alguns instantes, deram uma parada brusca a fim de reaver o fôlego.

Hector virou-se para Eleonor, limpando o suor de sua testa. A bruxa olhava na direção do museu, contemplando a opulenta silhueta da estrutura de mármore que se distanciava a alguns metros, mas ainda assim mostrava-se imponente como o Everest.

Voltou-se para Hector, aturdida.

- Precisamos voltar! - disse, com urgência no tom. - Ainda deve restar algum tempo para que possamos desarmar as bombas!

- Só que o mapa já era. - salientou o caçador. - Sem ele não podemos presumir o lugar mais provável no qual Mollock armazenou o detonador.

- No subterrâneo talvez? - deduziu ele, tentando.

- Olha... - aproximou-se dela, intencionando acalma-la. - O mapa era nosso meio para nos orientar. Nós já escapamos, estamos aqui, vivos, não faz sentido voltarmos.

- Não faz sentido!? - indagou ela, franzindo o cenho. - Hector, obras inestimáveis estão prestes a serem destroçadas! O governo não terá como financiar mais do que já tem para criar e restaurar as peças que lá se encontram, livros importantes estão lá.

- Se se refere ao Goétia...

- Não é só do Goétia. - afirmou ela, fixando seus olhos nos dele. - Sei que não é o único museu da cidade, mas é o que possui um acervo literário mais do que extraordinário. Meu nível Ômega está em plena fase de treinamento e adaptação e se uma cópia do Goétia está lá, é óbvio que outros livros de bruxaria também estão na biblioteca. Leitura é fundamental, ainda quando se precisa aprender novos feitiços e se defender.

- Veja só quem está sendo egoísta agora... - disse o caçador, olhando para um lado, insatisfeito.

- Concorda que é uma péssima hora para discutirmos nossas intenções, certo? - ela o olhou cada vez mais fundo.

- Assim como também é uma péssima hora para voltarmos lá. - retrucou Hector, firme. - Museus espalhados por Londres possuem bibliotecas tão boas quanto a deste, não sei porque está tão preocupada. Nosso foco é Mollock, unica e exclusivamente.

- Não precisa me lembrar de algo que já sei. - disparou ela, irritando-se. - Tudo bem, deixaremos milhares de obras de arte históricas e de valores incalculáveis virarem cinzas.

O caçador a fitou incisivamente.

- Sabe... tenho a leve impressão de que parece estar fugindo de algo... - cruzou os braços semi-cerrando os olhos. - Disse que havia saído do Coven por vontade própria. Será mesmo que foi assim que ocorreu?

- É uma longa história. - disse ela, encolhendo os ombros. - Você revelou seus segredos à mim, nada mais justo do que retribuir.

Hector continuou encarando-a com insistente desconfiança. "Eleonor... quem você realmente é?", pensou ele, recordando-se do excruciante dia em que a conhecera naquele bar barato e sem classe. "Entrou na minha vida muito de repente... Obra do destino? Não, nada ocorre por acaso. Há uma razão... e creio que estou perto de descobri-la.".

Um estridente som de uma sirene, ainda que distante, picotou os devaneios de Hector, fazendo-o sobressaltar de leve e voltar-se para a panorâmica vista da grande Londres e suas luzes elegantes. Estavam à beira de um penhasco que abrigava arbustos e folhagens densas. Uma queda de mais de 30 metros. Tentaram encontrar, em meio as silhuetas dos prédios, a origem do insuportável som daquela sirene.

O céu estrelado dava um aspecto épico e digno para um pintor se inspirar em uma obra.

Hector e Eleonor entreolharam-se, preocupados, o som da sirene transpassando seus tímpanos.

- É... chegaram bem cedo. - disse a bruxa, surpresa.

Hesitante, o caçador não conseguia mais se imaginar parado no mesmo ponto.

- Vamos! - puxou Eleonor com força, correndo a toda velocidade e adentrando de vez na floresta. - O Exército subirá o morro em menos de quinze minutos, já estão perto demais! - olhou depressa para o relógio. - Meia-hora!

- Mas... Hector, nós devemos ajuda-los! - exclamou Eleonor, em um lampejo. - Vão ser mortos lá dentro pelas explosões!

- Já sinto por suas mortes! - afirmou o caçador, correndo ainda mais velozmente. - Estamos em uma guerra, Eleonor! Sacrifícios são inevitáveis!

A moça iria protestar, mas se deteve no mesmo instante, passando a correr ao lado do companheiro no mesmo ritmo desenfreado.

O Exército Britânico se aproximava a todo vapor para fazer uma varredura completa no museu.

                                                                                 ***

Winchester - Condado de Hampshire; 20:45. 

Após uma longa caminhada pelo movimentado centro de Londres, Hector e Eleonor chegaram esbanjando um cansaço demasiado que se resumia em suspiros duradouros e contínuos. A região de Winchester fora o destino escolhido pela bruxa, que quase não foi seguido devido à insistência de Hector em avançar diretamente para a casa de Charlie, cujo endereço fora-lhe fornecido após uma ligação em uma cabine próxima. O caçador-detetive notou uma estranho pesar no tom de voz apresentado por Adam...

                                                                                 ***

- Alô? 

- Hã? Hector? - disse Adam, logo reconhecendo a voz do amigo. - Nossa, você não sabe o quão aliviador é ouvir sua voz, irmão. 

- Idem. - disse ele, olhando para o lado de fora, exatamente para a direção onde Eleonor fora para contratar um motorista através de seus métodos. - Como se saíram? Conseguiram resgatar Rosie? - uma empolgação fez seu peito inflar de ansiedade. 

- Sim, nós conseguimos, com muita sorte. Espero que venha rápido, pois eu quero te contar umas coisas bem sinistras... - fez uma pausa... uma longa pausa. 

- Adam? - estranhou Hector de imediato. - Não estou gostando do modo como está falando... até parece que ocorreu uma tragédia. - ele baixou a cabeça, tenso. - Adam... me diga. Aconteceu alguma coisa? Rosie está bem? 

- Acredito que sim, ela está bem. Olha, não dá para falar sobre tudo agora... é que estamos em uma reunião com Charlie. Só posso dizer o endereço... - a fala do caçador estava estranhamente rápida. 

Adam dera à Hector o endereço detalhadamente. 

- Nem preciso perguntar se anotou, não é? - forçou um tom brincalhão. 

- Claro que não, Adam. - disse Hector, cada vez mais desconfiado. - Você sabe muito bem que memorizo informações importantes, sempre. 

- Pois é... Mas eu posso garantir à você que Rosie está segura. - desconversou Adam. 

- Tudo bem, eu só preciso ir para Hampshire... meu parceiro quer visitar a família... - mentiu Hector forçadamente. - Logo depois irei direto para aí. Mas eu tenho péssimas notícias. E uma delas talvez seja a pior: Mollock já se encaminhou para as Ruínas Cinzas. 

- O quê!? - exclamou Adam, incrédulo. - Repete pra mim! Não pode ser... Mas como?

- Tem a ver com a Bíblia de Abamanu e suas cópias. Falamos sobre isso quando estivermos todos juntos. 

- Ótimo. Estamos todos esperando, venha logo, por favor.  

- Agora estou curioso para saber como voltaram em tão pouco tempo. 

- Você não vai acreditar. Quando vier vai conhecer alguém extremamente incrível. - garantiu Adam. 

- Assim espero. Até mais, Adam. - disse Hector, apressando-se ao ver Eleonor voltar de uma outra esquina. 

                                                                               ***

Hector deixara seu extasiado corpo cair em uma confortável poltrona de couro marrom. Suspirou de boca aberta com os olhos fechados, permitindo que todo e qualquer resquício de cansaço fosse minimizado até não sobrar mais nenhum. Eleonor apreciava, de pé, através da janela a grande lua. Seus cabelos castanhos e lisos reluziam aquela luz pálida e seu semblante estava plenamente tranquilo e sereno.

- Esta é a primeira vez que vejo uma lua cheia assim tão grande. - comentou ela, fitando o astro.

A moça lentamente voltou-se para Hector.

- Você está bem?

O caçador abrira os olhos, encarando-a com um olhar exausto.

- Só um cansaço passageiro, não é nada demais. Sei como se sente.

- Do que está falando? - indagou ela, chegando um pouco mais perto, pisando no belo carpete cor de vinho daquela sala de estar.

- Os soldados do Exército. - respondeu ela, secamente. - Aposto que estava desejando possuir algum encanto capaz de fazer o tempo retroceder. Me corrija se eu estiver errado.

Ela sorrira timidamente.

- É... até que não seria uma má ideia. - mexeu nas unhas quebradiças. - Mas sendo realista, seria impossível. Bruxas não são como deuses, não distorcem a realidade para benefício próprio. Nem possuem poder para tal coisa.

- Acredita na existência de outros deuses?

Eleonor sentira seu pulso acelerar ao perceber sua grande chance em fazer aquela conversa culimar no assunto que a faria, obrigatoriamente, revelar seus mais profundos segredos. Se caso resolvesse fazer enquanto estavam no museu, se culparia por ser responsável em desviar o foco da missão e atenuaria as tensões entre ela e Hector.

Pensou sabiamente na resposta que daria.

- Sim. O Coven, até determinado período, venerava o deus do mundo inferior Hades. - ergueu os olhos para Hector, firmes como uma corda bem amarrada. - Eu até já cheguei a participar de uma cerimônia de reverência... Nós geralmente fazíamos isto para pedir algo em troca das oferendas dadas. A última coisa entregue, o último presente dado antes do Coven entrar em declínio foi a realização de um sonho preservado por séculos de irmandade.

Hector se acomodou na poltrona, cada vez mais curioso com aquela história. Não tirou os olhos de Eleonor nem por um único segundo.

A moça prosseguiu com o relato:

- Hector, eu quero que saiba agora o motivo pelo qual eu tenho me esquivado... - fez uma pausa, suspirando. - O Coven, ele não... Eu, na verdade, não me desvencilhei de lá por vontade própria. Não abandonei por insatisfação. Na realidade, eu fui expulsa.

O coração do caçador acelerou-se e o suor novamente se formara em sua testa molhando seus cabelos. Se ergueu um pouco mais, tornando a tirar as costas do apoio reclinável da poltrona, ficando sentado e fitando a companheira como quem exige mais informações em um interrogatório.

- Então está mesmo fugindo. - disparou ele. - Diga-me de uma vez: Quem é você?

A pergunta ecoou na mente de Eleonor, fazendo-a empalidecer de repente. Foi como uma faca arremessada diretamente em seu coração. "Oh não!", pensou ela, desesperada, "Sinto como se esta fosse a primeira vez em que estamos nos conhecendo... mas de um modo mais frio e profundo.".

- Hector... Eis a razão do porque eu ter escolhido este lugar exatamente para abrir o jogo com você. Vou ser justa com você tirando essa minha máscara de mulher inocente... Eu, assim como você, cometi muitos erros.

- Diga-me logo! - vociferou Hector, levantando-se impaciente.

Eleonor estremeceu com o tom de voz do caçador. Contudo, compreendia a raiva do parceiro.

- Tudo bem, só fique calmo. - disse afastando-se por alguns centímetros. - Minhas ex-colegas... O Coven pretende armar uma cilada contra mim a qualquer momento. Soube disso pouco antes de nos conhecermos e tentei fugir. Eu encontrei uma chance de me manter afastada o suficiente assim que eu te vi. - ela dera um sorriso triste. - Eu pensei: "Se estou ao lado de um caçador bravo como este, então não tenho nada a temer". Eu sabia que não ia durar tempo o bastante para fazer elas desistirem. Uma traição, quando sentida pelos magoados, faz eles se rebelarem a ponto de não perdoarem jamais.

- Então sua fuga faz de você uma traidora!? - disse Hector.

- Nós dois somos traidores! - retrucou Eleonor, ríspida. - Não pense que me esqueci do que fez à Rosie. Mas tudo bem, eu entendo, no seu caso você havia sido obrigado a fazer algo que não devia por ter sido chantageado pelo homem que planejou a morte do seu pai... Mas quanto à mim, eu as traí por egoísmo.

- Pois então me fale o motivo dessa traição, ora! - exigiu Hector, aproximando-se dela, fervoroso.

- Todas as bruxas tinham um consenso: Que quando a busca pela vida eterna se iniciasse definitivamente, traições se revelariam. E assim foi. - uma lágrima desceu pelo rosto, seus olhos verdes estavam marejados. - Todas, sem exceção, passaram a desconfiar umas das outras, nenhuma delas queria ser rejeitada por Hades em hipótese alguma. Isto tem total relação com o último presente...

- E qual foi este presente? O que Hades ofereceu em troca das oferendas? - perguntou Hector, austero.

- Lembra quando conversamos sobre a noite em que você esteve no templo dos Red Wolfs junto de Rosie e aquele seu amigo Michael se revelou um deles? - seu olhar denotava uma figura indefesa mediante àquela situação.

Hector pôs as mãos na cabeça ao fechar os olhos, tentando não rememorar aquele fatídico dia. "Só posso estar sonhando.", pensou ele, desalentado. Andou para um lado da sala, reprimindo um terrível medo de saber o que viria a seguir da boca daquela mulher misteriosa.

- Hector... - disse ela, se aproximando. - Lembro também que havia me dito que Michael mencionou algo sobre o último presente... o soro da juventude. O elixir da imortalidade oferecido por Hades.

Hector virara-se abruptamente para ela, fuzilando-a com os olhos.

- Me deixe adivinhar: Você roubou o tal soro e isto explica a perseguição das outras bruxas, certo?

- Apenas me escute, mas você está certo sim. - disse ela, assentindo rapidamente. - Agora vasculhe na sua boa memória... - gesticulou com as mãos para faze-lo se lembrar. - A pessoa que Michael mencionou que possuía o soro...

O caçador, por um instante, ficara sem entender, mas, ao se ver escolha, teve de se recordar daquela horrenda noite. Divagou por vários minutos... destrancara o baú de sua mente e palavras duras reverberaram na sua cabeça em uma reprise torturante e esmagadora. Aquela voz soturna e familiar falava fazendo Hector se sentir novamente naquele exato momento. "As bruxas são astutas por natureza, pois sabem como esconder seus anseios, jogos e planos daqueles que precisam de sua confiança. Elas, sobretudo, buscavam a vida eterna. Elas almejavam sobrepujar o poder da morte, queriam ser deusas, onipotentes e oniscientes. Para isso, existia o Soro da Juventude." .
O caçador estacara, estupefato com a revelação sorrateira como uma serpente rastejando prestes a mostrar seus dentes venenosos. A voz de Michael parecia não querer se calar. "Sim, sim, sim. Sua avó" . O olhar do caçador arregalou-se em um misto de temor e ojeriza. "... cuja rixa conosco dura até hoje.". Teve de se afastar, completamente cego pelas excruciantes imagens daquele dia. "Ela teve um relacionamento com meu pai no passado.". Relanceou os olhos para Eleonor, ainda sob o efeito daquelas memórias, se afastando cada vez mais. "Mas tudo devido à traição dela à meu pai.".

Uma sensação nauseante lhe acometeu até o último nervo. Fulminou Eleonor com o olhar, recuando vagarosamente vários passos. "Não... Não pode ser verdade!".

- Você... - gaguejou ele, impressionado com o que descobrira. - Não... - assentiu negativamente com rapidez.

Eleonor, por outro lado, assentira com um sim, chorando.

- Sim, Hector. Acho que agora tudo ficou mais claro para você. Isso é bom.

- Bom!? - vociferou ele, furioso. - Foi bom você ter me enganado esse tempo todo!? Ah, sim, eu não devia estar se dirigindo desta forma. Devo chama-la de senhora?

- Hector, por favor... entenda.

- Eu já entendi o bastante! - disse o caçador, erguendo as mãos, rendido. - Teve um relacionamento com o antigo Mestre de Cerimônias, roubou o Soro da Juventude para si, enganou a própria neta, está sendo perseguida por outras bruxas perigosas por consequência disso... Faltou algo? Devo incluir mais outro crime na sua ficha? - perguntou Hector, inclinando-se na direção dela, o tom desafiador.

Eleonor agora chorava copiosamente, com as mãos no rosto, soluçando constantemente. "Rosie... consigo sentir sua presença...", pensou ela.

- Me julgue o quanto lhe for necessário. - afirmou ela, secando as lágrimas. - Fui ingênua quando pensei que nunca desconfiariam da ausência do soro... Já era previsível que atribuíssem a culpa na bruxa recém-promovida à Ômega. Aquelas invejosas devem ter se espalhado pelos quatro cantos do país para planejar suas emboscadas, se disfarçando, conspirando... e estando aqui, Hector, eu me torno um alvo fácil, estou perigosamente exposta. - tentara chegar perto do caçador, mas o mesmo gesticulou para que parasse.

- Por favor, não se aproxime de mim, Eleonor. - disse ele, mantendo o olhar fogoso. - Ou deveria dizer... Senhora Campbell?

A bruxa rira leve e forçadamente.

- Ah, Hector... você não faz ideia do quanto eu ensaiei minhas palavras nessa minha mente atormentada, o quanto tentei medir minhas palavras só para que no final não saísse tão machucado. Eu ainda lembro de Josh. Foi como se eu perdesse um parente próximo.

- Não ponha Josh no meio disso tudo. - disse Hector, frio. - Agora... eu posso ver com clareza... você não deveria ter me mandado a carta de Richard Campbell, seu filho. Assim como eu não devia ter feito aquela ligação.

- Rosie está aqui. - disse Eleonor, abruptamente.

Recuperando a disposição, Hector olhou em volta, analiticamente, e um peso ainda maior se chocou contra sua cabeça, sentindo-se em um mar de pesadelos contínuos. Imediatamente reconheceu o aposento no qual ambos se encontravam naquele momento. Anteriormente estava cansado demais para se dar conta do lugar onde estava.

O caçador voltou-se para Eleonor, assentindo positivamente, permanecendo sério.

- É. Se o que diz for verdade....

- Mas é verdade. - disse ela interrompendo-o. - Consigo sentir a energia espiritual dela, nós bruxas sentimos os chackras uma das outras a qualquer distância, mas também sentimos energias de pessoas comuns da mesma forma. Ela está aqui, Hector. - sorrira levemente. - Acho que não há mais nada para falar. Boa sorte. - aproximou-se dele vagarosamente... encostando seu rosto no dele... e em seguida seus lábios...

O caçador-detetive lutou contra a vontade que fervia dentro de si naquele exato instante em querer se afastar, mas se viu rendido a um fogo diferente e mais esclarecido... Aquele duradouro e acalorado beijo o fez entender as motivações da bruxa ameaçada de morte. "Proteger as pessoas com as quais eu compartilho minha confiança. Esta é minha missão", pensava ele enquanto mantinha os olhos fechados e desprendia seus lábios dos de Eleonor. Ambos se olharam por uns segundos...

- Me sinto uma nova criatura... eu não tenho mais 70 anos, Hector. - disse ela, recuando aos poucos. - Eu vou torcer por você e por seus amigos, eu, sinceramente, desejo que vençam Mollock... e vingue Josh, por nós dois. - afirmou, com plena convicção. - Impeçam que Abamanu venha a este mundo. E, por favor, não me chame de Sra. Campbell. - ela dera um riso fraco.

Hector tentou sorrir, mesmo sentindo-se contagiado por aquele sorriso inconfundível.

- Me desculpe. - disse ele, acanhado. - Eu me excedi. Eu não consigo lidar com a verdade. Depois do que fizemos agora... o seu toque me fez entender que está mesmo arrependida com relação à Rosie. Mas que o fez para impedir que o Coven pusesse em prática seus planos, sabe-se lá quais eram. Talvez, neste caso, você não tenha sido tão egoísta.

Eleonor já estava próxima à porta, pronta para sair.

- Acaba de adivinhar meu principal intento. - disse ela, tocando na maçaneta.

- Ao menos espere até esta batalha contra Mollock terminar, para que possamos, quem sabe, nos encontrarmos de novo e lutarmos contra o Coven. Ou eu posso ajuda-la a fugir...

- Não, Hector. - disse Eleonor, mudando drasticamente seu tom de voz. - Não posso permitir que mais pessoas se envolvam nisso. Se você vier, estará conivente com meus atos. Ligado à mim, Rosie pode se tornar uma nova vítima, já que nós estamos intimamente vinculados à ela. Prefiro fugir do país sozinha nesse caso.

- O quê!? Mas fugir agora? - indagou o caçador, pasmo.

- Não é óbvio pra você? - disse ela, girando, por fim, a maçaneta. - O meu tempo está se esgotando, já cumpri meu papel como sua parceira. Enfrentei esta tormenta sozinha e é assim que vai permanecer, não quero que ninguém mais interfira nisso... Não quero que haja mais mortes por minha causa.

- Não entendo você recusar minha ajuda, depois de tudo que passamos naquele museu...

- Não é isso! - disse Eleonor, o tom mais duro e rígido. - Não é que eu esteja recusando sua parceria, você depositou uma confiança que eu necessitava e sou eternamente grata por isso. Apenas não quero envolve-lo, simples assim. - fizera uma pausa, pensativa. - E, após conhecer bem sua personalidade protetora e insistente, já tomei medidas preventivas quanto a qualquer tentativa sua de me impedir.

Hector sentiu suas mãos molharem-se de suor puro. Olhou apreensivo para Eleonor.

- O que você fez?

- Lembra quando você foi à cabine telefônica e, enquanto isso, eu tive de ir procurar um motorista para nos levar até aqui? Claro. - disse ela, afastando uma mecha do cabelo castanho. - Pois bem... digamos que não foi só o motorista que foi vítima dos meus métodos especiais de convencimento... - revelou, com ar misterioso.

- E quem mais você enfeitiçou? - o caçador alterara seu tom novamente rigoroso.

- Saberá em pouco tempo. Desculpe, Hector. - disse ela, olhando-o tristemente. - Se não fosse pelo que virá para impedi-lo, você me puxaria de volta assim que eu atravessasse a soleira dessa porta. E não adianta negar, eu sei que faria.

Engolindo em seco a afirmação, Hector tornou a recuar mais uma vez. Dúvidas amargas pesavam como chumbo grosso na sua mente. Uma delas era relacionada à confiança depositada em Eleonor. Haveria um preço tão alto para se pagar por confiar em alguém julgado como "errado" e "perigoso", mas altamente determinado a consertar seus erros?

- Eu ainda estou chocado com tudo isso, eu... não sei mais o que pensar. - disse ele, confuso. - Ao menos me diga para onde pretende fugir.

- Alemanha ou Rússia. - disse ela, concisa.

- Não, Eleonor. - desaprovou Hector. - Estes países, atualmente, se encontram em tensões políticas e a qualquer momento uma nova guerra entre várias potências pode estourar... Fosse para fugir de bruxas ardilosas, eu não aconselharia nenhum destes destinos.

- Então talvez este seja um bom momento para não ouvir seus conselhos. - disparou ela, sem dó. - Me perdoe, Hector. - disse, com enorme pesar nos olhos.

- Pelo quê? - perguntou ele, cerrando os punhos.

A bruxa voltara-se para a janela à sua direita, a única da sala de estar.

- Por isso. - disse, por fim.

Um baque intensamente impactante na janela fez a vidraça estilhaçar minimamente. Um vulto sombrio pulou para dentro do cômodo em velocidade surpreendente. Hector protegera os olhos dos estilhaços que voaram pelo ar, recuando cada vez mais. Sentiu como se um meteoro ou uma corpo metálico tivesse caído. A figura ergueu-se no mesmo instante em que o caçador tirava pequenos cacos de vidro do seu sobretudo de couro marrom. Voltou-se para o ser... e arregalara os olhos, boquiaberto.

- Um meta-simbionte!? - exclamou Hector, relanceando a entrada. Eleonor havia sumido e certamente já estava longe o bastante para sequer ser alcançada.

A criatura rosnou selvagemente para Hector. Um homem de camisa branca e suja com mangas curtas apresentava um monstruoso aspecto. O rosto quase que totalmente coberto de pelos, os cabelos despenteados e maiores do que quando estava em seu forma dita "humana" e os olhos inteiramente brancos que escorriam um líquido negro que talvez fosse seu sangue infectado pela magia utilizada por Eleonor. Seus dentes eram presas pontiagudas e evidentemente brancas. Os lobisomens da espécie Meta-Simbionte eram, geralmente, confundidos com uma amálgama de primata com lobo selvagem por caçadores amadores, até mesmo por caçadores de aluguel desinformados e nada estudiosos. Na realidade, eram 75% humano e 25% lobo e em casos específicos sua sede de matar é moderada. Mas não naquele caso... o feitiço da bruxa caçada quadruplicou as habilidade mortíferas do lobisomem. "Como ela pôde!?", pensou Hector, levemente sentindo-se traído.

- Que falta faz meu arsenal... - disse ele, sem a menor escolha, enquanto a criatura lançava rosnados ameaçadores e se aproximava lentamente.

Em um primeiro e súbito ataque, o lobisomem abrira sua boca avançando contra Hector. Agarrando-se brutalmente à criatura, o caçador tentou forçar para que não fosse mordido logo naquele avanço. Rolaram pelo chão, derrubando a pequena mesa no centro da sala e o vaso de vidro que estava sobre ela. As presas do meta-simbionte tentavam cravar-se no rosto de Hector, cada vez melado de saliva. Olhava com horror para aqueles olhos brancos, segurando os braços do monstro com toda a sua força. "Não sei por quanto tempo... eu posso aguentar!", pensou ele, tentando idealizar uma forma de sair daquela enrascada. Ao passo em que suas mãos perdiam força mediante à persistência insana do monstro ao querer morde-lo, Hector não teve outra saída a não optar por aquela medida desesperada.

Batera sua cabeça contra a do lobisomem em um impacto barulhento. Após o golpe, rapidamente tentou dar um chute no tórax da criatura. Desvencilhando-se, Hector pegara um castiçal caído no chão e, levantando-se rápido, tentou golpear o monstro com o objeto. Acertara seu rosto fortemente, fazendo-o sangrar. Mais outro golpe no rosto da criatura. O castiçal se despedaçara instantaneamente. Para estar com a vantagem e no controle, Hector o segurou pela gola da camisa e o ergueu com o máximo de força possível. Rapidamente, jogou-o contra uma parede, derrubando vários livros da estante com a vibração criada. O concreto rachou e quebrou-se. Ofegando, Hector posicionou-se, preparando-se para uma nova investida. O lobisomem ainda rosnava, mas parecia calmo... respirando de modo pesado. Um ataque repentino quase fez o coração de Hector saltar pela boca. O monstro pulara para cima dele, pegando-o desprevenido. Baquearam no chão, deslizando um pouco pelo carpete desarrumado. O caçador tentara afastar com as duas mãos o rosto da criatura, que não desistia em querer saciar sua fome. O meta-simbionte cravara suas garras nos ombros de Hector, fazendo-o lançar um urro de dor. A oportunidade perfeita se fez presente. As mãos do caçador enfraqueceram de imediato... e os dentes do lobisomem encontraram sua brecha...

                                                                                 ***

Rosie, ainda deitada e adormecida, remexia-se na cama, querendo despertar, quase escutando os longínquos sons da confusão no cômodo principal.

A caixinha de música estava caída no chão. Silenciosa.

Em um despertar tão súbito quanto inesperado, Rosie sobressaltara esbugalhando os olhos. Sentou-se da cama com pressa... reconhecendo a voz através daquele urro gutural de dor.

O segundo dado por ele... após sentir uma intensa mordida soar como duas agulhas penetrando em sua veia carótida.

Rosie voltou seu olhar assustado para a porta... e levantou-se, ainda ouvindo o grito doloroso quase interminável, se arrepiando a cada segundo.

Disse para si mesma:

- Hector!?


                                                                              CONTINUA...

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