Contos do Corvo #18



No cemitério, o corvo tornava a meditar com os olhos fechados sobre a lápide que escolhera para contemplar a noite. Contudo, sentira a rápida presença de sua ouvinte assídua avizinhando-se.

- Err... Eu tô atrapalhando? - perguntou ela, pondo-se de frente ao corvo, seu vestido preto ondulando com a brisa suave e gélida.

Sem resposta, a menina insistira em chamar a atenção da ave.

- Anda logo, para com isso. - disse ela, ficando impaciente. - Justo hoje que estou afim de ouvir uma história interessante e você fica demorando de propósito. Para de enrolar! - reclamou, elevando o tom de voz.

O corvo, finalmente, resolvera abrir os olhos.

- Obrigado por interromper minha auto-terapia. - disse ele. - Você nem devia estar aqui.

- Como eu ia saber que tinha decidido virar seu próprio psicólogo? - perguntou a menina.

- Não importa. - desconversou o corvo.

- O que foi? Desde quando minha presença passou a te incomodar? - questionou a menina, irritada. - Achei que fosse só o senhor coveiro, mas...

- Não, apenas por hoje você foi um estorvo. - confessou o corvo, honesto. - Mas o velho até que faz falta, por mais que eu odeie admitir. Sabe onde ele está?

- Fui até a casa dos netos dele... - relatou a menina, demonstrando tristeza na voz. - ... pelo que vi, acho que ele não está bem. Acho que ouvi dizerem parada cardíaca. O que você acha disso?

- O que eu acho? - perguntou o corvo, parecendo despreocupado. - Que diferença faz ele morrer ou não? De qualquer forma, ele vai estar aqui conosco. De qualquer forma, isso aqui vai se tornar o novo lar dele. A única diferença é que não importa para onde possa ir, minha voz vai entrar na mente dele e, mesmo que ele não queira, vou contar minhas histórias. Espíritos comunicam-se telepaticamente.

- Hum, verdade... - disse a menina, estreitando os olhos ao estudar o corvo. - Lembrei que não estou falando com um corvo que aprendeu a falar, mas sim com um espírito preso nele. Não é?

- Correto, pequena gafanhota.

- E o que tem pra hoje? - perguntou ela, ansiosa.

- Oh, hoje é seu dia de sorte, é algo curto mas bem sinistro. Hoje cedo eu tinha lembrado de um caso ocorrido no meio da minha temporada naquele país. O cheiro podre da morte rodeava aquele lugar amaldiçoado...

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                                                                              A COLHEITA


Aconteceu no Texas, exatamente em Houston. Alfred foi aquele que mais me deu dificuldades para espionar. Ele fechava todas as janelas e portas, temendo que fosse pego no flagra ostentando seu montante de dinheiro, dinheiro este que se recusava a oferecer. Ele era proprietário de uma área de plantio de milho, ganhando sempre um salário considerado gordo pelas vendas à distribuidora para que os alimentos chegassem à comercialização. Esta estabilidade durara cerca de 20 anos. Até que cinco homens, vindos de uma companhia empresarial voltada ao mercado, decidiram destruí-la com uma tentadora proposta: Vender as terras por uma quantia de 5 milhões. Obviamente, aquilo era mais do que ele poderia sonhar em ganhar um dia. No entanto, a resposta foi contrária às expectativas dos engravatados.

Alfred recusou a oferta, deixando-se levar por um saudosismo prévio. Aquele milharal definitivamente era seu ganha-pão, sabe-se lá o que aqueles homens planejavam fazer, quais seriam as mudanças pensadas e os gastos com o cultivo e plantação, além das possíveis novas demandas que incluiriam o uso de tecnologias agrícolas. Fiquei a observar quando Alfred espionava os homens de preto pela janela, enquanto eles avaliavam as condições do vasto milharal - sem nem reparar no espantalho horrendo que estava fixado em duas estacas formando cruz para espantar os pássaros. Curiosamente, eles foram proibidos de entrarem no quarto de Alfred, pois o mesmo dizia que era questão de privacidade e que deveriam respeitar, sem questionar o que ele fazia lá dentro - além de dormir, claro.

Inevitavelmente todos se perguntaram o que havia de tão especial e secreto naquele quarto para ser protegido por Alfred que o mesmo não queria que ninguém visse. Minhas pernas ficaram dormentes naquele galho, quase dormi com aquela longa conversa enfadonha.

Quis saber a porra do mistério, mas Alfred prolongou o lenga-lenga para até o fim da tarde. Enfim veio a minha tão amada noite. Eu diria que não tão amada por um daqueles homens - na verdade foi péssima. Sendo mais exato, houve, na verdade, uma discussão feia entre Alfred e os empresários. Tudo terminou os gritos e xingamentos. Nunca ouvi uma quantidade tão grande de palavrões em tão pouco tempo.

Alfred foi ameaçado de ser processado, por conta do fato da baixa qualidade de sua produção estar atraindo pragas e de estar indiferente ao problema, colocando em risco a sobrevivência de uma terra fértil e que poderia ser muito bem aproveitada por mãos mais competentes. Um deles chegou até ameaça-lo de morte por conta de ameaças também feitas por Alfred. Era um homem orgulhoso e ganancioso, sem dúvidas.

Eu disse que a noite foi péssima para um daqueles homens, certo? Pois bem... foi então que um deles havia sido encontrado morto em sua casa. Noticiado em jornais e canais de TV, o assassinato do homem foi dantesco: Sua pele inteira rasgada feito papel, os pedaços de suas vísceras e entranhas espalhados pelo quarto feito confetes e os golpes que, segundo a perícia, eram característicos de uma foice em tamanho médio.

Alfred suspeitava que eles voltariam acompanhados da polícia com uma ordem judicial para prende-lo por sua recusa quanto á proposta, além das ameças é claro. Ele guardou aquele dinheiro no porão de sua casa num baú, trancando à sete chaves.

Dois dias depois, o corpo sumira do necrotério misteriosamente.

Tendo em vista as ameças de Alfred, os homens de preto tiveram mais um motivo para irem até lá com a polícia: A suspeita de que ele foi o mandante do crime. Eu o vi ficar desesperado, correndo pela casa sem saber o que fazer.

Por mais incrível que parecesse, houve testemunhas do caso. A esposa havia presenciado o assassinato por uma brecha da porta, ela iria entrar para ver o marido. Segundo ela, o autor era bastante alto, usava um saco de estopa na cabeça bem arrendondada, era mal trapilho e suas roupas fediam a fezes de pássaros e usava uma foice média como arma do crime, trucidando o cara com vários golpes. A mulher também descreveu o rosto do criminoso como possuindo olhos brilhantes brancos e raivosos e um sorriso largo.

A polícia colheu um pouco de palha, feno e grama encontrados no quarto e no corredor que levava ao mesmo. Logo depois, se iniciou uma busca por Alfred para prende-lo com as suspeitas reforçadas dos homens, por mais surreal que parecesse a descrição da viúva em sua última parte do relato.

Alfred, curiosamente, não estava mais na casa, tendo provavelmente abandonada-a por medo de ser preso, logo sendo considerado um foragido e único suspeito. Interrogadas, as pessoas de localidades próximas a de Alfred relataram que o conheciam muito pouco, e que dificilmente saía à noite, quanto mais fantasiado de espantalho. Sim, os homens direcionaram suas suspeitas à Alfred não só pelos resultados da discussão, mas também pelo fato do mesmo possuir um espantalho servindo como afugentador de pássaros no milharal - um costume bem retrógrado e arcaico, na opinião dos homens de preto, para evitar problemas na plantação. Vasculharam o porão, encontrando por lá o cadáver de um homem, aumentando ainda mais a ficha de Alfred.

Os policiais checaram o horário da morte do empresário: Por volta dos primeiros minutos da meia-noite. Certamente nenhum dos moradores que só conheciam Alfred de vista estavam acordados para vê-lo sair de casa naquela hora. Nenhuma foice foi encontrada, nem outras armas - reforçando as suspeitas da polícia, presumindo que Alfred possuía as armas mas fugiu com elas para não fortalecer a incriminação. Na verdade, sua fuga já era razão suficiente para enquadra-lo como culpado, aliado ao detalhe dado pela esposa quanto às vestes do espantalho, que eram idênticas à do que estava no milharal.

A teoria mais aceita pelos policiais foi a de que Alfred se vestiu como seu espantalho para assassinar um dos empresários, pois possuía cartões com endereços das residências dos cinco oferecidos à ele antes da discussão começar.

Já temiam que àquela altura Alfred fosse matar mais um dos homens de preto, tendo em mente que as armas supostamente foram levadas com ele para algum esconderijo secreto. Antes de invadirem o quarto de Alfred, os policiais acharam um bilhete pregado na porta que dizia: "Eu agradeceria se me deixassem em paz e não interrompessem a colheita. Ainda preciso voltar aqui, então peço que vão embora da minha propriedade".

Confusos, eles entraram no quarto arrombando a porta. Ficaram meio chocados com o que encontraram por lá.

Instrumentos de tortura como chicotes espinhosos, martelos, saquinhos bem amarrados com conteúdos ocultos colocados numa mesa baixa e uma estátua coberta por um pano branco encharcado de sangue. Não ousaram descobrir o que havia sobre aquele pano devido à gravidade que a situação adquiriu a partir daquele ponto.

Cada saquinho possuía símbolos diferentes. Uma foice com inscrições em uma língua desconhecida também foi encontrada sobre uma mesa de pedra muito parecida com as que são usadas em sacrifícios. Os policiais ligaram a última frase do bilhete à existência daquela mesa sinistra. Alfred tinha a intenção de se sacrificar? Lembraram dos olhos brancos e brilhantes que a esposa da primeira vítima falou. Não havia como Alfred encontrar recursos para criar aquele efeito em tão pouco tempo para executar o crime.

Para o desespero dos policiais, tendo seus ceticismos quebrados, tiveram que encaminhar a investigação para um especialista em misticismo e magia.

Ele concluiu que Alfred não exatamente foi o autor do crime, além de ter sentido energias negativas provindas da estátua coberta, especulando ser algum tipo de ritual de adoração à um ser oculto, cujas sessões de sacrifícios serviam de alimento para a tal entidade. 

Naquela mesma noite, um dos policiais ficou encarregado de vigiar o milharal, mas o espantalho já não estava mais lá. O sobrenaturalista concluiu que Alfred e o espantalho agiam como mentor/criador e assassino respectivamente, através do tipo de magia negra utilizado. Alfred, de fato, tinha a ideia de ser sacrificado, mas não se suicidando. O espantalho realizaria a tarefa após o fim da colheita, logo Alfred não teria que voltar até que tudo estivesse terminado. 

O sobrenaturalista logo sacou a ideia do jogo: O mentor e criador tem o total direito de determinar o número de vítimas a serem usadas na colheita. Nesse caso foram cinco. Após o término das mortes, o mentor seria sacrificado pelo espantalho - que obviamente podia ser entendido como o último sacrificado, o que explica o cadáver encontrado no porão - para depois seu corpo ser usado como espantalho no milharal, dando liberdade ao primeiro espantalho de seguir executando pessoas aleatórias até que seu corpo se desgastasse e a alma aprisionada dentro dele o rejeitasse. A alma do morto era aprisionada dentro do espantalho durante o ritual, deixando a magia negra cuidar do resto. 

Alfred, segundo à conclusão do sobrenaturalista, era obcecado por artes ocultas pelo grande número de itens achados no seu quarto, então precisou usar a magia negra a seu favor caso alguém fosse tentar lhe prejudicar. Por isso, contando com a possibilidade de alguém tomar suas terras com uma proposta que ele não aceitaria - por mais que sua ganância falasse mais alto - ele matou um homem após sequestra-lo e deixou o corpo apodrecendo no porão. Com o ritual de aprisionamento, Alfred fixou a alma de sua vítima em um espantalho, que, graças à magia maligna, obedecia aos seus comandos - o primeiro deles foi fingir ser inanimado para enganar as tais pessoas indesejáveis.

O corpo do primeiro empresário morto encontrado no milharal, preso em estacas de madeira fixadas na terra, bastou para o especialista concluir mais definitivamente: Os corpos das vítimas marcadas pelo mentor seriam usados como futuros espantalhos, como uma espécie de linhagem assassina, em que quando um caísse o outro assumiria o lugar quando a magia fosse transferida - na ordem de colocação dos corpos. 

Com o passar dos dias mais cadáveres foram achados pela polícia no milharal, todos servindo como espantalhos e cercados de pássaros. Acho que alguns do meu bando estavam por lá também.

Quado o espantalho que matou os cinco empresários tivesse sua queda, logo transferiria a alcunha para outro, iniciando, assim, a próxima colheita. As mortes aleatórias causadas por ele duraram seis meses. Talvez este seja o tempo-limite. 

Alfred ficou como um eterno foragido, abandonando sua casa depois que a polícia interditou o terreno, temendo serem amaldiçoados se caso tirassem os corpos dali, seguindo o alerta do sobrenaturalista. Por outro lado, a companhia que antes estava interessada em comprar as terras simplesmente voltou atrás e emitiu a ordem de seus empregados manterem distância do milharal para sempre. 



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