Capuz Vermelho #24: "Cerimônia do despertar (Parte 2)"


Nota do capítulo: Partes em itálico representam flashback ou menções específicas.

CAPÍTULO 24: CERIMÔNIA DO DESPERTAR (PARTE 2)


- Você sabe por que me chamo Mollock? - perguntara o rei ao homem enjaulado e decadentemente largado naquele chão de terra seca e sem vida. 

Ele o encarou com uma frieza que, àquela altura, já estava tornando-se exaustiva. A única expressão com a qual podia vê-lo, não havia outra. 

- Por que está perguntando à mim quando você é quem deveria responder? - retrucou ele, desinteressado. 

A besta de um aspecto demonicamente canino suspirou de olhos fechados parecendo forçar seu fraco mecanismo que bombeava a calma e a paciência necessárias. Ao abri-los, seu olhar converteu-se em uma austeridade ameaçadora. 

- Há poucos instantes, descobri minha origem. - dizia ele, deambulando pelo cubículo terroso de um lado para o outro. - Foi em um livro utilizado por seres humanos fêmeas que adotaram práticas de idolatria a um deus chamado Hades. Por seus ritos obscuros e por se entregarem as trevas, elas ficaram conhecidas como bruxas. Fiquei surpreso pelo meu nome estar estampado naquela página. - fez uma pausa, parando de andar. - Este deus em questão governa um mundo inferior chamado Tártaro. Meu antigo lar. 

O cientista o ouvia atentamente, sem descravar os olhos fuzilantes naquele monstro. 

- Embora eu questionasse a origem do nome do livro, eu me contentei pela citação. - disse ele, orgulhoso de si. - Agora, finalmente, sei de onde minha parte mais poderosa provém. É reconfortante, é libertador. - aproximou-se da jaula tranquilamente, fitando o homem seriamente. - Eis a diferença que existe entre nós a ser quebrada, meu pai: Eu sei quem eu sou. 

O encarcerado denotou feições de ojeriza profunda e sincera diante daqueles odiosos par de olhos amarelos o encarando. Sentira-se obrigado a falar. 

- Eu... jamais me tornarei algo como você. - afirmou, frio. - Se diz meu filho... acho que agora é a hora de cumprir meu dever como "pai". 

Repentinamente, Mollock descontraíra os músculos, rapidamente esboçando empolgação. "Ele vai admitir, finalmente!", pensou, com expectativa. 

- Se sair por aquela porta agora mesmo... faça o favor de não voltar mais. - disse Loub, sério e em tom de ordem. 

A animação de Mollock se esvaíra num instante. Não estava disposto a seguir aquela aparente ordem, mantendo sua soberania única e nada compartilhável. 

Loub prosseguira, agora se levantando. 

- Pode conseguir todo o conhecimento que quiser... pode devorar todas as palavras de um livro e toda a carne de um corpo em pouco tempo... mas vai precisar muito mais do que isso se quiser tornar-se um rei merecedor do poder que obtém. - agora estava chegando mais perto das grades dianteiras. - Não vou me render aos seus propósitos, já me encontro no meu limite. 

- Está tentando me induzir a rendição? - indagou Mollock, tornando a encara-lo com mais rebeldia. 

Loub sorrira forçadamente. Seu maxilar parecia atrofiado demais para expressar qualquer reação feliz ou pelo menos uma tentativa para tal coisa. 

- Se eu fosse capaz de algo assim, talvez ficar trancafiado nessa jaula não me seria tão ruim. - aproximou-se ainda mais. - Que tipo de pai é esse que não possui controle sobre seu filho imaturo? 

Mollock já estava praticamente espumando pela boca tamanha era sua revolta mediante àquelas palavras zombeteiras. Rugira selvagemente, segurando uma das grades com brutalidade. Loub se afastou um pouco, sem tirar o sorriso forçado. 

- Essa raiva... essa irritação toda é porque falei a verdade? - perguntou Loub, provocando-o. - Não tem controle sobre si mesmo. E, ainda assim, deseja se consagrar como rei? 

- O primeiro passo - dizia Mollock, esbravejado. - é expandir minha mente! 

- Ótimo, então deixe-me completar o processo... - disse Loub, retomando o tom de voz rude. - ... com uma bala bem no meio da sua cabeça. 

- Com que arma? - perguntou Mollock, desafiador. - Com que autoridade? 

- Duvida? - disse ele, os olhos faiscando de coragem. - Você não sabe nem a metade, sua besta do inferno. Se há uma diferença entre nós... É que eu possuo controle sobre mim mesmo! 

- Você quer impor uma autoridade sobre mim que não condiz com sua posição! - retrucou Mollock com rispidez. 

- Então porque me chama de pai? - questionou Loub. - Porque ainda insiste me usar para que um dia eu possa me unir a você para "dividir o poder". Mas que piada de péssimo gosto! Quer compartilhar o poder porque não consegue governar sozinho? 

- Agora chega! - vociferou Mollock, dando as costas abruptamente. - Talvez eu tenha de rever meus planos para o senhor. Devo estar cometendo um erro ao pôr você no mesmo patamar que o meu. - se dirigira à porta, confiante. - Os preceitos humanos estabelecidos não se aplicam a nós dois. Pode ser meu pai, o meu criador, mas não possui a mesma vocação para segurar um poder enorme nas mãos. E isto é algo que somente eu, seu filho, pode merecer dignamente. 

Enquanto Mollock abrira a porta já de saída, Loub sentira um dor lancinante percorrer-lhe os joelhos e canelas. Teve de aproveitar a chance para faze-lo refletir sobre o que significa controle. 

- Mollock... Talvez nada impeça de você conseguir o que quer... mas saiba que a prova viva está bem próxima de você. - fez uma pausa. - Uma ascensão sem controle é a garantia de uma queda ainda mais incontrolável. 

Aquela conversa fora a última que ambos tiveram dentro da cela subterrânea... E, sobretudo, a primeira em que Robert Loub tinha dado a última palavra. 

                                                                                  ***

"Sem controle", pensara Mollock, as palavras de seu "pai" ecoando na sua mente inúmeras vezes. "Eu possuo controle... Agora!". O mundo ao seu redor era somente um borrão azul escuro enquanto corria em alta velocidade na direção de Rosie Cambpell, as garras prontamente afiadas reluzindo. A jovem, por outro lado, avançava contra ele emanando uma calma talvez ensaiada, mas que fora muito efetiva. Com aquela lâmina enorme, grossa e falciforme, Rosie corria pelo solo pedregoso, na parte mais alta das Ruínas Cinzas, encarando o algoz com ferocidade. Segurava o cabo da arma firmemente, e sua respiração ficava mais intensa à medida que seus corpos velozes estavam prestes a gerar uma colisão visceral.

Um estridente e irregular barulho metálico de ferro se chocando ressoou no espaço vibrantemente, fazendo erguer uma nuvem fina de poeira fria. Mollock defendera-se cravando suas dez garras na lâmina de Rosie, impedindo que a mesma o derrubasse ou o atingisse.

A jovem empurrava com mais força, mas se deu conta do quão pesado era o corpo do monstro. Por outro lado, Mollock tentava contra-atacar, também empurrando a lâmina na direção oposta, seus olhos fumegando ódio. De repente, sentiu que o fio de corte da arma penetrar nas suas palmas deixando cair algumas gotas de sangue. "Pode me ferir, mas jamais me matar!". Aquilo serviu como pura distração e ele foi empurrado cada vez mais pela força persistente de Rosie. Os pés do rei pareciam querer afundar-se no chão. Foi então que, canalizando toda a sua energia para seus músculos braçais, Mollock, primeiramente, virara a lâmina na posição vertical, em seguida conseguiu fazer com que o cabo de ferro oxidado batesse contra o rosto de Rosie com um baque tremendo na bochecha do jovem.

Jogara a arma a uma certa distância. Rosie caíra rolando no chão, a boca sangrando. A lâmina da arma bateu contra uma pedra próxima. Mollock, andando como se quisesse aumentar de tamanho - ao mesmo tempo agradecendo por sua fisionomia robusta -, tornou a fitar Rosie furiosamente. A jovem se levantara sem esforço, cuspindo sangue. Virou a cabeça para Mollock, fulminando com o olhar.

- Está jogando sujo demais para alguém que quer ser visto como um rei justo. - provocou ela, limpando o sangue que escorria pelo seu queixo.

- Ouça-me, criança, não preferiria gastar minha energia com você - dizia Mollock, relanceando a arma jogada no chão à sua direita. - mas estando conivente com os atos para me interceptar... não vejo outra saída a não ser mata-la.

Rosie colocou-se em postura e tornou a sorrir.

- Ah é? Então chega um pouco mais perto se quer mesmo tentar. - disse ela, idealizando uma manobra.

Com um rugido, Mollock iniciara mais uma ofensiva, correndo na direção dela, mas afiando somente as garras da mão direita. Como um reflexo instintivo, Rosie dera um pulo pairando horizontalmente no ar por milissegundos até chutar o rosto de Mollock com extrema violência. Em seguida, rapidamente o golpeara com o cotovelo na lateral de seu corpo, depois apoiando uma mão no chão para dar-lhe mais um chute bem treinado no seu maxilar, fazendo-o inclinar a cabeça para trás com um urro.

Mollock, para sua sorte, não caíra. Muito pelo contrário: Inclinou velozmente o rosto machucado para frente, na direção de Rosie, os olhos insanamente esbugalhados.

- É tudo o que você tem!? - questionara ele, as presas rangendo brilhantes.

A jovem não se abatera diante daquela monstruosa imagem. Sem perder tempo, correu até a arma caída no chão, segurando o cabo enferrujado e investindo contra Mollock sem titubear, resistindo ao peso da lâmina. Contudo, só o que ouvira foi o baque agora inconfundível das garras do rei contra o metal da arma. Com apenas uma mão, Mollock segurava a lâmina tremulamente, mas já contentado pela evidente vantagem. Sorriu abertamente para Rosie. A mesma o fuzilou com os olhos enquanto pressionava a arma contra a mão direita dele.

Rosie, estranhamente, sentiu um inesperado calor descer gradativamente até o cabo da arma. Franziu o cenho, confusa. "De onde vem esse... ar quente?!", pensou ela, cerrando os dentes. Mollock manteve-se sorridente... ao passo em que a mão que segurava aquele objeto cortante e pesado entrava em brasas. Rosie arregalou os olhos, estupefata. "A mão dele está queimando!". Não exatamente. A combustão provinda da mão se originara de seu âmago, sua vontade interior mais profunda, o calor percorrendo a lâmina, esquentando-a até a mesma entrar igualmente em brasas, crepitando. O fio cortante fora derretido virando uma pasta quente que derramava no chão, tal como lava de vulcão. Rosie largou imediatamente o cabo assim que sentiu o calor queimar-lhe as mãos. Nem ao menos percebera o golpe dado por Mollock contra seu rosto. O rei a atacara com uma bofetada, jogando-a a alguns metros de distância.

- Isso é incrível. - disse ele, admirado com a descoberta examinando sua mão. - É a aproximação! Posso senti-la! Estou chegando perto de meu destino!. - cerrara a mão, virando-se para o chão de ladrilhos verdes que formava o piso do Templo de Mitra.

Rosie novamente se levantava, observando com desespero Mollock correr na direção da tampa.

- Não! - berrou ela, começando a correr atrás dele em disparada.

Embora a distância entre o ponto de onde estavam parecesse relativamente longe da tampa, nenhum dos dois estava disposto a perder um segundo se quisessem obter suas conquistas. Mollock, em uma rápida manobra, pulou por cima de uma alta pedra, seu corpo em câmera lenta flutuando no ar e reluzindo à lua, atravessando o obstáculo. Uma gradual torrente de nuvens tempestuosas se aproximava dali... deixando o local ainda mais sombrio.

Rosie também pulara a rocha... para cair por cima dele!

A jovem agarrara suas mandíbulas com extrema força, erguendo-as. Mollock tentou se desvencilhar, querendo tira-la de suas costas, movendo a cabeça de um lado para o outro em um ritmo louco e selvagem. "Sua inseta! Saia de cima de mim!". A confusão entre ambos os fez esbarrar fortemente em um pilar afundado numa poça de areia. A estrutura rachou por alguns centímetros, caindo fragmentos e pó sobre eles. Rosie sacara uma adaga - desembainhando-a com um som rascante - e a enfiara na veia carótida de Mollock.

Seu urro estridente quase estourara os tímpanos da jovem, que logo pulou para voltar ao chão assim que um poderoso jato de sangue se lançava no ar ininterruptamente. Rosie assistia, caída no chão, horrorizada à cena. Mollock gritava de dor tentando pressionar a ferida, mas o denso espirro de sangue que saía o impedia. A jovem sentia todo o mundo a sua volta vibrar intensamente. "Mas que loucura é essa!?", pensou ela chocada, tentando se afastar, engatinhado para trás.

                                                                                 ***

Do outro lado, um pouco mais distante, Charlie corria por entre os vários pilares caídos, se escondendo a cada minuto e assistindo o embate que se seguia. "Não posso acreditar que Rosie está lutando sozinha contra esse monstro!", pensou o rapaz, embasbacado com o que via. "Ao menos ela conseguiu feri-lo... Mas não por muito tempo. Mollock possui resistência máxima e não demorará para se recuperar. Pode estar apenas fingindo dor para convencer Rosie de que não é tão forte quanto pensavam.". O mago do tempo mordera os lábios, tentando barrar os mais pessimistas dos pensamentos. "Hector, Adam... onde estão todos vocês? Venham logo!". Era imprescindivelmente necessário que Charlie conseguisse uma distância mínima suficiente para que pudesse conjurar o selo de barreira enquanto os outros distraíam Mollock . "É nossa última chance.".

Viu Rosie caída no chão... aos poucos se afastando do monstro que não parava de gritar e sangrar.

"Não recue, Rosie! Ele pode estar tentando ganhar tempo para pega-la desprevenida, ele sabe que está com a guarda baixa!", pensava ele, querendo, mais do que tudo, um contato quase que telepático. Mas era pedir demais. Restava-lhe apenas assistir desesperado.

                                                                                    ***

O time da Legião atravessava aceleradamente pelo espaço coberto por colunas caídas e despedaçadas.  Lester estava detestando ter que correr por aquele monte de escombros largados pelo chão. "Caramba, levar um tropeço nesse lugar é mais fácil do que levar uma bala na cabeça num tiroteio!", reclamou ele, empunhando sua eficiente Ak-47. Êmina, Alexia e Adam vinham logo atrás dele, correndo quase que lado a lado, passando pelos inúmeros blocos de mármore cinza.

- Cuidado, Alexia! - alertou Adam, olhando por trás do ombro. - Olhe bem por onde pisa!

- Tudo bem! - respondeu ela, correndo e focando-se nos blocos, atentando-se para não tropeçar.

Hector ficara para trás, em luta corporal contra um Red Wolf remanescente. Prometera alcançar os quatro logo mais assim que os viu correrem, mas, ao que tudo indicava, não estava para cumprir sua palavra tão cedo.

Uma sequência de socos entre ambos quase se fez interminável. "Estamos decidindo quem vai cair primeiro?! Eu topo!", pensou o caçador, revidando violentamente com um soco. Levara mais outro de igual peso.

Ambos tiveram de cessar por um instante. Estavam ofegantes e sangrando bastante no rosto.

- Olha... - disse o assassino. - confesso que estou cansado dessa brincadeira. Pausa para respirar.

Hector dera uma risadinha escabrosa.

- E eu que deveria estar ao lado dos meus amigos agora... tenho que perder meu tempo com um reles assassino profissional que pensa que, mesmo ganhando a briga, irá receber a recompensa!

- Cala a boca, seu otário! - vociferou ele, irritado. - Meu mestre vai me recompensar o quádruplo do salário que nunca cheguei a ganhar pelos serviços sujos que eu fazia!

- Seu mestre vai acabar morto se continuar insistindo em meter mais o nariz onde não deve. - retrucou Hector, semi-cerrando os olhos e encarando-o. - Ele teve sorte de ter escapado de mim com vida!

O homem respirou fundo se reposicionando para voltar com a troca de socos.

- Bem, parece que a pausa acabou. - disse ele, assoando uma narina de onde saiu uma boa quantidade de sangue.

Hector rira dele em tom baixo, mas zombeteiro.

- Tem razão. Acabou mesmo. - disse ele, logo sacando uma pistola de dentro de seu sobretudo.

Disparara um único tiro sem dó. O projétil acertara o peito esquerdo do homem em cheio.

Vendo o assassino cair se debatendo de dor diante de si, Hector assoprara a fumaça que saía do cano da pistola. Contudo, o caçador, sem perceber, acabou sendo acometido por um transe a partir de uma visão que o induziu a uma luta consigo mesmo. Aquele sangue quente gorgolejando pela ferida aberta pela bala lhe era, de alguma forma, atraente. Piscara os olhos diversas vezes, sentindo-se paralisado. "O que está havendo comigo?". Um desejo nunca antes experimentado passara a lhe torturar, quase dominando-o. A poça de sangue crescia à medida que seus olhos se tornavam mais ávidos... o homem já jazia morto no chão de pedra.

O caçador balançava a cabeça negativamente em rápido ritmo, não aceitando aquela sensação estranha e viciante. "Por que? Por que me sinto assim?", se perguntou, curiosamente sentindo seus caninos cresceram devagar. "Preciso sair daqui!".

Após recuar alguns passos, o caçador hesitou, inclinando a cabeça para um lado e observando o crescer da poça sangrenta envolta do cadáver. Em um desvencilhamento súbito e de muito esforço, ele saíra correndo na direção em que seus amigos estavam indo. Enquanto corria, refletia sobre aquele lampejo animalesco.

"Já está acontecendo... E mais cedo do que eu pensava!".

                                                                                      ***

"Cadê todo mundo?! Por que estão demorando tanto?", pensava Rosie enquanto observava, desesperada, o pupilo de Abamanu amenizar os gritos, logo convertendo-os em gemidos angustiados - mas, por impressão, um tanto forçados aparentemente. Mollock se ajoelhou, continuando a pressionar a ferida causada pela adaga em seu pescoço. Quando seus joelhos tocaram o chão, baixara a cabeça, arquejando copiosamente. Os gemidos tornaram-se grunhidos quase inaudíveis... em seguida, rosnados entrecortados de tom baixo, mas intimidadores.

O profundo corte foi se fechando lentamente, a hemorragia cessando. Fechou-se até virar uma cicatriz praticamente invisível. Rosie, com as pupilas dilatadas, pareceu ver detalhadamente o fenômeno. "Não pode ser! Ele... ele se recuperou, como se... Isso só pode ser um pesadelo!". A jovem rangera os dentes, revoltada com o que presenciou. Idealizou uma atitude arriscada. "Será que isso é uma deixa? Vamos ver.".

Sacou, sem fazer um ruído sequer, uma adaga. Após sentar-se, ela se levantou calmamente, os olhos cravados em Mollock ajoelhado e recuperando suas energias. Posicionou a lâmina, de modo a mirar direta e precisamente no cocuruto do monstro. Testara, por fim, o arremesso. A lâmina fez um conhecido barulho ao rasgar o ar ao ser lançada.

Mollock abrira os olhos e conteve um sorriso.

Em um reflexo formidável, o rei conseguira agarrar a adaga antes que a mesma tocasse sua pele, a ponta ficando a poucos centímetros de sua testa.

Estupefata demais para processar aquilo, Rosie estremecera, ficando totalmente de pé. Ofegou, cansada, sua boca expelindo espirais de ar gélido noturno. Um clarão de um relâmpago reluziu Mollock assustadoramente quando o mesmo jogara a adaga no chão, passando a encarar Rosie com ódio elevado.

Rosie relanceou com os olhos o céu preto-azulado da noite - já madrugada. Nuvens carregadas já se encontravam acima daquele ponto, e àquela altura já ocultaram a Superlua, fazendo todo o espaço mergulhar em uma atmosfera tenebrosa e sinistra. "Essa não. Uma chuva só vai dificultar ainda mais as coisas.". Para seu engano, não havia caído um pingo sequer... por enquanto.

- Contemple, criança! - bradou Mollock. - Esta tempestade que irá cair é o elemento que completa a cerimônia da minha iluminação! Fique exatamente onde está!

- Já fui chamada de vadia e agora de criança!? - disse Rosie, reavendo a posição de luta. - Quantos seres estúpidos são necessários para dar nomes ofensivos a uma garota já adulta?

- Não pense que com isso está me atrasando. - retrucou Mollock, dando passos para os lados. - Consigo ouvi-lo... está me chamando. Sou o predestinado, escolhido para ostentar a sabedoria divina!

- Quer ostentar mais uma dessas? - perguntou Rosie, desembainhando mais uma adaga.

Mollock dera uma risada simultânea a uma trovoada, tornando-a arrepiante. Suas presas foram iluminadas pelo relâmpago.

- Vejo que ainda não se deu conta da própria insignificância! - zombou ele, olhando para a arma cortante. - Você me parece tão... insegura, atormentada... e pequena. Será isto mais um sinal de minha ascensão?

Um fervor repentino despertou do âmago de Rosie como a combustão de um líquido perigoso. Sua expressão se contraiu em uma cólera intensa. A respiração tornou-se pesarosa, como se um balão, prestes a explodir, estivesse inflando em seu peito. Mollock a provocou com o olhar amarelo penetrante aos sons dos trovões. Ia escapando aos poucos em passos vagarosos e cuidadosos.

- Fui alertada... sobre algo que pulsa dentro de mim, querendo se libertar. - disse ela, mal se contendo de tanta raiva, fulminando Mollock com os olhos. - Agora, nesse exato momento, consigo sentir um fogo... arder dentro do meu peito! - dera alguns passos à frente. - E, também, agora posso usa-lo contra algo por controle próprio.

"Controle."

A palavra pegara Mollock desprevenido. Ele estacou, ainda fitando-a, agora com ar mais sério.

- Pela forma como diz... não parece estar segura de tal controle. - argumentou ele.

- Na realidade, jamais me senti tão segura e viva como agora. - disse Rosie, deixando um ínfimo brilho vermelho tomar conta de sua íris azul. - Vou derruba-lo... antes que derrube vidas inocentes!

Com uma velocidade arrasadora, Rosie investira contra Mollock com um chute potente em seu tórax robusto. A vibração resultante fora sentida por ambos. Rosie percebeu sua perna adquirir uma dormência ferrenha como se tivesse sido eletrocutada no momento do golpe. Mollock se surpreendeu ao sentir seu corpo tombar para trás como se um peso maior que o seu estivesse o empurrando com uma força latente.

O rei, em frações de segundos, sentiu-se arremessado, seu peso rasgando o ar frio. Suas costas chocaram-se violentamente contra um pilar, destroçando-o pela metade. Logo elas alcançaram o chão em um forte baque, arrastando com tudo um bocado de poeira e pequenas pedras. Mollock percebia que a queda ralara suas costas... mas que preocupação teria? Ao ver Rosie se aproximando com olhos fumegantes e vermelhos, em uma postura incomum para um humano comum, Mollock se levantara já sentindo os efeitos de sua regeneração, uma fator de cura instantânea desenvolvido pelo seu eu-demônio. "Seria a raiva o sentimento que torna os seres humanos tão fortes?", se perguntou ele, encarando Rosie que vinha a passos largos de forma ameaçadora.

"Não.", negou Mollock, sorrindo para ela. "Não são todos que agem assim. Ela é única, Especial de certa forma. Senti um poder imensurável apenas com aquele golpe! Ela não faz ideia do que esconde em seu interior!".

Uma nova e forte trovoada reverberou, fazendo o chão tremer.

No entanto, teve-se a impressão de que o estrondo continuou a soar... Mollock estranhou e apurou seus ouvidos mais do que já estavam. Rosie já se encontrava a poucos metros dele... raivosamente caminhando.

O som fora aumentando rapidamente... fazendo com que Mollock, por fim, virasse a cabeça para a sua direita com urgência... a mesma sensação de perigo tida antes.

Quando viu, foi tomado por uma onda de surpresa que fez seus instintos se erguerem.

Um objeto pontudo, verde e com uma cauda flamejante se aproximava a todo vapor.

Sobrelevando qualquer indício de medo, o rei não se deixara levar por nenhum temor diante de uma já identificada arma humana inferior às suas habilidades. Esticou a mão direita, confiante, mostrando a palma. "Chegaram tarde demais!".

O míssil de tamanho médio colidiu-se com a palma da mão de Mollock, gerando uma explosão vibrantemente arrebatadora. Rosie fora jogada metros e metros de distância devido ao impacto, junto com os inúmeros estilhaços da arma. Mollock pouco se importava com o fato de sua mão estar em chamas, movendo-a como se estivesse brincando... como se estivesse imune a qualquer ação que o afetasse.

Labaredas baixas crepitavam ao seu redor. Um pequeno amontoado de ferro retorcido se incendiava à sua frente. Olhou-o com certo desdém e voltara-se para a frente... de onde pôde enxergar vultos que chegavam perto... figuras humanas e corajosas.

Adam corria na frente mais depressa do que antes, alvejando Mollock com o olhar. "Aí está você, sua criatura infernal!". Ao seu lado, Êmina largara a bazuca no chão e sacou seu giz de cera.

Lester se enveredou pelo outro lado, escalando uma pilha de escombros, a AK-47 em suas costas prendida em uma alça. Sua preocupação com Charlie não lhe saía da mente. "Tomara que você esteja por perto... e faça a sua parte!".

Alexia, que vinha por trás de Adam, estacara de repente, horrorizada com a figura que via. Recuou alguns passos, logo percebendo que o caçador de braços fortes avançava para, justamente, enfrenta-lo corpo à corpo. Seu desespero foi quase instintivo. "Adam! Não! Fique longe desse monstro!"

Queria falar, mas as palavras travaram-se em sua garganta, fazendo os gritos se limitarem apenas aos pensamentos.

- Adam! - gritara outrem, cuja voz fora ligeiramente conhecida pela vidente.

Alexia virara-se para trás... deparando-se com Hector chegando perto e ofegante.

O caçador estava prestes a avançar para impedir o amigo, mas se deteve no mesmo instante. "Mal consigo respirar!", pensou, enquanto apoiava as mãos nos joelhos recuperando o fôlego. Tornou a olhar para frente, dominado pela aflição. "Não... Adam!".

Logo ao conseguir estar frente á frente com Mollock, Adam concentrou toda a sua energia e força em seu punho direito fechado. Golpeara-o no abdômen com brutalidade, tendo, em seguida, sentido os músculos de seu braço tremerem.

Mollock, contudo, mostrou-se inabalável e aparentava estar reprimindo um riso de escárnio ao fitar o caçador. Adam gemia, frustrado, seus olhos indo de encontro aos penetrantes e aterradores do outro.

- Devo parabeniza-lo por tamanha coragem. - disse Mollock. - Mas sua imprudência acabou lhe descontando alguns pontos e, por essa razão, estou decepcionado. Esperava mais de meus inimigos.

Um grito ecoou no ar vindo de certa distância.

- Ei! Aqui seu monstrengo! - berrou Lester, do alto da pilha de escombros, o fuzil em riste pronto para disparar. Aquela fora uma tentativa de desviar a atenção de Mollock para, assim, salvar Adam.

O estrategista apertou o gatilho com força de vontade três vezes seguidas. O corpo de Mollock se debateu em pé com o impacto das balas direto no coração e torso. Adam se jogara para um lado, abaixando-se para não sair ferido. O urro dado por Mollock arrepiara Êmina... que parou diante da imensidão do eco produzido.

- Êmina! - gritou Adam, de quatro no chão. - Agora!

Antes que a caçadora pudesse riscar o giz no pedregoso solo, Mollock se mantinha de pé... curando-se das feridas de bala, cada uma delas saindo de seu corpo e caindo. Os cinco assistiram àquela cena embasbacados e atônitos.

- Mas... que negócio é esse? - se perguntou Êmina, os olhos arregalados de temor.

Hector e Alexia olhavam para todos os lados á procura de Charlie.

- A pior coisa que pode acontecer é Charlie ser exposto. - afirmou Hector. Voltou-se para Mollock. - O que acabamos de ver... mostra que nossas chances contra Mollock são nulas.

Alexia se virou para ele, incrédula.

- O quê? Como pode ter tanta certeza disso? - indagou ela, o tom de irritação.

Hector ignorara sua pergunta ao dar mais passos para frente e focar-se em Êmina, que estava em transe e paralisada.

- Êmina! Use a sua alquimia para imobiliza-lo! Depressa! - avisou o caçador, aos berros.

Como se houvesse sido libertada de um estado hipnótico, Êmina agilizou o processo. Agachou-se, desenhou o símbolo alquímico no chão de pedra e pôs rapidamente as duas mãos sobre ele. A característica luz azulada que irradiara do desenho abrilhantou o espaço ao redor dela. Totalmente recuperado, Mollock voltou seu olhar furioso, com precisão, diretamente para o atirador.

Abrira a enorme boca e expelira uma nova rajada de fogo enquanto gritava selvagemente. Lester encarou assustado aquele mar de fogo vindo em sua direção e tornou a pular da pilha de blocos de pedra gritando de desespero. "Será que sabiam que esse monstro cuspia fogo e não quiseram me avisar?", pensou, pulando cada bloco como se fossem degraus de uma escada malfeita.

Para a infelicidade do rei, uma parede havia, aparentemente, surgida do nada, barrando a "serpente de fogo". A transmutação ocorrera no tempo exato.

Ao se dar conta, Mollock franziu o cenho, estranhando a muralha á sua frente. Virou-se para Êmina.

- Você! - gritou ele, apontando.

A caçadora não estava disposta a ouvir um sermão seguido de uma ameaça. Desenhou mais alguns pequenos símbolos em espaços vazios do círculo... e tocou em cada um deles com a palma da mão.

Instantaneamente, a muralha ganhara um reforço quando emergiram da terra mais quatro muros altos, seguido de um fechamento na parte superior, logo fazendo aquilo parecer uma espécie de redoma de pedra.

Hector correra até Êmina, observando a prisão feita para Mollock. Adam veio junto no mesmo instante.

- Estão bem? - perguntou Adam, olhando para ambos.

- Sim. - responderam em uníssono.

Alexia andava depressa de um lado para o outro, visivelmente indecisa sobre procurar pro Charlie ou Rosie. "Meu deus, o que eu faço? Essa sensação... de insegurança. Não consigo me desprender, é horrível!", lamentou-se ela, com as mãos na cabeça sem saber por onde rumar.

- Pessoal... - dizia Hector. - Sinto em dizer isso, mas... Mollock agora é imbatível. - afirmou, o tom pessimista.

- Só porque ele agora cospe fogo? - indagou Êmina, discordando. - Grande coisa, Hector. Já enfrentamos coisas ainda mais medonhas, então porque vo...

- Vocês não estão entendendo! - disse o caçador, impaciente. - Mollock possui uma metade demoníaca e, obviamente, esta parte é a que mais alimenta seus poderes. Mas ela recebeu um reforço.

- Reforço!? - murmurou Adam, o cenho franzido. - Tudo bem, nós já sabemos que Mollock ficou ainda mais forte enquanto esteve no Museu... mas intelectualmente.

- Não só foi uma evolução mental, Adam. - retrucou Hector olhando para ele. - Para Mollock todo e qualquer tipo de conhecimento é poder. Não importa qual seja a fonte. Podem ser livros, pinturas, peças teatrais, músicas... até sangue de outros demônios. - revelou, a expressão temerosa.

Adam e Êmina o olhavam curioso, como se dessem-se conta de que Hector sabia mais do que dizia.

- Hector que história é essa? - perguntou Adam, intrigado.

- Sinto muito. - disse ele, assentindo negativamente. - Não temos tempo para contar histórias longas.

- Olha - disse Êmina. - eu tô muito curiosa, mas parece que nosso alvo... - voltou-se para a "redoma". - ... está afim de sair da casca. Então é melhor bolarmos um plano rápido.

- O próprio Mollock é a casca. - disse Hector como que querendo lembra-los da armadilha na tampa que abriga uma abertura cujo acesso leva à cripta de Abamanu. - Mas pensando bem... acho que sei como podemos impedi-los.

- Então é bom que seja rápido. - uma voz feminina fizera os três se virarem aos mesmo tempo.

Radiantes, o trio suspirara aliviado... ao verem Rosie Cambpell andar em direção à eles sem ferimentos graves. A jovem parecia exausta, mas tentava transparecer uma disposição permanente.

- Rosie! - disse Alexia, correndo até ela. - Que bom ainda estar viva!

- Alexia... - disse ela, olhando-a condescendente, pondo uma mão em seu ombro. - Fico feliz também. Por todos vocês. - olhou para os lados. - Onde está Charlie e Lester?

- Aqui! - gritou Lester, correndo. - Acho que vai cair um dilúvio daqui a pouco. Melhor que sejamos ágeis. - olhou para a "redoma", tremendo só de ouvir as insistentes e desesperadas batidas de Mollock. - É impressão minha ou ele parece estar gritando lá dentro?

- Está desesperado. - disse Rosie, fitando a domo de pedra. - E incrivelmente mais forte.

- Você lutou com ele? - indagou Lester, espantado.

- Foi a única coisa que tive de fazer antes de vocês virem. Queria mante-lo o mais longe possível.

- E fez muito bem. - disse Hector, assentindo para ela. - O que tenho em mente é avançarmos para o Templo de Mitra antes que Mollock quebre a parede. Estimo uma distância de uns vinte quilômetros.

- Boa ideia. - elogiou Lester. - Sabia que pensei quase a mesma coisa? - lançou um olhar brincalhão.

- Jura? - indagou Êmina, fitando-o com as sobrancelhas franzidas.

Hector demonstrou impaciência ao bradar de uma vez para agirem com o plano idealizado.

- Podemos ir agora? - disse ele, já se encaminhando para começar a correr.

- Sim, vamos lá. - disse Adam. - É muito provável que Charlie já tenha chegado lá antes de nós.

No exato momento em que iriam iniciar mais uma frenética corrida, todos os seis voltaram seus olhares atentos para a "redoma"... após um tremendo estrondo de pedra sendo quebrada ecoar pelo espaço juntamente com uma poderosa trovoada.

                                                                                      ***

Sem se abater pelos constantes relâmpagos que iluminavam tudo a sua volta e os barulhentos trovões, Charlie corria irrefreavelmente, passando pelos blocos mais densos e maiores, uma verdadeiro oceano de mármore puro. "Não tenho outra escolha! Vou ter de pegar Mollock de surpresa e marca-lo com o selo de contenção!", pensou, despreocupado se o risco valeria a pena ou não. "Se um sacrifício tiver que ser necessário... eu sou a pessoa que se dispõe, independentemente se der certo ou não, tentarei pelos meus amigos!"

Ele mal percebia a estrutura colossal do Templo de Mitra se erguendo como uma montanha diante dele quanto mais rápido corria.

                                                                                      ***

O baque estridente que viera do "redoma" de pedra fez com que a Legião lutasse contra um imenso torpor. Os entreolhares alertas e assustados, contudo, mostraram-se encorajadores de certo modo. Mollock, definitivamente, transformara-se em um "trem desgovernado", imparável e a uma velocidade espantosa. Como o espaço estava moderadamente escuro, os heróis usaram os relâmpagos a seu favor. A ausência deles apenas faria com que vissem um vulto escuro e indistinguível correndo.

Quanto mais corriam, a impressão que se tinha era de que as nuvens ficavam mais negras, querendo mergulhar aquele local em trevas profundas.

Mollock mal se conteve diante da ansiedade. "Sou indestrutível! Eu deveria te-los matado enquanto tive a chance! Mas tudo bem... talvez seja necessário que eu use toda minha força que despertei para transforma-los em pó assim que eu chegar à cripta!".

Do outro lado, Charlie corria cada vez mais veloz, resistindo ao frio que teimava em barra-lo. "Lá está! Finalmente!", pensou, ao se dar conta da grandeza de mármore que se avizinhava. "É maior do que eu imaginava!". Admirou por uns instantes a arquitetura. Entretanto, desiludiu-se, percebendo o quão distraído estava... e o quão lentos seus passos tornavam-se.

Um arrepio percorreu sua espinha quando sua visão periférica detectara um sombra volumosamente negra correndo empolgadamente, quase saltando.

Virou o rosto para sua esquerda... e foi acometido por uma onda de medo. "Não posso acreditar! Não!", pensou, os olhos esbugalhados fitando Mollock correndo a alguns metros de distância do seu lado.

A mera distração o fez colidir brutalmente contra uma coluna de mármore no meio do caminho. Havia desviado do curso, hipnotizado pelo horror. Sentiu uma dor lancinante correr pelo seu rosto e tórax enquanto seu corpo caía frágil no chão.

Ao passar a mão pela face, sentiu um fresco líquido escorrer pelo nariz e boca. "Oh, não... espero não ter quebrado nada, nenhum osso". Levantou-se com dificuldade, mas conseguira retomar a corrida, pressionando com firmeza a mão no nariz a fim de estancar a hemorragia.

O selo de contenção estava na outra mão, pronto para ser usado.

                                                                                     ***

Hector olhara seu relógio de pulso. Uma e quinze da madrugada. "Ora, mas que droga! Por que tão tarde?". Rangeu os dentes. Suas pernas doíam após várias corridas. Agora estava na frente, correndo junto de seus amigos na luta para impedir que aquele monstro alcançasse seu objetivo. Lembrara-se do que Eleonor havia dito em relação as vantagens que os 72 demônios do Goétia detinham, principalmente acerca de uma sobre o sangue espesso e escarlate enegrecido. " Um demônio goético pode simplesmente quintuplicar seus atributos apenas bebendo do sangue de outro. É uma façanha exclusiva para demônios do Goétia. Se caso 71 fossem mortos por um único demônio e este se embebesse de seus sangues, ele talvez se tornaria uma das entidades bestiais mais poderosas de todo o submundo.", informara ela enquanto estavam confinados na sala secreta do curador do Museu. Evidentemente, aquilo explicava, sem sombra de dúvidas, a invulnerabilidade de Mollock.

Após alguns instantes, conseguiam ver a estrutura do Templo de Mitra. Mollock já se encaminhava a polvorosa em direção ao piso de ladrilhos verdes, estando a poucos metros.

Rosie corria ao lado do caçador, os olhos fixos no vulto de Mollock, impressionando-se quando ele era iluminado pelos relâmpagos.

- Não vai dar tempo! - bradou Hector, as esperanças esvaídas, embora fosse dominado por uma vontade imensa de correr mais rápido.

Charlie já mantinha-se próximo o suficiente do piso de ladrilhos... mas já se via sem vantagem. "Quisera eu poder conjurar o selo correndo! Ele já está perto demais! Perto demais!". O sangramento em seu nariz cessara, felizmente. "Ele não pode alcançar a tampa... ". Seu pensamento fora cortado ao ver uma silhueta humana adquirir uma velocidade intensa, quase que querendo tornar-se sobre-humana. "Hector!?", disse Charlie, surpreso, reconhecendo de relance a vestimenta do indivíduo.

O caçador surpreendera a todos com sua persistência sem limites ao querer parar Mollock.

Sacara duas pistolas de seu sobretudo de couro marrom e estendeu os braços, logo em seguida apertando os dois gatilhos sem titubear. Os trovões retumbantes abafavam os estampidos das armas.

Um raio fora dado, clareando todo o espaço. A forma de Mollock tornou-se perfeitamente visível naqueles segundos. Ele parara, indiferente ao ataque de Hector. Virou-se para o caçador, sorrindo.

Hector não cessara os tiros. Quando a munição de uma acabava, pegara outra e disparava com uma expressão repleta de ódio. As balas pareciam ricochetear ao penetrarem no duro corpo de Mollock, mas na verdade apenas estavam caindo no chão por não atravessarem aquela pele resistente. As palavras de Charlie passaram a ecoar em sua mente. "A mosca sendo atraída para a teia da aranha."

- Eu só queria... - dizia Hector, o semblante carregado de fúria. - ... apenas uma chance! Uma única chance para poder te matar! De um jeito tão brutal quanto você fez com Josh! - vociferou ele.

Rosie se aproximara dele, na intenção de pedir para que parasse.

Adam, Lester, Êmina e Alexia observavam a cena, estupefatos. O líder da Legião dos Caçadores correu para mais perto de onde Rosie estava, desesperado.

- Hector! Já chega! - gritava ele. - Não está vendo que nenhum desses tiros está adiantando?! Você mesmo disse: Ele tornou-se imbatível!

O caçador tivera de admitir. No entanto, ainda consumido pela raiva e pela dor da perda do amigo, Hector custava a aceitar que aquilo fosse um ato executado em vão, tal como um desperdício de força, sentimentos e, sobretudo, munição.

Lester também entrara no meio para convence-lo a parar de atirar.

- Ei Hector! - gritou ele, ao lado de Adam. - Já chega, cara! Nada disso tá funcionando!

Rosie ficara parada atrás dele, muda... ignorando o ensurdecedor barulho dos tiros e refletindo sobre aquela reação exagerada e persistente de Hector. Se pegou perguntando a si mesma: "Seria isto... uma demonstração de arrependimento ou uma pura encenação?". Aproximou-se um pouco mais, conseguindo ver os olhos do caçador. "É verdade! Consigo sentir... Ele está possuído de ódio! Como se... quisesse vingar alguém. Seu pai? É... não há dúvidas.".

Mollock saboreava cada momento ao testemunhar o forte desejo de vingança do caçador tomar proporções incontroláveis. "Isso! Continue atirando! Descarregue toda sua raiva contra mim para que eu possa retribuí-la em dobro e faze-los caírem perante mim!".

Rosie, por fim, manifestara uma vontade que guardou por vários minutos.

- Já chega!! - gritou ela, debruçando-se sobre Hector e agarrando seu braço direito, apertando-o com força. Em sua nuca, o caçador pôde sentir um líquido escorrer... lágrimas.

Satisfeito, Mollock retomara sua corrida... que não exigiria mais nenhum esforço.

Seus pés tocaram o piso de ladrilhos e seus olhos estavam fixos na tampa circular que levantaria para descer até a cripta de Abamanu. "É agora!".

Um relâmpago abrilhantou a estrutura do Templo de Mitra em um aspecto aterrador. Como o modelo de arquitetura era deveras semelhante a um templo grego, parecia que a fúria de um dos deuses do Panteão estava prestes a recair sobre aquele lugar.

Hector tremia enquanto Rosie ainda agarrava seu braço. A munição das pistolas havia acabado por definitivo, os canos fumaçando. Largou-as e virou-se para Rosie. Viu os olhos da jovem marejados.

- Seu idiota. - disse ela, levemente sorrindo e enxugando as lágrimas.

Uma presença surpreendera a todos.

Charlie irrompera por entre dois pilares decadentes, correndo na direção deles. Alexia se empertigou e correu para abraça-lo. Rosie e Hector puderam respirar em alívio... por enquanto.

A vidente passou suas brancas e doces mãos pelo rosto do rapaz, emocionada.

- Charlie... ainda bem... - soluçava em choro. - ... ainda bem que está vivo.

O mago do tempo a fitava com angústia. Passou a olhar para os outros, desalentado.

- Eu sinto muito. - disse ele. - Mollock tornou-se mais rápido do que eu havia previsto. Eu o subestimei. E com isso... eu quero dizer que o selo de separação falhou.

- Sim, eu vi. - respondeu Rosie. - Era como se ele já esperasse por aquela investida desde o início.

- Ainda há uma chance! - disse Êmina, abruptamente. - Charlie, você ainda está com o selo de contenção, certo? - perguntou a alquimista, ansiosa.

- Sim. - respondeu ele, tenso. Tornou a voltar-se para Mollock. - Mas... eu não sei! Tentar agora significa fortalecer um perigo de proximidade.

Alexia puxara de leve seu braço chamando-lhe a atenção.

- Charlie, por favor. - implorou ela. - Esteve disposto a se arriscar o tempo todo. Pode faze-lo agora.

- Ainda há tempo. - disse Adam, assentindo para ele. - A abertura para a cripta fica no centro... - voltou seu olhar para Mollock. - E veja só! Ele simplesmente está andando!

- Não tá dando a mínima se a gente vai ou não tentar impedir ele de novo. - disse Lester, aborrecido.

Charlie respirara fundo, imaginando as inúmeras possibilidades... todas elas desastrosas. Sem se deixar render pelo medo e a insegurança proporcionada pelo revés anterior. O mago do tempo pareceu se recompor, aspirando uma coragem desafiadora.

Em um impulso, disparou em linha reta na direção do pupilo de Abamanu, o céu relampejando acima de sua cabeça. Todos se empertigaram em simultâneo, ávidos para assistir o clímax daquele plano.

Entretanto, Rosie se deteve. Sua expressão de pura confiança alterou-se para assombro.

- Não! - gritou ela, olhando para Charlie cada vez mais próximo de Mollock.

- O que foi, Rosie? - perguntou Hector, abismado.

- Sinto... um mau pressentimento. - fizera uma cara de desconforto. - Charlie não vai conseguir.

- O quê!? - perguntaram em uníssono Adam, Êmina e Lester.

Sem esperar um segundo a mais, a jovem tornou a correr em disparada, seu semblante de genuína e dolorosa preocupação.

- Charlie, saia daí! - vociferava ela.

O jovem físico despontou para o piso de ladrilhos, o selo em riste pronto para ser conjurado. "É agora ou nunca!". Todavia, ao ouvir os gritos desesperados de Rosie, ele estacara imediatamente.

Mollock, por fim, já se via diante da tampa metálica e pesada que abriria-lhe passagem. Suspirou um ar pesado de vitória, sorrindo de orgulho. Sentira a presença de Charlie atrás dele, mas ignorou-a. "Estes vermes já estavam fadados à derrota antes mesmo de guerrearem.".

- Mollock! - berrou Charlie, erguendo o selo.

Rosie viera por trás dele, prestes a alerta-lo do perigo iminente. Hector e o restante do grupo corria para acompanha-la.

O rei levantara uma mão, em um generoso pedido para que parassem de persistir no impedimento.

Olhou por cima do ombro, fitando Charlie. "Então é você. Foi este humano que havia tentado me liquidar antes que aquela garota surgisse.".

- Charlie! Fique longe! - alertava Rosie com um tom de súplica na voz.

Mollock, sem temer absolutamente mais nada que lhe viesse a atrasa-lo, pôs os pés sob a tampa, a atenção fixada na maçaneta de ferro que servia para abri-la. Ergueu os tétricos olhos amarelos para Charlie, em seguida fitou os outros que se aproximavam. Alexia e o trio da Legião ficara alguns metros distantes.

- Vejam-me aqui. - disse Mollock, provocando-os. - Suas armas de calibre inferior não conseguiram me parar. E como primeira ordem de seu novo deus: Contemplem minha elevação ao saber divino! - falou, o tom de voz ecoando de tão súbito.

Charlie matinha-se recuando, os músculos retesados de temor.

- Charlie... - sussurrava Hector. - ... agora.

- Não. - respondeu ele, secamente, sem tirar os olhos de Mollock. - Já é tarde demais.

- O que disse!? - indagou Adam, perplexo. - É a sua chance, aproveite!

- Não há mais como! - esbravejou Charlie, virando o rosto para Adam por cima do ombro. Voltara-se novamente para Mollock, o sangue em ebulição. - Já posso sentir... o tecido da realidade se alterando gradualmente. Se havia mesmo uma oportunidade de pararmos isso... ela se foi.

As pessimistas palavras do rapaz ecoaram por vários segundos no ar. Tal eco tornou-se mais arrepiante com o estrondar de trovoadas e relâmpagos ainda mais fortes.

Uma inopina rajada de vento sacudira o espaço, fazendo o ar ficar mais gélido e pesado... como se a força da gravidade tornasse-se mais densa e difícil de se suportar.

Mollock sorrira ao olhar para cima, seu rosto animalesco brilhando a luz azulada dos relâmpagos. Iria se agachar para abrir a tampa... mas fora impedido novamente por uma carga estranha descendo sobre ele, praticamente imobilizando-o. "O que está havendo? Não posso me mover!".

Filetes elétricos dançavam pelo céu, unificando-se em uma só carga.

Uma extrema luz branca ofuscou toda a visão tempestuosa, vinda na forma de poderoso raio que descera violentamente de encontro ao chão... de encontro à Mollock!

Um onda hipersônica quase afundara o chão de ladrilhos, fazendo com que Charlie, Rosie e Hector fossem arremessados ao longe através da força do impacto. O resto do grupo fora jogado para trás como se fossem bonecos comuns, sentindo a vibração resultante fazer tremer todos os músculos.

Mollock gritava intensamente enquanto aquele raio de proporções catastróficas o atingia. Seus olhos fumegavam como se estivessem sendo incinerados, apresentando uma aterrorizante visão.

Por fim, o raio massacrante cessara, fazendo Mollock pôr novamente os pés no chão. Seu corpo estava estranhamente elétrico. Alguns raios intermitentes dançavam em torno de seu corpo. A tampa estava intacta, com apenas um mancha negra causada pelo impacto. Ao redor do monstro, o piso de ladrilhos verdes estava todo quebrantado, em pedaços.

Rosie fora a primeira a se levantar, depois de ter usado a capa vermelha como proteção. O capuz baixara sua cabeça sem que ela o movesse e o deixou assim enquanto observava a cena à sua frente, aflita. Ajudou Charlie a se levantar.

- Estão todos bem? - perguntou, a voz embargada de tensão.

- Não muito. - disse Lester, queixando-se de um dor nas costas. - Sinto como se tivesse sido virado do avesso. Que loucura foi essa?

Êmina ajudava Alexia, ambas sujas de poeira e com escoriações leves nos braços e rosto.

Adam se erguera com a ajuda de Hector, sentindo pontadas na ferida... outrora fechada. baixou os olhos para o ponto vermelho na lateral do corpo e suspirou em desalento. "Oh, não. Isso não pode estar acontecendo!".

- Adam! - disse Hector, reparando no ferimento. - Eu não tinha percebido...

- Tudo bem, tudo bem, tudo bem. - sussurrou ele, assentindo. - Eu mesmo... controlo o sangramento. Pode deixar. - disse, ao se dar conta do rompimento dos pontos feitos por Alexia horas antes.

Cedendo, o caçador-detetive juntou-se à Rosie e Charlie... que fitavam o vulto monstruoso à sua frente, parado e respirando pesadamente.

- Isso não foi um raio comum. - comentou Rosie, apreensiva.

- Por que Mollock não se mexe? - indagou Hector, a visão meio turva e a vibração ainda pulsando em sua cabeça.

Charlie engolira em seco aquela terrível revelação.

- Por que este não é mais Mollock. - disse, friamente, o tom denotando rendição.

Um pequeno e quase inaudível estrondo precedeu uma série de incontáveis raios azuis e finos que desciam do céu de tormenta para direções distintas ao redor do terreno que ocupava as Ruínas Cinzas. Todos se sobressaltaram, assustados com o que viam.

- Meu deus. - disse Lester, observando com espanto a sequência quase interminável de raios que caíam ao longe.

- Mas o que significa isso? - perguntou Rosie, sua voz abafada devido ao barulho.

                                                                                       ***

Do outro lado, a alguns quilômetros de distância, em uma parte mais baixa de um dos morros, estava o numeroso exército de quimeras licantrópicas... que recebia aqueles raios, cada um deles sendo atingidos sem serem queimados. Muito pelo contrário, estavam sendo aprimorados. Daquele céu enfurecido desciam os integrantes do exército do Cavaleiro da Noite Eterna... assumindo, por fim, seus respectivos receptáculos.

                                                                                       ***

Alexia se aproximara de Charlie às pressas, com palavras na ponta da língua. "De qualquer modo, eu vou acabar me sentindo obrigada a revelar tudo o que vi... Charlie deve ter imaginando que seria o sacrifício no meio de toda essa confusão, mas é a mim que Abamanu deverá levar! Não posso deixar que ele sofra as consequências no meu lugar.".

- Charlie! - disse ela, chegando ao seu lado. - Melhor que se esconda, por favor. - avisou ela, tensa.

O rapaz a olhou com estranheza, como se a mesma não fizesse ideia do que estava sugerindo.

- Alexia, acredito que seja você quem deve fazer isso. - olhara para Rosie, Hector e os outros. - Todos vocês devem buscar um lugar seguro.

- E espera que nós deixemos você lidar com isso sozinho? - protestou Hector. - Sei que já é tarde para tentarmos algo que reverta o estrago e isso só elucida o fato de que devemos ficar mais unidos do que nunca. - argumentou ele, firme.

- Não tiro sua razão, Hector. - afirmou Charlie, olhando-o com igual firmeza. - Mas sinto que Abamanu e eu temos um destino a traçar.

- O que quer dizer com isso? - indagou Rosie, intrigada.

- Ele obviamente conhece Chronos, e se o conhece sabe da existência da Ordem dos Magos do Tempo e das aptidões dos membros. - ele fez uma pausa, vislumbrando o corpo de Mollock ainda cabisbaixo e inerte. - E se caso ele demonstrar algum interesse em mim, estou disposto a assumir esse risco... para mante-los a salvo.

- Quer assumir um risco através de uma mera especulação? - retrucou Hector, não convencido.

- Não estou especulando. - respondeu Charlie. - Chronos possuía ligações com diversas divindades diferentes, com Abamanu talvez não tenha sido de outra forma.

Alexia mostrou-se impaciente.

- Talvez!? - ela balançou a cabeça em negação. - Charlie, eu lhe peço: Esconda-se e salve-se.

- Alexia está certa. - disse Rosie, em voz baixa. - Desde que chegamos aqui nossos rumos ficaram imprevisíveis e, já que falhamos, a partir de agora mais do que nunca.

- Vocês não estão entendendo, não fazem ide...

- Vejam. - sussurrou Adam interrompendo Charlie, apontando para o ser monstruoso à frente movendo-se lentamente. - Parece que ele está acordando.

Todas as atenções voltaram-se para a criatura que, aparentemente, estaria dormindo. Descontraiu os músculos, erguendo aos poucos a coluna juntamente à cabeça. O abrir dos olhos foi deveras abrupto e o último movimento para finalizar o "despertar". O processo durara cerca de 4 minutos. Tempo suficiente para Charlie correr, convencido a contragosto, e esconder-se em um local onde não poderia ser visto - uma pilha de blocos de mármore a alguns metros distante de onde o grupo estava, observando cada movimento através de uma fresta.

A criatura alongou o pescoço, parecendo se deliciar com o momento. Andou alguns passos, avaliando cada célula, cada átomo que compunha aquele robusto corpo de pelo duro e marrom escuro. Moveu as garras enquanto caminhava, mostrando-se satisfeito. Por fim, tornou a lançar um olhar determinado para o grupo de seres humanos à sua frente que o encaravam. Sorriu... não demorando a mostrar as presas.

Definitivamente, tal sorriso em nada parecia lembrar Mollock. A diferença foi vista como sendo assustadora. Rosie e Hector entreolharam-se nervosos e depois passaram a olhar para ele... vigoroso e esbanjando imponência. Todos sentiram o ar tornar-se mais rarefeito e o clima alterado-se.

O instante de silêncio foi de embrulhar o estômago.

Rosie engoliu a saliva, os nervos a flor da pele. Fitava-o com um ar mordaz.

- Então você é ele, não é? - perguntou ela, insegura.

O outro tratou de ignorar a pergunta, preocupando-se mais com a casca que possuíra.

Deu uma risadinha zombeteira.

- Este corpo... é bem mais aprimorado do que eu esperava. - disse Abamanu, olhando para as mãos, o tom de voz sinistro. - Hora de começarmos. - olhou para o grupo com um sorriso presunçoso.

Hector lutou contra a vontade de falar algo... mas não se conteve.

- Esta é a parte em que você nos mata e resolve pôr em prática seu plano ardiloso. Não é mesmo?

Ele dera um passo à frente, passando a encarar o caçador.

- Eu já o pus em prática, caso ainda não saiba. - respondeu secamente. - Vejas bem. Vocês aqui... diante de mim e minha grandeza. Seres pequenos, mas estupendamente dotados de coragem inigualável. Os primeiros que realmente conseguiram uma proximidade comigo. - fez uma pausa, olhando para cada um deles. - Isso é um privilégio do qual eu não posso desperdiçar um único segundo sequer. Apenas seis desta espécie curvando-se à mim já é um excelente início.

Erguera a mão esquerda com uma nítida elegância. Depois, sorriu.

- Ajoelhem-se. - baixara rapidamente a mão em um gesto ameaçador.

Todos os seis sentiram como se uma espécie de peso invisível de milhares de toneladas houvesse caído sobre eles com o objetivo de esmaga-los até os ossos quebrarem-se.

Rosie cerrara os dentes enquanto seus joelhos chocavam-se contra o chão, pondo as mãos no chão sem conseguir mover um músculo sequer. Queria gritar, mas sua voz parecia não existir e as cordas vocais atrofiadas. "É como se um gigante tentasse me esmagar! Mas que poder imenso!".

Charlie assistira à cena, não escondendo seu horror repentino. Seus pelos se eriçaram.

"Me sinto impotente! Um desertor! Foi pra isso que me convenceram a ficar aqui? Para vê-los sucumbir até a morte!? Não, Charlie, não vá. Você prometeu não interferir! Não pode fazer nada!", pensou ele, com os olhos fechados e o rosto virado para o lado, enraivecido pela terrível sensação que aquilo lhe causava.

Hector tentara mover a cabeça para cima, lutando o máximo que podia desafiar aquela força esmagadora e violenta. "Esse maldito... Vai nos usar como brinquedos!".

Após vários minutos impondo sofreguidão aos seus "súditos", Abamanu amenizara seu incrível poder ao baixar os dois dedos indicadores.

Todos deram arquejos intensos instantaneamente, permanecendo ajoelhados. Rosie erguera a coluna, fuzilando o algoz com os olhos.

- Sabemos exatamente o que quer. - disparou ela. - Garanto que, se sairmos vivos dessa, nós vamos lutar até o fim e acabar com você e seu reinado!

Sem se abater com a petulância da jovem, Abamanu apenas a fitou estranhamente generoso.

- Nunca faça promessas que não pode cumprir, criança. - disse ele, aproximando-se dela. - Estou aqui unicamente para salvar meu nobre reinado, cuja decadência foi causada por aquele que quer atormenta-la.

- Devo admitir. - disse Hector, interferindo. - Você arquitetou um plano engenhoso.

- Hum. - ele dera um risadinha. - Sei que pretende rivalizar comigo... mas minhas prioridades não estão voltadas à você. Considere-se refém e curvado à mim. - voltou-se para Rosie, empertigado. - Meu negócio é com você.

- Fique longe dela. - disse Adam, o tom protetor.

- Adam. - sussurrou Êmina à sua esquerda. - Vai mesmo encarar? Você viu o que ele fez conosco.

- Sim, eu sei, mas não consigo ficar calado enquanto esse monstro nos ameaça. - sussurrou de volta. - Fico pensando o que se passa na cabeça de um ser como esse.

- Deve estar pensando em qual de nós vai matar primeiro. - disse ela, olhando angustiada para o chão, não ousando em observa-lo.

Abamanu inflara o peito ao olhar para Adam com certo aborrecimento.

- Certamente não preciso lembra-lo de quem profere as ordens aqui. - afirmou ele. - Não pense com quem está lidando, saiba com quem está lidando.

Adam retesara os músculos, encolhendo-se. Sua expressão se contorceu em agonia, como se aguardasse um movimento brusco por parte do deus. No entanto, nada ocorrera. "Ainda assim... ele é assustadoramente imprevisível. Não sei porque, mas posso sentir!".

O deus retornara sua atenção à sua peça preferida do jogo.

- Anda logo, diz o que você quer de mim? - exigiu Rosie, ríspida. - Quem quer me atormentar?

- Ele. - disse Abamanu, em tom de ojeriza.

- Ele quem? - insistiu ela.

- Aquele que a amaldiçoou com sua imunda essência. - respondeu ele, rememorando uma figura com a qual jamais pensaria em cruzar.

- Me... amaldiçoou?! - intrigou-se Rosie, franzindo o cenho.

Hector a olhara por vários segundos, sem resistir à memória do fato de Rosie sofrer de abruptos ataques de fúria, os quais presenciara quando estiveram em plena missão e no Templo dos Red Wolfs. "Se for o que estou pensando... Não pode ser...". O suor descia pela sua testa, pingando nos fios de seus cabelos lisos e na barba.

- Exatamente, minha cara. - disse Abamanu, com um falso instinto condescendente. - Eu vi... aquele pequeno ser humano que fora trazido à vida, trazido a este mundo miserável... ser banhado pela luz da estrela que ofusca meu poder.

- Ficaria mais convencida se pudesse ser mais claro. - murmurou Rosie, mantendo o tom de voz.

Abamanu dera um suspiro pesado enquanto fechava os olhos. Sua expressão era de visível desconforto, pois detestava ter que aderir a relatos de simples compreensão, e acreditava que isto feria sua honra. "Parece que o desespero reduz a inteligência desses humanos".

- Quando você era apenas uma recém-nascida... - prosseguiu ele. - ... você foi, digamos, "abençoada" com um poder divino, uma energia bruta capaz de se adaptar ao corpo do seu guardião. Infelizmente, você é a guardiã desse imenso poder que agora corre nas ramificações sanguíneas de seu corpo.

"Então era mesmo verdade! Isto explica quase tudo!", pensou a jovem, estupefata.

- Ainda não respondeu minha pergunta: Quem, afinal de contas, quer me atormentar e porque? - sua aflição estava crescendo.

- Aquele com qual tenho travado eras de guerra. - afirmou ele, propositalmente fazendo mistério para deixa-la cada vez mais irritada. - Ele fez algo terrível a você e eu sou o responsável por liberta-la.

- Ele está falando de Yuga, Rosie. - disparou Hector, sem aviso. - O deus solar dos ciclos, como Charlie havia nos dito. Percebe agora? Tudo está se encaixando.

Abamanu aproximara-se dele denotando certa irritação. Hector tornou a fita-lo com rebeldia.

- Escute... caçador. - falou, com certo nojo. - Eu não tolero intervenientes. Comportamentos dessa natureza são repulsivos e normalmente passíveis de punição.

- Nem preciso dizer como irá fazer. - provocou Hector.

- Hum. - riu ele, com certo deboche. - Vai perceber como vou fazer... mas só depois que terminar. - ergueu uma mão, o indicador, o polegar e o do meio unidos como que para estalar os dedos.

Rosie notara rapidamente o quão ameaçador o gesto parecia ser. Empertigou-se na hora, quase que se levantando.

- Ei! - gritou, em desespero. - Disse que seu negócio é comigo! Portanto, poupe-os!

- Eu demonstrei que você era minha preferida... - disse Abamanu, tornando a voltar se aproximar de Rosie. - ... mas não mencionei que deveria me dar ordens. - apontou para o resto do grupo que se mantinha ajoelhado e refém. - Se eles cooperam, obviamente saem vivos. E terminaremos isso mais rápido do que o esperado.

- Ótimo. - respondeu Rosie, relanceando os outros por cima do ombro. Percebera Alexia tremendo lá atrás. - Qual é a desse Yuga?

- Ele quer manipula-la. - disse ele, direto.

- Para qual propósito? - perguntou Rosie, ansiosa.

- Você não passa de um prêmio para ele, um artifício para que ele saia vitorioso. Confesso não saber quais são seus objetivos e planos para você... mas saiba que são todos tão malévolos quanto vocês acham que os meus são.

- Mas porque eu?

- Por que ele observou todo o desenrolar de meu sagaz plano. - disse ele, inclinando-se para ela. - E viu o seu potencial. Agora estou aqui para salva-la.

A frase fizera Rosie sentir um nó na garganta seguido de embrulho na boca do estômago.

- Espera aí... Deixa eu ver se entendi direito: Então quer dizer que estou sendo disputada por dois deuses furiosos que mantêm um rixa de séculos e séculos e um deles quer me usar como troféu?! - seu semblante alterara-se para raiva pura. - Eu sou apenas um troféu nessa merda!? - vociferou ela.

- Sim... sempre foi! - disse uma voz grave que ecoara pelo espaço.

Todos viraram seus rostos para enxergar a figura que ali chegara, inclusive Abamanu. O homem caminhava trôpego e lentamente por um monte de escombros, sem se apoiar em nada. O reluzir de um cano de revólver fez o grupo de heróis prender a respiração. O indivíduo usava uma túnica de um vermelho pouco distinguível devido às nuvens deixarem o local mais sombrio. Estava em um ponto opaco e se aproximava com dificuldade. Não tardou para seus olhos ferventes em ódio tornarem-se visíveis, enquanto o mesmo engatilhava a arma e a apontara para alguém em específico... Hector.

O caçador logo reconhecera, ficando embasbacado com o estado deplorável do homem.

Sussurrou um nome.

- Michael!?

Abamanu observou o Grã-Mestre com desdém absoluto. Pôs as mãos para trás, emanando uma paciência que transparecia uma aura assustadora, ficando a encarar aquele decadente ser humano.

- Ha-ha-ha-ha. - rira ele. - Finalmente! Eu sabia que este momento chegaria e que somente eu, apenas eu e ninguém mais, o testemunharia. Me sinto honrado diante da tua presença, meu senhor!

- É comigo quem está falando, por acaso? - perguntou Abamanu, visivelmente desinteressado.

- E a quem mais eu estaria me referindo, afinal? - os olhos de Michael brilhavam de empolgação. - Estar aqui diante de ti... e além disso com a oportunidade única de matar este traidor que está ao lado desta garota amaldiçoada.

Hector sentiu seu sangue gelar. Rosie virara-se para ele e observou o mesmo empalidecer. "Consigo ver um medo profundo nos olhos dele. É como se soubesse o que acontecerá em seguida...", pensou ela, logo voltando-se para Michael. "Por que me sinto arrependida? Eu deveria ter matado Michael naquele exato momento apenas para proteger o segredo de Hector?!", se perguntou ela, mergulhando em uma excruciante reflexão acerca de sua posição diante do dilema sobre o perdoar o caçador.

Adam se ergueu um pouco mais, olhando para Hector com uma expressão estranha.

- Hector, do que ele está falando? - perguntou ele, o tom forte. - Que história é essa de traidor?

- Você conhece esse cara? - indagou Lester, envolvendo-se.

Uma leve tremedeira de pura tensão acometeu o caçador-detetive como uma rajada de frio. Contínuos calafrios percorriam sua pele ao passo em que sua observância à Michael tornava-se mais ardente. "Devia te-lo matado enquanto tive a chance!", admitiu.

- Responde a pergunta, Hector. - disse Rosie, cabisbaixa.

Vários segundos de silêncio se passaram, o ressoar das correntes de vento levando embora as nuvens de tempestade aos poucos. O caçador se encolhera, cerrando os punhos.

Michael, por outro lado, insistira cada vez mais mantendo a arma em riste.

- Admita Hector! É deveras humilhante para você estar na presença de um ser magnífico como este enquanto é forçado a revelar a grande verdade! - fez uma pausa, relanceando os outros. - Eles precisam saber, Hector! Eu planejei este momento durante aquele interrogatório medíocre a qual fui obrigado a me submeter! Não foi mesmo, sua filha do herege?! - apontara a arma para Rosie desta vez.

A jovem franzira o cenho, incrédula.

- Vai atirar em mim também?

- Na realidade, eu deveria matar a todos vocês! - retrucou ele, o tom ríspido. - No entanto, eu deixo o cumprimento desta tarefa para meu senhor... Abamanu. - olhou para o deus com reverência. Assentiu freneticamente, balançando o revólver. - Sim, meu grande deus! Os dias em que passei louvando a sua imagem tornariam-se sem sentido se eu não assistisse um ato de punição seu. Eu sou o remanescente da fraternidade que o venerou, portanto eu detenho o mérito desse privilégio!

O Cavaleiro da Noite Eterna permaneceu calado, mas o olhar estava austero e frio.

Michael prosseguira, voltando a ameaçar Hector.

- Eu não tenho a noite toda, Hector! Revele! - exigiu, autoritário.

- Você está louco, Michael. Já chega! - redarguiu o caçador, aborrecido.

Êmina sentiu-se motivada a se manifestar, extremamente desconfiada.

- Hector... Se for o que estou pensando... - seu tom era de latente preocupação.

- Não é! - vociferou ele, olhando para ela por cima do ombro. - Posso garantir a vocês que Michael está insano! Tudo o que ele pretende acusar não passam de invencionices.

- Então que a prova apareça! - bradou Adam, decidido a ouvir a verdade. - E quero ouvir isso da boca dele!

- O que é mais estranho é você conhecer esse cara sendo ele um maldito Red Wolf, e ainda por cima Grão-Mestre! - protestou Lester, parecendo não se aguentar de ansiedade.

Alexia tornou a fitar o caçador-detetive por alguns instantes com ar preocupado. Sua voz interior estava gritando algo, um verdadeiro turbilhão de múltiplas palavras persistindo para se materializar e se libertar daquela prisão que a portadora delas havia criado. Agarrou com força o vestido preto-esverdeado na parte das coxas, e seus joelhos estavam doendo. "Isso é estranho. Não havia previsto esse momento. Não... Pra falar a verdade, Hector nunca esteve totalmente nítido nas minhas visões. Não sei o que é mais estranho: Isto ou Abamanu simplesmente me ignorar, sendo que eu sou sua profetisa aqui na Terra! Ele não liga mesmo pra isso? Ah, esqueça, Alexia! Não devo me esquecer do fato de que estou na mira de um deus imprevisível... que agora sente-se no direito de decidir nossos destinos!".

- Vocês desonrou o que construímos... o que nosso pais, avôs, bisavôs e tataravôs construíram durante tantos anos! - esbravejou Michael, sentindo um onda de rancor apertar-lhe o coração. - Você poderia ser o melhor de nós, Hector. Desde o início da nossa amizade eu enxergava um potencial em você muito além de suas já conhecidas habilidades. Mas não! Você preferiu a eles... Pode ter corrido contra a maré mas farei com que morra afogado com o ódio que seus amigos irão sentir de você... por ter tornado seu legado um segredo. Isso é imperdoável. - fez uma pausa, virando-se para Abamanu, mas permanecendo a apontar a arma para o caçador. - Só me sentirei completamente motivado a fazer o que devo... recebendo a tua permissão. - estendera a mão esquerda em um misto de adoração e súplica.

Mais um instante de silêncio no qual todos estavam vitimados por um transe de choque. Lágrimas brotaram dos olhos castanhos de Michael, seu olhar estava triste... denotando uma carência dolorosa.

Abamanu expirou de modo bruto e pesado, sua expressão, outrora calma e paciente, alterando-se para uma de cunho agressivo.

- Que criatura patética você é. - disparou ele, friamente.

Michael, sentindo como se uma lança tivesse transpassado seu corpo, foi baixando a mão lentamente, desnorteando-se.

- Como disse? - gaguejou ele, a expressão contorcendo-se de horror.

Uma longa trovoada fora dada seguida de um relâmpago, reverberando.

- Vocês são criaturas que só irão se entender quando sentirem a mesma dor. - afirmou ele, relanceando os olhos para o grupo e voltando-os novamente para Michael. - Minha primeira vinda a este mundo foi o início da montagem do meu tabuleiro. Você... hum, mero humano, apenas foi uma peça no meio de várias outras.

A frase pegara a todos desprevenidos. Alexia dera um arquejo de surpresa bastante audível.

- O... o que quer dizer, meu senhor? - indagou Michael, recuando alguns passos, sentindo uma estranha onda de medo atravessar seu corpo.

- Eu possuo um inimigo. O qual eu teria um enorme prazer de trucidar até não restar mais nenhum átomo. Assim como vocês, humanos, eu também tinha crenças. Mas há uma diferença óbvia que eu faço questão de salientar. - fez uma pausa, fechando os olhos e logo abrindo-os de novo. - Estas crenças que fiz perdurar... elas só me tornaram mais forte e confiante.

Michael se empertigou, compreendendo parte do argumento.

- Mas nós também somos confiantes... e temos ciência de nossas crenças.

- Vocês fazem parecer ignorância ser confiança. Ao contrário do que pensa, ela, a ignorância, não é garantia de nenhum fortalecimento. Ela é a sua fraqueza.

O Grão-Mestre ficara boquiaberto com o poder de tais palavras. Apertou o gatilho da arma, sem se preocupar em quem estava mirando... mas apenas ouviu-se um click... depois outro, em seguida vários. Seu desespero aumentou consideravelmente. "Droga!"

Largou a arma no chão, expirando um ar de derrota. Hector e Rosie pareciam surpresos com aquilo.

- Embora desconsiderados a partir de agora, você e sua fraternidade tiveram um papel essencial para a construção de meu plano. - Abamanu se aproximava. - Ao contrário de você, estou feliz por Rosie Campbell ter vindo ao mundo. Eu sempre estive feliz por isso.

- Não pode ser... Não pode estar falando sério... - Michael tremia de pavor.

- Você não terá sua vingança. Tampouco eu irei permitir que a faça. - estacou na metade do caminho. - Considere sua missão finalizada. - erguera a mão esquerda, os três primeiros dedos unidos...

O som do estalar de dedos ecoou pelo espaço... todas as atenções voltaram-se para Michael. Após o gesto, em uma fração de segundos, o corpo do Grão-Mestre estourara feito uma bomba, uma verdadeira explosão sanguinolenta. Todos ficaram mudos de temor, estupefatos.

O ponto de onde o homem estava foi coberto por seus restos estraçalhados a nível brutal, junto com uma densa poça de sangue.

Abamanu, por fim, voltara-se novamente para o grupo, esbanjando um certo alívio.

- Honestamente, eu odeio interrupções. Por isso sei como lidar com elas. - fizera uma pausa, olhando para um daqueles rostos horrorizados. - Viram o seu semelhante. Que ele sirva de exemplo. Crenças cegas levam a ruína.

- Exatamente o que ocorreu à você? - provocou Rosie, semi-cerrando os raivosos olhos.

- Minha visão de futuro estava plenamente esclarecida! - respondeu ele, a voz embargada de rispidez. - Sendo assim, jamais irei me enganar da mesma forma que vocês!

Lester já se encontrava totalmente a mercê do pânico completo. "Esse monstro consegue matar apenas estalando os dedos! Será que só eu que sinto que vamos virar carne moída?", pensou rangendo os dentes.

- Não vou agradecer por ter matado Michael. - disse Hector, um tanto abalado. - Ainda não passa de um monstro tentando arranjar uma forma de submeter a humanidade a um controle máximo, uma era de escravidão total!

- Obrigado por resumir o primeiro de meu plano vindouro. - respondeu ele, o indicador erguido. - Eu vou mostrar a vocês... Vou convence-los de como sobrecarregam este planeta com suas multiplicações incessantes, suas invenções constantes e do que realmente governa-o: A natureza.

Adam pouco parecia se importar com o discurso do deus, sem aguentar um segundo a mais de apreensão, apenas olhando Hector... significando que a ficha já havia caído. "Você nos enganou descaradamente. Por que, Hector? Por que?", pensou ele, as palavras engasgadas na garganta.

Êmina só tinha atenção dedicada ao caçador de braços fortes. Segurou em sua mão e agarrou-a... como se quisesse fazer um último contato. Adam virara o rosto para ela e, pela segunda vez naquela noite, a vira chorar.

"Nós não vamos morrer, Êmina." disse ele em pensamentos, compreendendo o gesto. "Não chegamos ao fim.".

E ambos choraram juntos. Entreolhando-se tristemente. Alexia assistia à cena, sem conter as lágrimas. "Se eu tivesse avisado, eles se sentiriam mais preparados?", se questionou. Lester baixara a cabeça, querendo tapar os ouvidos. "Vou enlouquecer se esse monstro continuar falando.".

Abamanu relatava, sem se dar ao trabalho de fazer uma pausa, sobre todos os eventos que lhe ocorreram, desde o acordo de divisão de lucros com Yuga... até o fatídico advento da guerra cujas sementes foram plantadas a partir de um roubo perpetrado por um dos seus soldados, infiltrados no reino da entidade solar. Mas um detalhe adicional - e extremamente relevante - fora levantado. O Cavaleiro da Noite Eterna havia recorrido, dias antes do início do confronto arrebatador, a um certo indivíduo específico com habilidades que o qualificavam como alguém ideal para tranquilizar o tenso clima proporcionado pela crise no reinado. Abamanu temia o futuro como qualquer criatura pensante em desespero. O novo sócio, entretanto, parecia um tanto incerto quanto a sua utilidade, mas mesmo assim havia cedido. O mais novo aliado fora declarado como sendo seu escriba, aquele que transmitiria toda a confiança que o deus necessitava para colocar seu reino nos eixos novamente. A ordem foi dada imediatamente. Um manuscrito de mais de 1.000 parágrafos foi feito por ele, no qual constava todos os eventos que se sucederiam após a guerra vindoura. As habilidades proféticas do escriba eram, de fato, surpreendentes. Todavia, o mesmo ponderou que, para que o plano tivesse êxito, o seu empregador deveria saber apenas o necessário. Em outras palavras, Abamanu deveria ter conhecimento apenas dos eventos futuros que culminariam em seu retorno. Ele se perguntou o porque do tal retorno. Sabendo disso, o escriba lhe indicou o universo ideal onde poderia dar início, cujos habitantes eram facilmente influenciáveis e leigos quanto aos mistérios de seu mundo e da vastidão a que ele pertencia. Ele aceitara a ideia no mesmo instante, sem hesitar. Os parágrafos foram incorporados no compilado de textos, em parte escritos por Abamanu logo após o mesmo ter idealizado torna-lo um livro - onde o próprio também discorrera sobre sua história, de seu nascimento até o dia em que seu reinado entrara em colapso. Além disso, idealizou uma área onde pudesse armazenar o tesouro que havia roubado juntamente ao manuscrito.

Ao visualizar o local - sabendo que seu embate físico com Yuga seria inevitável -, ele pensou como atrairia o calor da batalha para aquele lugar específico. O escriba havia sido bastante vago com relação à sucessão de eventos que sua chegada àquele mundo desencadearia, mas o cliente se manteve satisfeito e jurou a si mesmo que observaria furtivamente o destino prometido, já sabendo da garantia de que seu reinado se reergueria.

Após o confronto com Yuga na Terra, Abamanu retirara o manuscrito transformando em uma espécie de encadernado.. ou como aqueles pequenos mortais chamavam: livro. Ao dar-se a trégua, Abamanu abrira um buraco naquela terra e enfiara todas as riquezas furtadas do deus solar, o exemplar contendo sua história e a profecia, além de uma caixa contendo um perigoso material que lhe oferecia péssimas lembranças, criando-se, assim, sua cripta. Não se aborreceu pelo deus solar ter ido embora após ter dado a última palavra.

A paciência foi a arma imprescindível para acompanhar o lento progresso. Cada evento sucedido era motivo para reaver as esperanças. E de longe ele observou as reações... A retirada do livro por uma equipe de um museu... A criação de uma fraternidade que atravessaria gerações de cinco famílias e que o louvaria... A criação de um grupo de estudiosos da conspiração... A infiltração de alguns membros da tal irmandade neste grupo a fim de adquirir informações a respeito do deus que adoravam... A criação do exemplar traduzido pelos integrantes da fraternidade... As cópias feitas do original e da adaptação direcionadas ao museu... Sabendo-se dos efeitos da presença de um deus naquele mundo aparentemente inteligente, criaturas de outros mundos vieram para ele, além das que já pertenciam à ele e que se fortaleceram dando origem à várias outras... Culminando, séculos depois, na criação de um grupo de elite independente conhecido como Legião dos Caçadores, dotados de coragem e força para lidar com as forças sobrenaturais que desafiavam a lógica humana... O nascimento de um dos membros mais vigorosos daquele grupo, Hector Crannon, filho do Red Wolf John Crannon que havia se comprometido ao ofício contra a vontade do pai... A inclusão de Richard Cambpell na irmandade sombria... O nascimento de Rosie Campbell, sendo o primeiro caso de heresia, já que a sociedade secreta ponderava uma severa regra: os membros só podem possuir filhos homens, caso o contrário será declarado herege e ser caçado como sacrifício ao deus e julgado como indigno de fazer parte da fraternidade... A morte de Richard Campbell em decorrência de um ataque cardíaco... A parceria entre Rosie Campbell e Hector Crannon, a mortal fadada ao destino perigoso e a ser o sacrifício aliada ao renegado jovem Red Wolf que seguira na direção oposta...

Toda a cadeia de acontecimentos funcionou perfeitamente, conspirando a favor de Abamanu.

- Devo tudo a ele. - disse o deus, agradecendo ao escriba. - No entanto, não o recompensarei tão cedo. Não antes de iniciar a expansão de meu reinado.

Hector olhara discretamente seu relógio de pulso para conferir as horas. Arregalou os olhos no mesmo momento, logo em seguida direcionando-os para o horizonte. O céu tempestuoso se desfizera, abrindo passagem para o primeiro clarear, as estrelas sumindo vagarosamente com os iniciais raios da alvorada pontuando ao longe. "A profecia... ela dizia que Abamanu retornaria em uma alvorada.", pensou ele, sem saber como reagir. "E, agora que ele revelou tudo , sem esconder absolutamente nada... pode-se dizer... que ela está definitivamente concretizada.". Virou o rosto para Rosie com um olhar desanimado. "Nós fomos apenas peças de um jogo maléfico. Me sinto fraco... Culpado, desorientado, sem nenhuma razão para continuar vivendo!".

- Como espera conseguir isso? - perguntou Rosie, a voz baixa, denotando certa submissão. - De que forma?

Abamanu suspirara, seus olhos passando por cada um de seus reféns... como se estivesse contando. Franziu o cenho, intrigado com um detalhe.

- A pessoa que deve, obrigatoriamente, me auxiliar para que eu amplie minhas frentes não está aqui.

Todos se sobressaltaram subitamente... partilhando de um único e desesperado pensamento. Rosie esbugalhou os olhos, a aflição novamente corroendo as esperanças.

Alexia sentia seu coração descompassar a cada segundo. "Oh, não!", pensou ela, pondo a mão no peito. "Charlie!".

Abamanu se aproximou um pouco, o ar tornando-se mais autoritário e agressivo.

- Antes de iniciar minha conversa com vocês, eu fingi estar "dormindo". - revelou ele, sorrindo. - Ouvi tudo o que disseram... inclusive uma voz que não passei a ouvir desde que abri os olhos. - fez uma pausa, pousando seu olhar penetrante para a pilha de blocos a alguns metros atrás do grupo. - Onde ele está escondido?

- Nos recusamos! - disparou Adam. - Faça o que quiser conosco, mas deixe-o em paz, onde quer que o encontre!

Êmina olhou para o caçador, espantada. Lester ficou boquiaberto com tamanha coragem. "Ele ainda não sabe com quem a gente tá lidando! Com certeza não sabe!".

O estrategista sussurrara para ele.

- Adam, você ficou maluco?! Quer que ele esmague a gente igual como fez com aquele cara?

- Péssima ideia. - sussurrou Êmina, baixando a cabeça e fechando os olhos desesperançosa.

O exército de soldados marchava em direção ao ponto onde estava seu superior, as lanças cintilando com os primeiros raios solares e suas silhuetas caminhando como sombras fantasmagóricas em meio a claridade nascente, tais como espectros lupinos.

Ao apurar sua audição, Abamanu relanceou com os olhos para a marcha que se avizinhava. Deu um sorriso disfarçado e ergueu a mão esquerda com certa maestria.

- Não gostaria que terminasse assim. - disse ele, concentrando um poderosa energia para aquela mão. - No entanto, vocês não me deixam outra escolha palpável.

O grupo se viu cercado de pequenos pedaços de pedra flutuando no ar. Rosie olhou para ambos os lados, sem conseguir aquietar sua mente.

- O que significa isso? - perguntou, ríspida. - O que pretende fazer conosco?

Indiferente à pergunta, Abamanu mostrara a palma da mão, erguendo-a lentamente... ao passo em que os blocos de mármore, dos médios aos mais grandes, emergiam do chão através de uma força telecinética implacável. O pânico foi compartilhado e os entreolhares tornaram-se cada vez mais angustiados.

Os heróis sentiram seus corpos serem levantados vagarosamente, levitando no ar ainda frio.

- Não! - gritou Hector, sem nenhum controle sobre o próprio corpo.

Juntamente com os pilares e blocos de mármore cinza, aqueles corpos humanos levantavam-se como se a força da gravidade fosse se esvaindo aos poucos. Queriam gritar, mas até os movimentos de suas cordas vocais parecia neutralizado. Alexia, por exemplo, olhava para o chão, sentindo uma sensação nauseante, sua expressão de completo terror. "É como se meu corpo estivesse sendo atraído por um imã ou sei lá o quê! Não suporto... não suporto essa altura!"

As respirações estavam se enfraquecendo. Não por conta da altitude, mas sim do imenso poder de telecinesia aplicado por Abamanu... uma maneira esperta de desfazer o esconderijo de Charlie.

Quando voltou seus olhos para a frente, pôde ver uma figura humana sentada no chão a alguns metros de distância, sua silhueta meio ofuscada pela poeira que subia junto com os minúsculos pedaços de pedra. Sorrira, satisfeito.

Em velocidade arrasadora, chegara perto do mago do tempo em uma fração de segundos. O jovem físico o fitou com um temor nunca antes sentido por ele. Abamanu mantivera o controle sobre os outros com sua mente, não necessitando mais de membros superiores. Saboreou, em silêncio, cada detalhe da expressão horrorizada de Charlie. O monstro estava diante do mago do tempo como uma muralha imbatível pronta para esmagalhar cada pedaço de sua carne.

- Você... - gaguejava Charlie, suando frio. - ... me poupou. Por quê?

- O único mortal deste mundo que detém um saber divino tem muito a oferecer. - afirmou ele, logo sorrindo para o rapaz. - Talvez Chronos não tenha cometido um erro.

Intrigado, Charlie franziu as sobrancelhas, enquanto olhava de vislumbre para seus amigos sofrendo ao flutuarem no ar a uma certa altura.

Abamanu, sem perder mais nenhum segundo, pousara dois dedos na testa de Charlie... fazendo-o perder a consciência e desmaiar até cair de lado no chão.

O pôs sobre seu ombro direito para carrega-lo. Dois soldados se aproximavam do piso de ladrilhos, ficando próximos à tampa da abertura que leva à cripta.

Abamanu caminhara a passos largos até o ponto onde estava, o corpo inerte de Charlie balançando levemente devido à má segurança com a qual o deus o colocava em seu ombro.

Rosie enxergara-o... e para ela o mago do tempo era somente um pequeno ponto sendo levado por um gigante vistos daquela altura. Arregalara os olhos. "Não! Ele está levando Charlie!".

Hector e os outros tiveram a mesma reação de desespero.

O Cavaleiro da Noite Eterna chegara até seus dois subordinados, ambos com as lanças posicionadas na vertical aguardando uma ordem mas ao mesmo tempo para informarem algo.

- Senhor, os locais já estão preparados, vários de nós já se espalharam. Todo o material que o senhor solicitou foi reunido nos pontos especificados. Os outros já estão cuidando de todos os detalhes da primeira fase. - disse um soldado.

Ele assentiu, firme.

- Muito bem. Preciso ir até o ponto central para organizar os próximos passos.

- Por que o mortal? - perguntou o outro.

- Falarei a respeito em breve. Mantenham-me informado.

Virou-se de costas para os subordinados, segurando Charlie com firmeza sobre o ombro. Fechou os olhos imergindo em profunda concentração. Contorceu a expressão calma em leve desconforto... enquanto um objeto circular e prateado saía de seu peitoral. Os detalhes em dourado reluziram sob a luz solar que já penetrava naquele solo. O artefato caíra e Abamanu o pegara com a outra mão.

- Meu valioso amuleto. - disse, ostentando-o por alguns instantes.

Erguera o talismã para o alto e o mesmo irradiara uma luz branca imediatamente.

Um grosso raio de luz rasgou o céu, irrompendo nas nuvens a toda velocidade, logo penetrando no monstro que o evocara através daquele poderoso e inestimável objeto.

Por alguns segundos, o raio fez vibrar o chão ao passo em que ambos eram levados pela luminosidade. Num único milésimo, desapareceram, o raio subindo de volta e afinando-se até alcançar o céu da alvorada novamente.

Os soldados observaram com atenção a formação que se criara no chão. Eles foram os primeiros a testemunhar aquela façanha. Abamanu desejara deixar sua marca por onde quer que pisasse... e conseguiu com um feito espetacular.

O símbolo marcado no chão pertencia ao verso do talismã. Um enorme círculo com algumas labaredas e uma linha curva que denotava uma meia-lua. Uma lua minguante.


Instantaneamente, todos os blocos e pilares de mármore cinza, juntamente com o grupo de heróis caíram violentamente de encontro ao chão. O eco do baque fora ensurdecedor e uma enorme, escura e densa cortina de poeira fina levantou-se como fumaça de um vulcão em um episódio eruptivo.

O silêncio foi ocupando o espaço aos poucos. A nuvem de poeira ia se dissipando.

Seis corpos estavam soterrados em milhares de escombros.

Por uma brecha entre dois blocos quebrados sob vários outros, uma branca mão inerte e ensanguentada se postava para fora.

E um capuz vermelho com uma capa de mesma cor jazia no chão, todo coberto de poeira.


                                                                                CONTINUA...


                                                                      FIM DA 2ª TEMPORADA

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