Capuz Vermelho #34: "Alfa, Beta e Ômega (Parte 3)"


Nota do capítulo: Partes em itálico representam flashback ou menções específicas.

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CAPÍTULO 34: ALFA, BETA E ÔMEGA (PARTE 3)

Rosie produzira um nó desconfortavelmente nos pulsos do prisioneiro, amarrando-o com uma corda numa cadeira de metal sem braços no centro daquela sala vazia e iluminada por uma única lâmpada fluorescente branca. O ambiente possuía uma atmosfera mortiça e gélida, as quatro paredes brancas e descascadas transmitindo uma incômoda sensação de quase claustrofobia, algo que proporcionava um silêncio tenebroso.

Edgar trancara a porta após ter afiado a lâmina de seu facão com dentes a fim de impor sua autoridade sobre o submetido.

O prisioneiro nada mais era do que um mimético de face cínica: Um homem careca, de meia-idade e vestindo um uniforme cinza de metalúrgico, sorrindo e dando constantes risadinhas sarcásticas que tornavam-se progressivamente sinistras quando se visualizava seus olhos completamente negros.

- Agora sim está confortável. - ironizou ele. - Obrigado pelo aperto, donzela. - disse, dirigindo-se à Rosie.

- Vai ficar ainda melhor se cooperar conosco. - retrucou a jovem, retribuindo com um sorriso irônico e afastando-se alguns passos.

- E o seu parceiro... - disse o mimético, voltando-se para Edgar. - Hum. Ele me parece tão... inseguro. Tudo bem, pode ir ao banheiro se quiser, eu posso esperar, afinal terei minha cabeça cortada de qualquer forma mesmo.

- É, terá. - devolveu Edgar, aproximando-se dele com postura desafiadora. - Terei um motivo a menos para fazer isso se tiver a gentileza de tirar esse sorrisinho da cara. - falou, apontando com a faca para o rosto do mimético.

Rosie chegara mais perto do caçador.

- Ahn... Edgar. - chamou ela, timidamente. - Nós prometemos deixa-lo viver caso ele nos contasse tudo.

- Eu não prometi nada. - retrucou ele, franzindo a testa. - Fui convencido por você a adotar essa linha. Um monstro não deve ser recompensado com liberdade apenas porque colaborou com seus captores.

- Talvez ele possa ser uma exceção. - argumentou Rosie, enfática, olhando de modo sério. - Por favor.

- Se diz... - disse o caçador, cedendo e aproximando-se alguns poucos passos em direção ao prisioneiro. - Muito bem. Pelo visto, não está exibindo nenhum sinal de que vai entrar no estágio de Inquietação. Você pode estar são, mas não pense, nem por um minuto... que está a salvo.

"Ótimo. Isso facilita muito as coisas.", pensou Rosie de forma irônica, suspirando de olhos fechados e preocupando-se com a metodologia com a qual Edgar utilizaria. A impaciência começara a entrar em ebulição.

- Está bem. Como quer começar? - perguntou o mimético, sorrindo cinicamente.

- Olha aqui. - disse Edgar, pondo uma mão no ombro do capturado e inclinando-se à frente dele. - Nós seguimos uma regra bem explícita, normalmente aplicada para interrogatórios: Não deixe que as emoções interfiram no julgamento. Se for um bom menino, vou segui-la com esmero. - fitou-o com um olhar de ameaça. - Caso o contrário... Não vou hesitar em separar sua cabeça do seu pescoço. Ouviu bem?

- Alto e claro, chefia. - respondeu o mimético, em seguida rindo zombeteiramente.

Rosie se aproximou de Edgar para lhe dizer algo.

- Espera aí. - disse ela, em tom de insatisfação. - "Vou segui-la com esmero"?! E quanto à mim?

- Ah, é verdade. - disse Edgar, fingindo ter esquecido, coçando a cabeça. Voltou-se para o mimético. - E esta é minha parceira. Melhor ter cuidado com ela. - deu uma piscadela.

"Não era exatamente o que eu queria ouvir, mas não importa mais", pensou Rosie, revirando os olhos de tanta ansiedade que sentira no momento.

- Você mencionou... Inquietação. - citou o mimético. - Algo ruim? O que vem depois?

- Nem queira saber. - disse Edgar, firme.

- E não deve. - interveio Rosie, pondo-se lado à lado com o caçador. - Apenas mantenha seu foco nas nossas perguntas. O.K? - pediu, o tom rigoroso.

Andando pela sala, Edgar observava seu reflexo na lâmina do facão com certa tranquilidade.

- Você já presenciou a morte de algum dos seus companheiros? - perguntou Edgar. Rosie o olhou com desaprovação nítida.

- Começou bem. - disparou ela, irônica. Voltou-se para o mimético para falar rapidamente. - Sabemos que Abamanu está aqui, então nos diga: O que ele planeja fazer?

- Direto ao ponto, assim é que é bom. Aprenda com ela, caçador. - zombou o mimético, olhando com interesse para Rosie.

- Vamos logo, responda. - insistiu Rosie, tentando manter a calma.

- Acham que sei? Eles injetaram aquela coisa em mim há poucas horas. - disse ele, tomando seriedade. - Era a Sala de Controle, se não estou enganado. Havia uma máquina enorme e...

- Não pedi uma descrição do lugar. - disse Rosie, logo puxando-o pela gola da camisa. - Larga de rodeios e fala logo de uma vez. O que Abamanu planeja fazer em breve? - perguntou, assumindo rispidez no tom.

- Vamos com calma, donzela. Sua mão está quente, literalmente. - disse o mimético, voltando a fita-la com um sorriso sacana, sem largar dos olhos pretos. - De fato, ouvi parte da conversa enquanto eu estava sendo levado de volta para cela. O chefe pretende, de alguma maneira, expandir seus negócios para toda a cidade.

- Como é que é? - soltou Edgar, chegando mais perto e atento às palavras do prisioneiro. Olhou para Rosie com certa preocupação, tendo a mesma lhe devolvido o mesmo semblante.

- Meus companheiros de cela estão abaixo de mim. - disse o mimético, logo tornando a rir.

Uma pontada no peito que resultou em arrepios insuportáveis acometera Rosie em segundos. Empalidecendo, a jovem se limitou a encara-lo com pavor contido na face. "Isso só pode significar que ele...".

- Err... Rosie. Está tudo bem? - perguntou Edgar, incerto sobre o estado da jovem.

- Fale mais. - continuou Rosie, ignorando a preocupação do parceiro. - Aliás, seja mais específico quanto ao que disse antes.

- O doutor lá... - disse ele, pensativo, mordendo os lábios. - Hum... não me lembro do nome dele.

- O Dr. Lenox? - disse Rosie.

- Esse mesmo! - confirmou o mimético, empolgando-se na cadeira. - Mas que imbecil ele foi.

- Onde ele está? - perguntou Edgar, adquirindo severidade de repente.

- Em uma cela especial, presenteado com um laboratório e algumas regalias a mais. Nós somos a escória, os peões do tabuleiro, enquanto ele é a carta coringa. - revelou ele. - Parece que ele criou uma espécie de versão melhorada da coisa que corre nas minhas veias agora... e fui a primeira cobaia para servir como teste para ela. E como podem ver... funcionou. - deu de ombros.

                                                                                               ***

- Tragam o prisioneiro! - ordenara Abamanu, a voz demoníaca ecoando pela sala de controle. 

A porta metálica abria-se inclinando para cima, dando passagem à dois soldados quiméricos que seguravam um apavorado homem vestindo um traje de metalúrgico. O trabalhador inocente debatia-se na tentativa de se libertar daqueles garras que apertavam seus braços. 

- Me larguem! Me larguem, suas bestas infernais! - berrava ele em alto som. - Vão se ferrar! - vociferou, olhando para os outros quiméricos que o observavam. 

- Cobaias mais inteligentes costumam utilizar o silêncio como amortecedor da dor. - disse Abamanu, frio como um iceberg, fitando o pobre homem com desprezo. -Você, pelo visto, grita sem nem mesmo saber que tipo de dor vai sentir. Humanidade e sua aversão à morte. Como será a morte da sua humanidade, meu caro? Nunca estive tão ansioso. - olhou por cima do ombro, encarando um homem de meia-idade usando um óculos de grau médio, cabelos grisalhos bem penteados para um lado, de rosto quadrado e com barba por fazer, vestindo roupas pretas por baixo de um jaleco branco. Em suas mãos, um conteúdo potencialmente nocivo. - Venha, aproxime-se.

O Dr. Lenox segurava, tremulamente, um cilindro de vidro reforçado com um líquido negrejante e espesso. Acatando a ordem explícita, o cientista caminhou devagar, olhando de modo nervoso para o homem que serviria de cobaia, sentindo crescer em seu âmago uma dolorosa sensação de pena. 

- Não. Não! - relutava o homem, deixando-se ajoelhar, sem mais forças para se debater, os soldados largando-o. - Olha bem pra mim. Olha pra mim! - o homem suava profusamente, seus olhos esbugalhados. - Eu sou igual à você. Humano! Você não tem que fazer isso. - disse ele, balançando a cabeça em negação. 

- Não tenho escolha. - disse Lenox, o semblante intensamente angustiado, aproximando-se mais. 

Um dos soldados entregara uma seringa com agulha para o cientista. 

Lenox adicionara o conteúdo à seringa, o líquido negro subindo. O homem, por sua vez, passou a debulhar-se em lágrimas. 

Lenox entregara o cilindro a um dos soldados quiméricos, em seguida andando em direção ao homem desesperado, a agulha reluzindo à luz solar que adentrava pelas janelas no alto da parede esquerda. 

- Vai em frente... - disse o homem, aceitando seu destino, aos prantos e soluços. - Acaba comigo. Acaba comigo... 

Lenox mordia os lábios, a mão direita que segurava a seringa tremendo e aos poucos ganhando proximidade com o pescoço do homem . 

- O que conversamos anteriormente, Lenox? - perguntou Abamanu, os braços cruzados. - Hesitação sinaliza fraqueza. Você foi recrutado a servir às minhas vontades... mas lembre-se de minha promessa: O farei desistir de sua pequenez como uma recompensa justa pelos seus esforços. 

Lenox fechara os olhos, em um misto de raiva e descrença. 

- Me perdoe. - disse ele, em tom baixo, para o homem, o olhando tristemente. - Posso assegura-lo... de que vai doer muito mais em mim. 

Enfiara a agulha com precisão no movimento, diretamente na veia carótida esquerda do homem, que logo enegrecera com a substância intoxicando o organismo daquele corpo em uma velocidade aterrorizante. 

O homem tremia exageradamente e gemia em agonia com os dentes apertados, tendo seus olhos sendo preenchidos por uma mancha negra, fazendo-o ganhar uma postura aterradora. 

Assistindo ao horrendo espetáculo, Abamanu sorriu, mostrando as presas pontudas. 

- Parabéns, Lenox. O teste da versão Beta foi um completo sucesso. 

                                                                                                   ***

Um descompasso no coração de Rosie quase a fez recuar de modo abrupto. Um filme de horror que vivenciara nos últimos três dias voltava à tona, cujas imagens sequenciavam em sua mente de modo descontrolado, como lampejos de um pesadelo que se gostaria de esquecer. Contudo, a foto ainda existia e estava guardava no seu quarto, servindo como uma estranha lembrança trazida do futuro. A primeira coisa que Rosie se permitiu pensar foi na substância. "A versão Beta! Ela... já foi criada! Essa não... Áker realmente quis me alertar. Não houve manipulação, nem nada para me pressionar a tomar uma decisão rápida. Isto... Aquilo foi uma profecia... e ao que parece ela está se cumprindo!".

- Por favor, nos fale! - apressou-se ela, pondo as duas mãos nos ombros do mimético, olhando-o com expectativa. - Quanto dessa versão foi produzida?

- Muito pouco, acredito. - respondeu ele, incomodado com a postura da jovem. - Será que dá para parar de me tocar? Já não basta essas amarras... - tentou forçar as cordas ao querer se libertar.

Edgar pigarreara, sinalizando sua vigília rigorosa em impedi-lo de tentar se desvencilhar.

Rosie afastou-se um pouco, sem abandonar sua expressão aflita.

- Pelo que ouvi enquanto estava sendo levado... - continuou o mimético. - ... o chefe forçou o doutor a produzir mais e deseja espalhar essa versão usando alguns como eu, disfarçados é óbvio, como funcionários de uma organização do governo de Londres para convencer os cidadãos a tomarem a vacina para se prevenirem contra o gás tóxico que anda dando o que falar por aí.

- Você disse... Vacina!? - disse Rosie, mal acreditando.

- Não, cestas com doces. - ironizou o mimético, franzindo o cenho. - É claro! A versão nova da coisa vai ser vendida como um antídoto. E presumo que já saibam os resultados da tragédia anunciada. - olhou para ambos, sorrindo. - Contaminação a nível mundial, sem controle algum. Máxima de Murphy: Nada está tão ruim que não possa piorar. - gargalhara em seguida.

Edgar preparava-se para ataca-lo com o facão. No entanto, Rosie o impediu.

- Não, espere. - disse ela, tocando no braço esquerdo do caçador.

- Já perdi a paciência, além de já ter escutado o bastante. - disse ele.

- Nós precisamos avisar ao General para que alerte um pelotão extra a impedir uma nova calamidade. - idealizou Rosie, apta a agir rapidamente para tentar barrar a investida ousada e furiosa de Abamanu contra a humanidade. - Ao menos alguém do nosso grupo deve fazer isso. Se fizermos um anúncio para todos, a missão vai desacelerar e as atenções vão se desviar somente para essa emergência.

- Ela está certa, caçador. Melhor fazer o que ela diz. - intrometeu-se o mimético.

Um ruído de estática no CripTalk de Edgar interrompera a discussão. O caçador pegara o aparelho do coldre no cinto, puxando a antena e o levando ao ouvido.

- Novidades? - perguntou ele.

- Péssimas, eu digo. - respondeu o soldado do outro lado da linha. - O General está ferido. Gravemente ferido! E cerca de 90% do grupo está travando uma luta contra vários miméticos, eles não param, é como se estivessem se replicando a cada minuto!

- Mantenha a calma, por favor. - pediu Edgar, rodeando a cadeira onde o mimético estava sentado. - Na verdade, foi ótimo você ter me contactado logo agora.

- Mas por que? - indagou o soldado, claramente desesperado.

- Há pouco tempo pegamos um mimético. Ele tentou nos atacar antes de entramos e o capturamos para interroga-lo. E devo dizer que as notícias que temos também não são nada boas.

- O que ele disse?

- O cabeça planeja infectar todo o país... - olhou para o mimético com curiosidade. Tapou o alto-falante do rádio-transmissor. - Começando por onde? - perguntou ao humano decaído.

- Acho que ouvi Londres. - disse o prisioneiro.

- Londres é o marco zero. Avise aos outros ou qualquer um que esteja próximo de você para que repasse aos demais essa informação, urgentemente. - disse Edgar, voltando a ficar ao lado de uma desamparada Rosie. - É um plano onde miméticos de primeiro estágio vão agir disfarçadamente para convencer as pessoas a tomarem o falso antídoto para que se previnam do gás.

- Ele especificou o modo como farão isso tão rápido? - perguntou o soldado.

- Hum... Não. - respondeu Edgar, sério e olhando de esguelha para o mimético. Tirou o rádio do ouvido e estendendo-o próximo à boca do prisioneiro, obrigando-o a falar. - Ainda estamos com ele sob custódia. Ouça o que tem a dizer. - olhou para ele ao arquear as sobrancelhas. - Vamos lá, fale.

Inclinando-se levemente para falar no CripTalk, o mimético esboçara uma expressão de enojo.

- Vocês todos irão morrer. - disse ele.

- Diga algo que queremos saber. - exigiu Rosie, pondo as mãos na cintura, a face irritada.

O soldado tornou a falar:

- Isso é o monstro falando? Preciso que revele como executarão esse plano em tão pouco tempo!

- Eu sei lá! - irritou-se ele. - Talvez como um modelo que políticos desonestos fazem nas suas campanhas.

- Como um comício eleitoral? - arriscou o soldado.

- É! Isso mesmo. - confirmou o mimético, a paciência esvaindo-se por completo. - Irão armar um palanque com a intenção de convidar toda a população para se organizar e tomar a "vacina". - rira em escárnio. - Um dos meus colegas de cela foi o prefeito de Londres, seus idiotas!

Um sobressalto abateu-se sobre ambos após aquela revelação inesperada. A dupla se entreolhou, partilhando da mesma sensação de surpresa.

- Mas... como assim? - perguntou Rosie, meio perdida. - Melhor dizendo: Há quanto tempo você estava sendo mantido prisioneiro? - deu alguns passos à frente.

O soldado do outro lado tornou a falar.

- Sou eu quem faço as perguntas neste momento senhorita Campbell, posso ouvir sua voz! - disse ele, autoritário. - Portanto, irei repetir a que fez: Há quanto tempo você está sendo mantido prisioneiro?

- Há exatamente um mês. - respondeu o mimético, lacônico.

Um fato curioso e intrigante retornara à memória de Edgar, fazendo-o refletir profundamente.

- Como posso saber se não está mentindo? - desconfiou o soldado.

O mimético, em resposta, grunhira enraivecido por sua honestidade testada por um homem militar.

- Não seja imbecil! - esbravejou ele. - Estou sendo ameaçado por um caçador e uma garota estranha e amarrado em uma cadeira! Como acha que nestas condições eu poderia me arriscar a mentir? Portanto, o que digo é a mais pura verdade. Sei que nada vou ganhar se eu decidir enrolar por mais umas horas.

- Ele está dizendo a verdade. - afirmou Edgar, olhando para o capturado.

- Como tem tanta certeza? - perguntou Rosie, intrigada.

- Há exatamente um mês atrás... - disse Edgar. - ... houve um boato correndo á solta pelos arredores da capital, especulando que o prefeito havia sido sequestrado ou teria fugido para outro país para tentar suicídio por conta da excessiva carga de trabalho a cumprir e que estava lhe causando crises sérias de exaustão extrema. E agora temos a confirmação. O sumiço do prefeito foi noticiado por poucos jornais, quase nenhum eu acho, foi muito mais um rumor corrido de boca em boca do que uma notícia publicada oficialmente. Provavelmente, a prefeitura acobertou o caso para não causar mais burburinho e evitar que a população o relacionasse com a União Soviética ou a Alemanha. Essa atitude me levou a imaginar o quão manipulados foram os principais jornais do país para não divulgar o suposto sequestro. - fez uma pausa, pondo o rádio-transmissor de volta ao ouvido. - Então esta é a conclusão definitiva: Os soldados do cabeça raptaram o prefeito e o mantiveram cativo até que fosse infectado junto com outros.

- E quando ele foi liberado da cela? - perguntou o soldado, a voz embargada de temor. Edgar gesticulou com as sobrancelhas para o mimético, pedindo para que ele revelasse.

- Creio que ontem à tarde. - afirmou ele.

- Ontem à tarde, segundo nosso interrogado. - informou Edgar, a fala rápida. - Ele já não está mais no cativeiro, como havíamos pensado, logo permanecem dois resgates por aqui. Isto só nos leva a concluir que...

- Sim, exatamente! - interrompeu o mimético, falando em voz alta e rascante. - Ele foi infectado no mesmo dia em que foi solto, para que voltasse ao ofício e mentir sobre o que o levou a se afastar daquele jeito, agindo como se nada tivesse acontecido, agindo como um humano saudável, apenas um dia normal na sua querida cidade!

Rosie tornou a interroga-lo, cada vez mais incisiva.

- Você presenciou o exato momento em que ele foi infectado? Estava entre eles?

- Claro que não, sua tola. - disparou o mimético, ríspido com a jovem desta vez. - Aliás, eu quase cheguei a ser incluído na lista de prisioneiros que seriam infectados, mas os planos de uma hora para outra mudaram e me guardaram para uma ocasião... especial. - sorriu com cinismo. - Eu fui escolhido de forma aleatória demais, me sinto até honrado, tendo em vista o tempo que passei aqui. Agora me sinto mais forte e mais vivo do que nunca.

- Ninguém se importa. - retrucou Rosie, logo voltando-se para Edgar com urgência no olhar. - Melhor agirmos rápido, nosso tempo é curto.

- Muito bem, ouça com atenção. - disse Edgar dirigindo-se ao soldado na linha. - Alerte aqueles que estão fora da zona de combate e peça para que um deles se encarregue de cuidar do General e afasta-lo das proximidades imediatamente.

- Eu vou tentar ajudar. - soltou o mimético para o espanto de Rosie que o olhou com estranheza. - Algo me diz que o pronunciamento do prefeito para o anúncio surpresa e distribuição da falsa vacina não passam de uma distração, uma enganação bem esperta da parte deles. - arriscou ele. - Talvez hajam movimentos alternativos... E então? O que acham dessa teoria?

Respirando fundo, Rosie andava de um lado para o lado lentamente, imersa em uma carga muito profunda de revisitações constantes da perturbadora viagem que fizera há poucos dias.

Edgar quase esquecera-se do soldado ainda na linha do rádio ao direcionar sua atenção à especulação do prisioneiro. Seu semblante era de alguém seriamente desconfiado. "De modo algum isso deve ser desconsiderado, parece uma possibilidade real.".

- Como o quê, por exemplo? - perguntou ele. - Por que será que tenho a sensação de que você só está nos testando e sabe mais do que diz?

- Confiem em mim. - disse ele.

- É a última coisa que queremos. - redarguiu Edgar, inflexível.

- Não pararam para pensar, seus idiotas? - ofendeu o mimético, a pressa para o término do interrogatório dando seus sinais. - Eu ouvi conversas. Ou pelo menos fragmentos delas. Meus colegas de cela me repassavam algumas ideias que os poderosos estava discutindo. Acho que assim que fossem infectados... seriam levados a uma missão especial, como forma de reaver o controle sobre a contaminação pelo fato das fábricas terem sido desmanchadas. O chefe só quer voltar ao poder... com mais visibilidade, se é que me entendem. - informou ele.

- E no que consistem esses planos alternativos? - perguntou Edgar, ansiando para sair daquela sala fria.

- Ouvi mencionarem água... - disse, dando de ombros. - ... casas, humanos, esgotos...

- É isso! - disse Edgar, tendo um lampejo, assustando Rosie. Virou-se para ela, empertigado. - A distribuição da falsa vacina é uma fachada para mascarar os movimentos mais audaciosos. O que ele nos disse agora deixa isso bem claro. Essa nova versão vai ser liberada em redes de esgoto, reservatórios de água... - fez uma pausa, preocupando-se ao dar-se conta da assombrosa gravidade do problema. - ... depois para os encanamentos de residências, depois lagos, rios e oceanos. Poluição a nível global.

- Como eu disse: Em larga escala. - lembrou o mimético, virando o rosto, entediado.

Rosie mal conseguia expressar palavras para reagir àquilo. Apenas limitou-se a imaginar como as horrendas poluições se dariam caso não conseguissem impedir a tempo. "Não resta muito tempo. Precisamos correr!".

- Ainda está na escuta, Edgar? - perguntou o soldado ainda na linha.

- Ahn... Sim. - falou ele, ainda tentando processar as revelações e conclusões feitas. - Olha... Eu vou tentar ser bem claro e breve: Não só alerte aos outros sobre o estado do General... mas também sobre uma missão urgente para evitar uma tragédia. Seja rápido ou várias pessoas serão infectadas em pouco tempo. Pelo que conseguimos obter, acreditamos que um grupo de miméticos de estágio primário estejam se preparando para disseminar a nova versão da substância nas redes de esgoto até chegar aos mares e oceanos.

- Ah, meu deus... - disse o soldado, desesperando-se mais. - Então só depende de mim mesmo. Está bem então. Vou tentar encontrar um lugar seguro para o General ficar, vou até o grupo que está lá dentro e avisa-los. Depois solicitaremos um pelotão-extra para ir até o centro de Londres, é óbvio que a distribuição vai ocorrer lá... Mas não posso fazer isso sem uma autorização do General.

- Então peça já. - disse Edgar, impaciente, revirando os olhos. - Sei que ele está próximo de você, portanto faça isso, rápido. Conte à ele primeiro, mas poupe-o dos detalhes por conta do tempo que está curto demais, mesmo que ele se irrite e questione depois, diga apenas o necessário. E, por favor, tente entrar ileso e discretamente, mantenha seu equipamento. OK?

- OK, pode deixar! - disse o soldado, falando depressa e em seguida desligando.

O caçador, por fim, guardara o rádio-transmissor no coldre, suspirando pesarosamente.

- Vamos lá. - disse Rosie, andando até a porta. - Precisamos saber se ao menos a primeira pessoa já foi resgatada. "Êmina, estou indo... estou indo busca-la, você verá a luz do dia novamente.", pensou.

- Já vou, eu... - disse Edgar, olhando de soslaio para o mimético. - Só preciso terminar aqui... - virou-se para ele, logo erguendo o facão e decepando a cabeça do prisioneiro em um golpe preciso e horizontal. Ouvira um grito rápido e cortado durante o movimento. A cabeça caíra para trás da cadeira e o pescoço expelia profusamente a gosma preta e espessa, sujando o uniforme cinza do homem.

- Ei! - chamou Rosie, abismada com o ato. - O que combinamos antes? - aproximou-se, olhando-o com reprovação. - Você não é um homem de palavra.

- Sou um caçador, Rosie. - enfatizou Edgar, sério, limpando a lâmina no colete marrom que vestia. - Apenas faço promessas que posso cumprir. E esta não foi uma delas. Lamento se tem algo contra isso. - caminhara até a porta.

- E se existir uma cura? - teorizou Rosie, acompanhando-o e saindo da sala. - O dr. Lenox esteve trancafiado em um laboratório por meses, deve ter formulado alguma coisa para reverter a infecção. Se tivesse o deixado viver, nós iríamos testa-la depois de resgatar o doutor.

- As amarras não estavam tão bem apertadas. - disse o caçador, guardando a faca. - Enquanto trouxéssemos o doutor para a sala, ele já teria se libertado e escapado. Além disso, não há nada que garanta a existência de uma cura. Aquele mimético esteve frente à frente com me... Quero dizer, com o doutor enquanto estava sendo infectado. Mesmo assim não nos revelou nada sobre uma cura, ainda mais porque você foi lembrar disso só agora.

- Está bem, não vamos pôr minha memória falha em discussão, sou culpada por não ter lembrado desse detalhe. - disse Rosie, erguendo levemente as duas mãos.

- Nem queira me fazer ficar arrependido pelo que fiz. - ditou Edgar, andando mais rápido até o início do corredor. - Ele era um monstro. Obviamente fugiria para mais distante para infectar mais pessoas, talvez imaginando que serviria como o "acelerador do processo de dominação global". - argumentou.

- Ele estava infectado com a nova versão. - insistiu Rosie, potencializando sua irritabilidade. - Sabe-se lá quanto tempo ele teria naquele estágio. Talvez nem conseguisse chegar ao centro de Liverpool a tempo de infectar suas vítimas de forma discreta. Concorda?

- Hum... Não. - disse Edgar, olhando para ela com um sorriso forçado.

- Você é um cara bem chato para alguém que foi dispensado. - provocou ela, olhando-o.

- Já fui chamado de coisas piores. - defendeu-se ele. Ambos finalmente chegaram à divisão de corredores, parando no início do qual antes estavam. Edgar visualizara com atenção a esquerda e a direita. - Acho que é hora de nos separamos. O que acha?

- De pleno acordo. - afirmou ela, evidenciando sua rápida antipatia pelo caçador. - Vou para a direita. - disse, começando a tomar o rumo. - Até mais.

- Ótimo. Nos vemos por aí. Boa sorte. - disse Edgar, olhando para ela por cima do ombro de modo analítico.

Com caminhos separados, ambos almejavam propósitos diferentes. Rosie com o foco no resgate de Êmina... e Edgar com um objetivo principal bastante oculto.

                                                                                          ***

A porta se abrira inesperadamente. Hector e Alexia, viraram-se para a entrada da sala, ambos reagindo com sobressaltos simultâneos.

Eleonor exibia uma palidez agravante no rosto, andando cambaleante pelo recinto em busca de um apoio para descansar, tocando em coisas que sua visão turva e enganosa fazia parecerem reais e próximas dela. Hector rapidamente agiu para apoia-la, pegando o braço direito do corpo de Alexia e pondo-o sobre a nuca a fim de ajuda-la a andar até a poltrona de couro beje, localizada no ponto mais opaco da sala. Contudo, em vez de preocupada, a vidente, cruzando os braços, se fez aborrecida.

- Não faz nem uma hora que saiu daqui e veja o que faz com meu corpo. - disse ela, olhando para a mentora sem um pingo de aflição pelo seu estado arquejante e pálido.

- Não diga asneiras. - retrucou Eleonor, sentando-se na poltrona com a ajuda de Hector, a voz enfraquecida. Inclinou a cabeça para trás, apoiando-a.

- O que aconteceu? As bruxas abordaram você no caminho? - quis saber Hector, olhando-a ansioso.

- Não. - disse a bruxa, logo tornando a tossir. - Nenhuma delas... chegou a me ferir ou me ver. Por sorte... - ergueu a mão esquerda fechada, logo abrindo-a e mostrando a pedra Ônix. - Aqui está. - jogara-a para que Alexia pudesse pega-la.

Em um ótimo reflexo, a vidente pegara a pedra e a tocara, sentindo a textura áspera do artefato.

- Está ardendo em febre. - constatou Hector ao tocar na testa da moça. - Como isso foi acontecer?

- É o meu chackra. - respondeu Eleonor, mal aguentando-se de cansaço. - Foi imprevisto, eu sei, mas... Ele reagiu mal ao feitiço por conta da instabilidade... causada pelo meu nervosismo.

O caçador fechara os olhos, suspirando pesadamente, parecendo desesperançoso.

- Você pelo menos tentou? - perguntou Alexia, inflexível.

- Mas é claro! - redarguiu Eleonor, rispidamente. - Acho que esqueci de falar...

- Oh, não... - afligiu-se Alexia, aproximando-se. - Qual detalhe importante você acabou de lembrar e agora se arrepende de ter esquecido? - perguntou ela, sem alterar o tom.

Hector a olhou com reprovação.

- Agora está agindo como ela quando tenta ser controladora. - disse o caçador, olhando de relance para a bruxa largada no sofá.

- Ora, vai se ferrar. - provocou Eleonor, pondo uma mão no rosto, o esgotamento físico piorando. - Não se preocupem, a instabilidade é temporária. Também não se esqueçam... de que sou uma bruxa Ômega em treinamento... eis a razão de eu me encontrar nesse estado deplorável. - lamentou, sentindo-se patética. - Executei essa parte do plano sob muita pressão. Por favor, entendam. Sobretudo, você Alexia. - olhou para a vidente, severa.

- Ela tem razão. - aquiesceu Hector, virando-se de costas, aparentando estar hesitante. - Além do mais, os imprevistos só tornaram as duas últimas partes do plano praticamente inviáveis. - voltou-se para Alexia, lembrando de estar se dirigindo à vidente ao invés da bruxa. - Alexia ainda é uma aprendiz. Eu sou apenas um caçador que prefere manejar armas, sem nenhuma pretensão ou inclinação para usar magia. - olhara para Eleonor, em um contato visual que denotava rendição. - E olhe como a obtenção da pedra terminou. Não está em condições de se manter de pé.

- Eu disse que era temporária. - - insistiu Eleonor, fuzilando-o com os olhos.

- Por quanto tempo? - questionou Hector, elevando o tom de voz.

- Vinte minutos, no máximo, eu acho. - respondeu a bruxa, arfando e sentando-se melhor.

- Esperava algo mais animador do que mero achismo. - retrucou o caçador, insatisfeito com o rumo que o plano parecia estar traçando.

- É a primeira vez que realizo uma troca de corpos. - afirmou Eleonor. - Assumir riscos foi a primeira coisa que pensei quando demos início ao plano. Esperava que também seguissem essa linha. - dissera, olhando para ambos.

- De qualquer forma, alguém deve ir às Ruínas Cinzas, imediatamente. Vinte minutos, à essa altura, já é tempo demais a ser perdido. - disse Alexia, apressando-se. Fez uma pausa, ficando pensativa por alguns segundos. - Eu vou. - decretou, determinada.

Ambos fitaram-a com descrença absoluta.

- Não, não vai. - definiu Eleonor, enfezando-se com a postura da vidente. - Magia de teleporte requer um aprendizado rígido, algo que se consegue em questão de anos. E a operação em Liverpool certamente não vai durar anos.

- Espere, vamos ouvi-la. - disse Hector, levemente erguendo uma mão, interessado em saber o argumento que Alexia pretendia apresentar.

- Inacreditável. - reclamou Eleonor, virando o rosto para um lado, revirando os olhos.

- Eu estava pensando - começou Alexia, insegura - sobre a explicação da pedra Ônix... seu poder de absorção. - olhou para a mentora. - Disse que abrir mão da sua magia era algo desconsiderado, certo?

- Não estamos numa situação tão extrema à esse ponto. - afirmou a bruxa, ciente.

- É aí que mora a questão. - disse Alexia, parecendo empolgar-se. - Dá pra ver que vai precisar mais do que vinte minutos para se recuperar totalmente. Então, é o que peço: Transfira sua magia para a pedra, talvez eu consiga toma-la para mim a partir dela e poderei usar a magia de teleporte. O que acham? - perguntou ela, encarando os dois. - Isso sim é viável nesse momento.

Eleonor fitara sua aprendiz em um misto de apreensão e desaprovação, balançando a cabeça negativamente para ela.

Hector virara o rosto, reflexivo quanto a correr aquele risco.

- Não, não e não, Alexia! - disse Eleonor, subitamente conseguindo levantar da poltrona, embora ainda castigada pelo cansaço esmagador. - Essa é a pior de todas as ideias que já ouvi antes! Você é uma simples aprendiz! - deu uns dois passos à frente, o tom rigoroso diante de Alexia. - Fizemos um feitiço que demorei 18 anos para aprender a controla-lo, mesmo sem ter por perto alguém apto o bastante para trocar, tendo que recorrer aos animais para fazer os testes, e foram desafios terríveis, pode acreditar. - fez uma pausa, respirando fundo. - Mesmo estando no meu corpo... - olhou-a de baixo à cima. - ... eu não sei. Não sei quais seriam as consequências, mas... posso dizer que com certeza seriam devastadoras, acredite em mim. Um chackra tão poderoso residindo numa alma frágil como a sua... - baixara um cabeça, ainda sentindo-se mal. - ... odeio só de pensar no resultado. - disse, a voz adquirindo um tom choroso.

- A transferência é arriscada demais, Alexia. - disse Hector, concordante com o ponto de vista da bruxa, tocando o ombro esquerdo da vidente amistosamente. - Muito devido à sua inexperiência. Pense nisso. - aconselhou.

- Se não houvesse nenhum resquício de sensatez em mim, nós estaríamos perdidos. - disse Eleonor, voltando a sentar na poltrona. - Está decidido: Eu irei às Ruínas Cinzas. Já posso sentir minhas emoções mais estáveis... tudo está se normalizando. - falou, tentando acalma-los.

- Só deve desfazer a troca quando seu chackra se tranquilizar? - perguntou Alexia, vendo-se sem poder de decisão, convencida por Hector a abandonar seu plano extremamente arriscado.

- Obviamente. - respondeu Eleonor, tratando a pergunta como sendo desnecessária, pondo uma mão no peito, ainda desconfortável.

Hector, por sua vez, resolvera caminhar devagar pela sala, pacientemente aguardando Eleonor recuperar suas forças.

- Bem, prefiro permanecer esperando. - disse ele, confiante.

- Que inveja. - disparou Alexia, ansiando por ao menos possuir um pouco da paciência surpreendente do caçador. - Ainda restam quinze minutos. - afirmou ela, dando uma olhadela no relógio de parede.

- Não me apressem. - disse Eleonor, voltando a respirar mais calmamente. - Ainda existe uma outra imprevisibilidade.

A frase chamara a atenção de Hector, que se virara para a bruxa no mesmo instante, interessado em saber qual o outro obstáculo a ser enfrentado no próximo passo do plano.

- Sobre a Ônix. - disse Eleonor. - A absorção deste modelo pode ser absurdamente limitada. Afinal, não sabemos quanto de energia foi gasto e lançado no solo das Ruínas Cinzas quando Abamanu usou o talismã... Vocês dois viram, mas mesmo assim...

- Verdade. - aquiesceu Hector. - Naquele exato momento, estávamos pairando no ar junto com a poeira e os escombros.

- Tamanho foi o desespero - contou Alexia - que nem medimos a grandeza daquele raio de luz que rasgou o céu e caiu no chão... levando Charlie junto com aquele monstro. - deixara cair uma lágrima, revisitando, em pensamentos, o fatídico dia.

- O que quero dizer é que... - disse Eleonor, resistindo a uma possível recaída, fechando e reabrindo os olhos. - ... uma pedra Ônix neste tamanho, dependendo da quantidade de energia que estiver por lá, pode não suportar.

- E nesse caso...? - perguntou Hector, olhando-a curioso.

- Ela racharia-se de dentro para fora - revelou a bruxa -, mas mantendo a energia fixada nos pedaços. E você, com certeza, não quer ter vários fragmentos de Ônix dentro do seu corpo, torturando você como agulhas espetando.

- Diz por experiência própria? - perguntou Alexia, fitando-a com certa suspicácia.

- Óbvio que não. - respondeu Eleonor, voltando-se para ela com irritação. - O motivo pelo qual eu hesitei em seguir com esse plano foi justamente pelo fato disso nunca ter sido testado antes. Pode ser destrutivo de inúmeras formas. Pode deixar sequelas irreversíveis. Uma infinidade de fatores, em boa parte negativos.

- O que não nos impede de continuar seguindo com o plano até o fim. - apontou Hector, com firmeza, sem deixar indícios de desistência. - Independente dos riscos. - determinou, olhando para ambas.

- Por acaso existe uma outra Ônix capaz de suportar grandes quantidades de energia, especialmente divina? - perguntou Alexia, analisando o artefato enquanto andava vagarosamente pela sala.

- Percebo que está começando a agir como eu. Exatamente como previ. - disse Eleonor, levantando-se da poltrona. Hector dera alguns passos à frente a fim de ajuda-la, mas a bruxa ergueu levemente sua mão direita, sinalizando que não era mais necessário. - Não percebeu? - perguntou, dirigindo-se à Hector. Voltou sua atenção para a aprendiz. - Ela... está começando a falar como eu. Não vejo mais aquela... sensibilidade, toda aquela insegurança, o medo... ele despareceu completamente.

- O que significa? - perguntou Alexia, despreocupada, dando de ombros.

- Quando uma troca de corpos é prorrogada por mais de trinta minutos - disse a bruxa. -, tanto o recitador quanto o voluntário... passam a compartilhar as características. Você continua sendo você mesma, Alexia, mas, como está no meu corpo, sua alma está se adaptando ao que ele suportou em anos, e minha personalidade é um desses elementos. - fez uma pausa, andando até ela. - E como minha alma está no seu corpo... talvez sua insegurança, algo que é parte de você e do seu corpo, tenha mexido com meu chackra e causado a instabilidade. Desculpe falar isso só agora, afinal, estava com pressa, além do tempo curto que temos.

- E agora que temos a pedra - disse Hector, aproximando-se. - e você parece já estar recuperada, acho que agora é uma excelente hora para as duas voltarem para seus devidos corpos.

- Sim, mas antes... - disse Alexia, aturdida pela questão da prorrogação do tempo da troca. - Eu quero saber de mais alguma coisa: O que aconteceria ficássemos assim... por 24 horas?

- Eu seria você e você seria eu. Uma Eleonor com dons proféticos e uma Alexia como bruxa especialista. - disse ela, olhando-a fixamente. - Menos de 24 horas seria o suficiente para isso. - relanceou a pedra Ônix na mão esquerda da vidente. - Largue a pedra, vamos terminar isso já. - disse, preparando-se para recitar o feitiço reverso.

Alexia jogara a Ônix para que Hector pudesse pegar, logo em seguida tendo o caçador pegado-a e segurando-a firmemente enquanto se afastava para perto da poltrona.

- Tem certeza de que está bem? - perguntou Alexia, incerta.

- Concentração no feitiço, não no meu estado. - disparou a bruxa, levantando uma sobrancelha, olhando-a com severidade.

Ambas deram as mãos, nas quais fizeram os cortes que estabeleceram a conexão, e desapareciam com ela desfeita por definitivo.

Hector resolvera sentar na poltrona, pronto para proteger seus olhos da luz ofuscante.

- Disiunctio animarum. Undo replacement! 

Dos torsos de ambas uma luz branca foi acendendo-se gradualmente e tornado-se mais cegante a cada segundo que se passava, logo preenchendo todo o recinto com uma claridade intensa.

Novamente, por instinto, Hector tapou seus olhos com as mãos, virando o rosto.

Um retilíneo feixe de luz branca saíra da boca aberta de Eleonor, fazendo um contato com Alexia, que também, involuntariamente, abrira a boca mais do que costumava suportar, tendo dela saído outro feixe de igual forma, ambos colidindo-se em uma unificação tão rápida quanto a reversão oral do feitiço.

Passados cerca de 30 segundos, a luz cessara, diminuindo com espantosa rapidez.

As duas, por fim, largaram as mãos, a conexão tendo sido desfeita e o feitiço reverso bem-sucedido. Um pouco tonta, Alexia, finalmente de volta ao seu corpo, sentia-se enjoada.

- Agora sou eu que não me sinto nada bem. - disse ela, incomodada, parecendo ter tomado as dores de sua mentora. - Você mentiu pra mim. - olhou para Eleonor, meio grogue.

- Oh, sua tola. - retrucou a bruxa, rindo de leve, voltando a erguer a cabeça, e, sobretudo, voltando a respirar com mais alívio. - Olha, me desculpa, mas foi preciso, pois nosso tempo ainda está curto. Mas você vai ficar bem, isso eu garanto.

- Assim espero. - disse a vidente, virando as costas e andando trôpega até uma parede para se apoiar - Toda essa sensação me faz ter saudades do seu corpo. Mas que droga. - reclamou, mal aguentando-se.

Eleonor voltara-se para Hector, estendendo a mão, movendo os dedos em um gesto para pedir que o caçador entregasse a pedra.

Hector entregara-a, olhando de relance para Alexia, que exibia sinais de que iria vomitar a qualquer momento na sala.

- Deveria ter sido mais honesta com ela. - disse Hector, denotando desaprovação pela decisão da bruxa.

- E como resultado nos fazendo perder mais tempo. Sim, honestidade nessa hora seria um benefício. - disse ela, provocadora. Suspirou calmamente, decidida a continuar o plano, olhando para a pedra. - É tudo ou nada. Vou para o quintal e desenhar o símbolo de transportação. Cuide dela por enquanto. - afirmou, logo olhando para Alexia por cima do ombro. - Acredito que até eu voltar, ela vai estar melhor.

- Pelo que vejo, não tenho tanta certeza. - disse Hector, olhando preocupado para a amiga passando por um mal-estar agoniante.

- Minha força de vontade é o que abrandava a dor. Agora que Alexia retornou ao seu corpo... - disse a bruxa, virando-se para olha-la com certa preocupação. - ... a sensibilidade dela, adaptada ao seu corpo, reagiu de imediato, fazendo com que ela sinta todo esse mal-estar que meu chackra instável gerou.

Alexia estava agachada, com a mão direita apoiada na parede, dominada por uma ânsia de vômito incontrolável.

- Como está se sentindo, Alexia? - perguntou Hector, a fim de ter certeza.

- Me diga você. - redarguiu a vidente, aborrecida. - Eu pareço bem? - fez uma pausa, respirando fundo e olhando para sua mentora por cima do ombro. - Anda logo. O que está esperando? Vá até as Ruínas Cinzas e faça a maldita pedra absorver toda a energia que está lá.

- Muito bem. - disse Eleonor, caminhando em direção à porta. - É bom torcerem para que, ao menos, nesse passo, a sorte esteja ao nosso lado. - afirmara, saindo da sala apressadamente.

Alexia gemia angustiadamente, em prantos. Hector agachara-se, afagando as costas da vidente para acalma-la.

- Vai ficar tudo bem, Alexia. - disse ele. - Ela pode parecer fria às vezes, mas tenha certeza de que ela está confiando em nós tanto quanto ela nos incentivou a confiar nela.

- Não, eu entendo. - disse ela, enxugando as lágrimas. - Eu só... não aguento mais.

- Conviver com ela tem sido tão desagradável assim? - perguntou o caçador, a fala mansa.

- Na verdade, eu agradeço por tudo o que ela fez por mim. Mas... eu não posso mais continuar vivendo aqui, não quero estar fadada a pagar os preços que a bruxaria exige quando você a usa. - olhou para Hector, séria, os olhos vermelhos devido ao choro. - Não quero me tornar algo como ela.

O caçador ficara silencioso por alguns segundos, tentando imaginar o temor pelo qual a vidente tivera de passar no árduo período em que ela se viu forçada a confiar em Eleonor ao confrontar seus preconceitos relacionados às artes ocultas, mesmo que as prestativas intenções da moça não incluíssem o uso de bruxaria primitiva. Pelo visto, Alexia não parecera totalmente convencida.

- Isso não vai acontecer. - disse Hector, pegando de leve a cabeça da vidente e apoiando-a no seu ombro para conforta-la.

- Não acontecerá... se eu resolver ir embora desta casa em breve. - afirmou Alexia, passando a reavivar o bem-estar aos poucos. - Não tenho bons pressentimentos quanto ao que ela pretende fazer comigo. Talvez me usar como ferramenta para derrotar as bruxas que a perseguem.

- Pelo pouco tempo em que convivi com ela - disse Hector, em tom baixo. -, eu tenho certeza... de que ela jamais utilizaria você como degrau para se colocar um passo à frente das perseguidoras.

- Não viu o quanto ela estava nervosa? - perguntou a vidente, ainda desconfiada. - Posso estar exagerando, mas... algo me diz que ela escondeu uma boa parte dos fatos.

- Então crê piamente que ela tenha sido abordada por uma das bruxas no caminho? - perguntou Hector, compartilhando da suspeita.

- Achei que confiasse nela mais do que eu. - disse Alexia, pegando o caçador desprevenido.

- Francamente, sua suspeita é válida pra mim. - justificou o caçador, baixando um pouco a cabeça, pensativo. - Provavelmente ela fez questão de omitir algum evento que ocorreu antes ou depois da compra da pedra, algo grave o bastante para deixa-la naquele estado do que simplesmente nervosismo ou insegurança. Nesse ponto, eu concordo com você, Alexia. Mas aconselho a se concentrar em melhorar. À essa altura, é inútil tentar questionar isso com ela, já temos a pedra, estamos perto demais. - disse ele, transmitindo confiança e paciência na medida do possível. - Saiba que estou do seu lado.

- Obrigada, Hector. - agradeceu Alexia, fechando os olhos e deixando duas lágrimas derramarem-se.

                                                                                               ***

Liverpool - 11h38. 

O mimético fora largado com violência contra a parede por um dos soldados que integrava o grupo que seria responsável pelos resgates. O infectado vestia uma roupa branca, indicando ser um profissional da enfermagem de algum hospital da cidade. O soldado o segurava com força pela gola da camisa, mantendo-o "colado" na parede, enquanto o restante da equipe apontavam suas armas contra ele.

A área na qual estavam situava-se na parte central da fábrica, cuja aparência soava completamente destoante dos labirintos de corredores, mais como um castelo dos tempos medievais, com um teto mais alto, paredes meio pedregosas com retângulos e as colunas de concreto escurecido apenas complementavam todo a atmosfera arcaica que aquela zona fazia sentir. O chão era de pedra, mas estava sujo, deixando que qualquer passo, seja silencioso ou apressado, pudesse levantar pequenas nuvens de poeira.

O soldado tornara a insistir, revidando as ofensas do mimético com ameaças mais fortes.

- Anda logo! Diz de uma vez! - dizia ele, raivoso. - Se não quiser furos na sua cabeça, vai ter que colaborar conosco. Portanto, nos fale: Onde fica a prisão subterrânea? - perguntou, aquela sendo a quarta vez que persistira.

O mimético ergueu o braço direito, trêmulo, mesmo fulminando o soldado com seus olhos pretos.

- É a garota que vocês querem? - perguntou o mimético.

- O quê!? - indagou o soldado que o segurava, franzindo a testa. - Então você sabe quem está trancafiado lá, não é?

- Não falaria se não soubesse, seu imbecil. - disse o mimético, ofensivo e petulante.

- Para qual lado? Seguindo direto ou no corredor à direita? - perguntou o soldado, apertando mais a gola da camisa do infectado.

- À direita. - revelou ele, quase grunhindo. - Agora me solta, me deixa ir! - pediu, inquietando-se, tentando se desvencilhar das mãos do soldado.

- Olha, se estiver mentindo... - disse o soldado, ameaçador.

O som cortante de um chiado interrompeu a fala do subordinado de Holt. Era o rádio-transmissor de um dos soldados do grupo reproduzindo o barulho de estática intermitente.

Um deles - um grandalhão de cabelos pretos meio espetados -  baixara a arma, retirara o rádio do coldre e atendera o chamado.

- Na escuta. - disse ele, a voz grave. - O que foi?

- Nós conseguimos. Encontramos um cativeiro alternativo. - informou o soldado na linha.

- O quê? Que história é essa? - perguntou o soldado, estreitando os olhos, desentendido. - Pensávamos que seria um prisioneiro para cada fábrica, foi assim que deduzimos. Faça uma descrição.

- O acesso se dá por meio de um corredor que tem início a partir de uma das portas dos fundos, depois descemos uma escada e nos deparamos com uma porta metálica. Estamos tentando dinamita-la agora mesmo. - informou o soldado, o tom de voz afoito e nervoso. - Dependendo da resistência da porta, acho que com a quantidade de bombas que implantamos, a tranca, no mínimo, vai ser bastante danificada. Vamos tomar distância agora... os pavios já foram acesos.

- Espere aí. Como tem tanta certeza de que há alguém do outro lado ou se não é uma armadilha? - questionou o soldado, andando de um lado para o outro vagarosamente. - Há algum sinal de que a vítima está presente no recinto?

- Sim! - disse o soldado. - Podemos ouvir seus gritos de socorro. O metal da porta deixa o som abafado e fraco, mas dá para ouvir. - deu para escutar um outro soldado pedindo, aos berros, para que a pessoa por trás da porta se afastasse dela por segurança, explicando ser uma operação de resgate.

O grandalhão gesticulou com a mão pedindo que seus companheiros fossem na frente sem ele. Todos cederam e correram para a direção apontada pelo mimético, que fugira na direção oposta como um cão covarde.

No rádio pôde-se ouvir um estrondo altíssimo. O soldado afastara o aparelho do ouvido no momento da explosão. Tornou a aproxima-lo do canal auditivo após o cessar do barulho.

- E então?

- Nós... - uma tosse cortara a voz do soldado, devido a fumaça. - ... já vamos entrar! Consigo ver um vulto correndo... acho que é ele, é um homem! Não pode ser, caramba!

- O quê? Conseguiu identifica-lo? - perguntou o soldado, ficando impaciente.

- Você não vai acreditar. Os outros já entraram na sala, estão ajudando ele. Meu deus...

- Quem é, afinal? - perguntou, fazendo uma cara emburrada.

- Talvez você não conheça... mas sinto-me honrado ao participar do resgate de Maximilliam Lenox. - falou o soldado na escuta, a voz embargada de emoção.

                                                                                                    ***

Uma dupla de soldados de Abamanu barrara a passagem da equipe de soldados do Exército. Os lobos bípedes apontavam suas lanças com pontas vermelhas, ambos rosnando com ferocidade para os homens, ameaçando atacarem caso um deles desse mais um passo.

- Fiquem onde estão. - disse um, a voz soturna.

Os soldados recuavam vários passos, apontando suas metralhadoras para as feras.

- Eu disse para não se moverem. - insistiu o monstro, ríspido. - Suas armas são falhas contra nós.

Corajosamente, um dos soldados dera um passo adiante, os olhos fixados no inimigo e a arma em riste. Em resposta, o soldado de Abamanu também avançara calmamente, mas fazendo com que a ponta da lança - o cristal escarlate - tremeluzisse seu brilho em uma clara ameaça de disparo.

- Não digam que não avisamos. - disse ele, seus lupinos olhos amarelos relanceando os outros do grupo.

- Nenhum de nós vai cair perante á vocês. - atestou o soldado, sem desistir.

- Já nasceram caídos. - provocou o soldado, seu tom de voz calmo e sombrio elevando a tensão em um nível alucinador.

De repente, o soldado-quimérico encontrando-se à esquerda daquele que ameaçava disparar contra o militar tivera sua armadura transpassada por uma lança prateada do mesmo tipo, seu corpo tremeluzindo uma luz azulada.

Retirando a arma pontiaguda, Rosie, em um semblante sério e corajoso, deixara o monstro cair morto no chão. Em vingança, o outro viera ataca-la com sua lança. Rosie defendera-se com a lança posicionada na vertical, produzindo um fino baque de metais em colisão. Usou a ponta de baixo para batê-lo no queixo, e logo em seguida girara, desferindo um chute na mandíbula da fera com a perna direita. O soldado batera com a cabeça na parede de modo brutal. Aproveitando a deixa, Rosie logo enfiara a lança que portava na parte lateral do corpo do soldado-quimérico, produzindo o mesmo efeito de luz azulada tremeluzente antes de sua morte definitiva. Descravara a arma, deixando o cadáver do monstro cair, logo largando-a.

Encarou por alguns segundos os soldados que a olhavam com um misto de agradecimento e estupefação.

- De nada. - respondeu ela, prontamente, pouco interessada em saber se estavam gratos ou não. - Porque estão tão surpresos? Já estavam me vendo quando dobrei para esse corredor.

- Não, nós sabíamos que você tentaria algo - disse o soldado que desafiara o quimérico. -, mas eu, silenciosamente, disse pros meus companheiros que eu me aproximaria do inimigo para distraí-lo enquanto você chegava perto do outro para ataca-lo de surpresa. Estamos impressionados, na verdade, por sua capacidade em ter tanta facilidade em lidar com esses monstros.

- Requer rapidez, sem guarda baixa. Eles são vulneráveis às próprias armas que carregam.

- Nós também somos. - apontou o outro, mais atrás. Olhou para os demais desconcertado. - Obviamente. E vamos usar o que ela disse a nosso favor.

- Eu sabia que estavam próximos - disse Rosie, chegando mais perto dos homens fardados. -, mas fui parada por três deles. Acabei com eles e ouvi suas vozes, então peguei uma lança de um dos que matei e fui cautelosa, mas a distração foi bem-vinda, achei que reagiriam diferente.

- Muito bem, senhorita Campbell. - disse o soldado que abordara o mimético, aproximando-se da jovem. - Nós interrogamos um dos infectados e, de acordo com ele, é nesta direção que temos acesso à prisão subterrânea onde uma vítima, uma garota, segundo o infectado, está mantida em cativeiro.

"Então é verdade!", pensou Rosie, não conseguindo esconder um certo indício de surpresa na expressão. "Sem dúvida alguma, é Êmina.".

- E sobre Birmingham? - quis saber a jovem, o tom de voz, anteriormente firme e seguro, alterando-se para ansioso. - Alguma notícia?

- O pelotão conseguiu avançar contra uma horda de infectados, invadindo a passagem dos fundos que dava para o cativeiro da vítima. - informou o soldado. - Acreditamos que, neste exato momento, estão cuidando da destruição da fábrica, através dos tanques e das bombas implantadas.

O soldado de alta estatura, que conversara com um dos integrantes do grupo encarregado de resgatar o Dr. Lenox, correra em direção aos companheiros, logo fixando sua atenção em Rosie.

- E então, o que conseguiu? - perguntou Rosie. - Pela cara, devem ser boas notícias.

- E são sim. - respondeu ele, pouco ofegante. - Havia mesmo uma outra vítima aprisionada aqui.

- E quem é? - perguntou Rosie, olhando para o soldado com enorme expectativa, parecendo saber a resposta.

- O Dr. Maximilliam Lenox. - disse o soldado, lacônico, assentindo para a jovem.

Uma crescente torrente de alívio instantâneo aflorara em Rosie. Entretanto, nas circunstâncias em que se encontrava, temia não conquistar a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente, acreditando que o cientista seria imediatamente levado para uma base de apoio nas proximidades da fábrica, onde receberia verificações físicas e psicológicas a fim de detectar algum dano causado pelo sequestrador. De lá, muito provavelmente seria encaminhado para um hotel com reserva paga pelo Exército Britânico, com direito a escolta e plano de saúde grátis.

Perdida em devaneios, Rosie fora "despertada" por um dos soldados.

- Senhorita Campbell. - disse ele. - Vamos? - perguntou, tocando-a amigavelmente no braço. Os demais iam na frente apressavam os passos, evitando correrem rápido demais para não correrem o risco de serem pegos desprevenidos por algum dos quiméricos.

- Sim. - respondeu Rosie, mal contendo-se de ansiedade, assentindo rápido para o soldado, logo caminhando ao seu lado no mesmo ritmo açodado.

- Deveria apanhar a lança de volta. - sugeriu ele, olhando para ela. - A menos que queira uma das minhas armas emprestada.

- Não, obrigada. - recusou ela, a fala rápida enquanto os passos aceleravam. - Estou quase certa de que minhas mãos nasceram para empunhar lâminas. Talvez seja inato.

- Se é assim... - disse o soldado, compreendendo e deixando a frase no ar, mas preferindo não comentar sobre a nítida tensão na face de Rosie.

A equipe passara pelo início do corredor no qual a jovem viera, sem perceberem três corpos de soldados quiméricos caídos ao chão... completamente tostados e carbonizados.

                                                                                            ***

Ruínas Cinzas - 11h55. 

O sol cálido e causticante dificultava a andança de Eleonor em direção ao decrépito piso de ladrilhos verdes, no qual, em seu centro, encontrava-se o Templo de Mitra, praticamente caindo aos pedaços. A bruxa estreitou os olhos, pondo sua mão direita horizontalmente sobre a testa, caminhando devagar pelo solo arenoso e abafado daquele local definitivamente despovoado. Seu vestido de seda azul ondulava por conta da considerável corrente de vento. Mesmo com a turva visão proporcionada pelo calor, a bruxa conseguira visualizar, minutos depois de praguejar para si mesma em reclamação, uma grande marca circular enegrecida no piso.

A cada aproximação, a cada passo... a imagem se esclarecia aos seus olhos. "Ora, com certeza é ali que está!", pensou ela, andando mais depressa, afastando seus cabelos castanhos do rosto que esvoaçavam com o forte vento. Quanto mais próxima, mais ela divisava o formato da imagem, tendo plena certeza. "Uma lua minguante... foi naquele exato ponto que Abamanu usou seu talismã, a parte de trás dele.", constatou, sorrindo para si mesma e tirando a Ônix de dentro do vestido.

A quinta e penúltima parte do plano ocorreria de modo rápido e simples: Bastava pôr a Ônix no centro do símbolo, recitar o feitiço, esperar que toda a energia contida no símbolo fosse absorvida pela pedra e, por fim, voltar para o exato ponto no qual chegara ali graças à magia de teleporte.

E fizera à risca.

Eleonor colocara a pedra dentro do círculo, mais precisamente próxima à meia-lua. Tomara cuidado para não acabar pisando por acidente na marcação, tendo que sair dele na ponta dos pés. Voltou-se para frente, afastando uma mecha do cabelo, tornando a respirar profundamente em preparação. O único óbice daquele nível do plano seria a ventania, que arrastava com tudo uma grande quantidade de poeira e areia, e, tendo em vista o tamanho da Ônix obtida, seria possível que a pedra também sofresse essa influência, embora seu peso não fosse o mesmo de uma bola comum daquele tamanho.

Ignorando essa possibilidade, Eleonor estendera a mão apontando para a pedra, pronta para a realização do feitiço de absorção, seus cabelos cada vez mais esvoaçantes e inquietos em contraste com sua face séria.

- Effusio rem, Lactaverunt, Virtute introducam ad me. Accipere vobis, Pascenda insatiabilem famem. Archanus onychinos, Te potest impleat, Imple frigidam in materia. Pertinet ad omnem virtutem sip! Pertinet ad omnem virtutem sip! Pertinet ad omnem virtutem sip! - exclamara ela, sua voz em tom alto ecoando por todo o espaço.

A Ônix reagira de imediato às poderosas palavras pertencentes àquele dialeto primitivo, vibrando de modo inquieto. De repente, os contornos do círculo e da meia-lua foram preenchidos por uma luz azulada, que não tardara para se redirecionar para a Ônix, a energia movendo-se até ela feito um ectoplasma amorfo com vida própria. A energia, por fim, "entrara" na pedra, como forças sendo atraídas. O símbolo brilhava a cada vez que uma certa quantidade era absorvida, gerando o mesmo efeito, surpreendendo Eleonor que se mostrara boquiaberta.

"Incrível. Existe uma incontável quantidade de energia acumulada... tudo isso esteve impregnado por dois anos e não se apagou com o tempo, o que não é de se estranhar. Mas... o mais impressionante é a Ônix estar se alimentando dessa energia, que supera qualquer magia de nível máximo, sem exibir nenhum efeito adverso. Energia divina é aceitável e aplicável para magia primitiva de absorção, era somente isto que eu queria confirmar.", pensou a bruxa, em um misto de satisfação e espanto, sem tirar os olhos do estupendo processo.

"A cada vez que brilha, ele fornece mais energia para a Ônix absorver.", observou ela.

Pareceu que não iria terminar tão cedo. Após dois minutos de espera, o círculo que representava o emblema do império de Abamanu parara de reluzir, indicando o esgotamento e que a pedra sugara absolutamente tudo o que estava impregnado na marca.

"Mas só isso?!", pensou ela, apanhando a pedra de volta, que brilhava de modo intermitente a mesma luz azul e vibrava de modo intenso. "Achei que duraria, no máximo, uns 8 minutos. Está... vibrando muito. Acho que mais um pouco e ela racharia.". Pôs-a nas palmas das mãos juntas, esperando ela estabilizar. "Está ótimo assim. Agora é hora da parte mais difícil... Saber de que modo ela vai reagir no corpo de Hector. Aliás... como Hector, e sua licantropia que me preocupa, vão reagir à ela.".

Correra depressa, segurando a pedra com as duas mãos, em meio a uma nuvem de poeira formada por uma ventania mais forte, direcionado-se ao mesmo ponto no qual chegara ali, que não se situava à uma distância muito longa.

                                                                                              ***

Com os fuzis e metralhadoras em punho, os soldados percorriam o escuro corredor terroso que conferia acesso direto à prisão onde Êmina estaria. Alguns usavam pistolas numa mão e lanternas na outra. Rosie vinha logo atrás, seguindo os fachos cruzantes das lanternas rasgando a escuridão.

- Me diz uma coisa. - disse ela, baixinho, conversando com o soldado ao seu lado, o mesmo que a agradecera e interrogou o mimético minutos antes. - Eu... simplesmente não entendo o porque de vocês não terem pegado as três lanças largadas. É a única arma física que pode mata-los.

- Me diga você primeiro. - retrucou o soldado, atento ao seguir seus aliados. - Por que não continuou com a que usou para matar aqueles?

- Eu sou a líder desta operação. Não devo satisfações a nenhum de vocês. - disparou Rosie, olhando-o sério.

- O que está querendo provar achando que pode se defender sozinha? - perguntou o soldado, sem se render.

- Tenho meus truques. - respondeu Rosie, evasiva.

- Ah é? - indagou ele, cético e olhando-a com um sorriso enviesado. - Por que não se deu ao luxo de compartilhar isso conosco?

- Medo de ser incompreendida. - disse ela, direta. - Nenhum de você entenderia.

- O.K. - disse o soldado, sem paciência para questionar. - Ainda ponho fé nas balas de prata que colocamos nas armas.

- Continue sonhando. Não vai funcionar. - afirmou Rosie, sem olha-lo.

- São lobisomens, não são? Prata é a fraqueza de um monstro desses, pelo que pude aprender com os caçadores com quem tive contato. - disse o soldado, passeando os olhos pelo corredor, mantendo-se alerta ao seguir os outros. - Sei que trouxe armas brancas. Caçadores também usam lâminas.

- Eu não sou uma caçadora. - disse Rosie, logo rindo de leve em baixo som. - Só quero resgatar meus amigos, me reunir à eles para... destruirmos a coisa maligna que quer nossa extinção. Depois, quem sabe... eu finalmente tenha alguma paz, longe de monstros me atormentando.

O som de estática de um rádio-transmissor de algum soldado quebrara o silêncio e interrompera o seguimento. Ele pegara o aparelho, puxara a antena e levara-o ao ouvido.

- Sim... ótimo... tudo bem... O.K. Nós já estamos prestes a completar a missão. Já contactamos o grupo C a desativar o vaporizador, parece que eles enfrentaram vários daqueles monstros e... Sim, sim, está ótimo, quando terminarmos aqui, vamos organizar tudo. Acredito que o grupo B ainda esteja cuidando dos infectados lá fora... Sim, O.K, até. - desligara, baixando a antena.

- Pessoal - disse ele, voltando-se para o grupo. -, acabei de receber a informação de que o resgatado da fábrica de Birmingham é um caçador chamado Lester Cooper. Ele já foi encaminhado para uma das bases de apoio. Além disso, o General foi sedado e está passando por uma cirurgia de emergência, mas garantiu que tudo está correndo bem.

"Melhor não mencionar o plano de contaminação global. Acho que o pelotão alternativo já deve ter entrando em ação, sei lá. Só espero que impeçam o falso prefeito e protejam os rios e as redes de esgoto, que cheguem antes se for possível. Falar isso agora só os deixaria aflitos e causaria mais atraso. Edgar... deve estar junto dos outros caçadores congelando uns miméticos.", pensou Rosie, tornando a seguir em frente.

Passados poucos minutos, as luzes das lanternas encontraram o que qualquer visitante incauto consideraria como fim da linha. Arquejos de surpresa vieram de algum soldados ao depararem-se com uma parede barrando o caminho. A primeira teoria veio quase que automaticamente.

- Uma passagem secreta? - arriscou um, dando de ombros.

- Ou aquele infectado filho da puta nos enganou. - apontou outro, mais aborrecido.

- Tudo bem, vou tentar empurra-la. - disse o grandão, entregando sua lanterna a um soldado próximo à ele. Andou até a parede, estralando os dedos em aquecimento.

- Tome cuidado. - aconselhou um mais na frente, preocupado.

- Se a parede não se mover - disse Rosie, observadora. -, terá sido uma perda de tempo.

- Também está muito silencioso, o que aumenta a suspeita de que fomos enganados. - teorizou o soldado ao lado da jovem. - Acreditei que, no mínimo, conseguiríamos ouvir a voz abafada da vítima, gritando por ajuda, do outro lado da parede quando estivéssemos nesse ponto, mas não... - estreitou os olhos.

- Uma garota... foi isso que ele disse, certo? - perguntou Rosie.

- Sim. É uma amiga sua, não é? - perguntou o soldado.

- Na verdade, todos os resgatados tem uma ligação comigo. - informou Rosie. - Ela se chama Êmina, e é uma alquimista. Mas não sei se ela está capacitada para usar sua alquimia...

- Primeiro saberemos se ela realmente está do outro lado. - disse o soldado, quase aos sussurros, olhando mais fixamente para o companheiro que se preparava para empurrar a parede. - Lá vai ele...

O homem musculoso pressionara suas manzorras na rígida parede. No entanto, em uma assustadora questão de segundos, uma corrente elétrica passara por seu corpo, logo se materializando na forma de um raio azul que o atingira no abdômen e o lançara para trás violentamente.

De súbito, os soldados afastaram-se, colando seus corpos nas paredes laterais, abrindo caminho para que o pesado corpo do grandalhão caísse no chão após o inesperado efeito resultante do seu toque na parede.

- Caramba! Mas o que foi isso? - espantou-se o soldado, logo voltando-se para Rosie, o semblante estupefato. - Você... - gaguejou ele. - Você viu aquilo?

Rosie se limitou a assentir positivamente, desnorteada com o que presenciou... muito mais quanto ao que estava vendo, algo que certamente nenhum dos outros percebia. Na visão da jovem, um sigilo estava gravado na parede, brilhando uma luz de mesma cor da do raio, tal luminosidade enfraquecendo-se gradativamente. Tentou disfarçar, voltando os olhos para o corpo do soldado de grande porte caído. O abdômen do militar estava com uma ferida aberta, a farda manchando-se com sangue fresco.

- Ele está inconsciente. - constatou um deles, verificando o pulso com um dedo na veia carótida. - E parece que está tendo hemorragia interna. Precisa de cuidados urgentes! - disse ele, alarmado, olhando para os demais.

Enquanto cerca de três soldados reuniam-se em torno do ferido para levanta-lo e leva-lo para fora, Rosie irrompia por entre alguns soldados, pedindo licença em tom baixo, visando a parede com o sigilo que somente sua ótica enxergava. O símbolo apagava-se aos poucos, prestes a desaparecer por completo. Os demais homens a olhavam com um misto de descrença e preocupação.

- Ei, senhorita Campbell! - gritou o soldado que estava ao lado da jovem, passando pelos outros. - O que pretende fazer? Não me diga que...

- Sim, é exatamente isso que farei. - retrucou Rosie, sem se abater com os olhares reprovadores, caminhando determinadamente até a parede. - Eu posso tentar, parem de frescura. - disse ela, categórica.

- Podem leva-lo. - disse o soldado, assentindo para o pequeno grupo que se dispôs a prestar socorro imediato. - Disparem quantas balas forem precisas caso cruzem com aqueles monstros de novo.

- Pode deixar - disse um deles, levantando o grandalhão ao segurar o pesado braço esquerdo dele.

Rosie tocara na parede com as duas mãos, sem temer absolutamente nada, pressionando com toda a força. "Vamos lá... Ao menos até agora não sinto nada me afetando.", pensou ela, por um lado estando aliviada por não ter uma sensação perigosamente incômoda perpassando seu corpo.

Um dos soldados céticos em relação à tentativa de Rosie se aproximara, olhando-a estranho.

- Mas o que ela...

- Deixe. - disse o soldado que estivera ao lado da jovem, erguendo levemente sua mão direita para impedir seu companheiro de dar mais um passo, sua face sisuda destacada. - É nossa líder. O que custa depositarmos nossos votos de confiança?

- Por enquanto. - disse ele, irredutível.

Rosie já começava a suar pela testa, seus dentes rangidos e olhos fechados denotando a força que fazia para que a parede movesse-se.

- Ela não vai conseguir. - disse outro, virando as costas.

- O que é estranho - comentou Franz, o soldado com quem Rosie conversara minutos antes. - é ela ter tocado na parede, mas não ter sido repelida por aquele... raio. - franziu o cenho, confuso e intrigado. "De fato, ela possui truques... até demais.", pensou, a desconfiança brotando de sua mente.

Após vários segundos, a parede, finalmente, demonstrara um movimento discreto. "Como acreditávamos! Não é só uma parede qualquer, é uma passagem. O cativeiro de Êmina pode estar bem do outro lado...". Motivada, forçou mais um pouco para sua direita. "O sigilo não teve nenhum efeito sobre mim, como eu esperava. A energia residual... eu sinto ela queimar, arder profundamente em mim, mas não me sinto mal com essa... sensação. Consegui matar aqueles três monstros... de uma só vez, apenas usando ela ao meu favor. Mas agora não posso manifesta-la aqui, preciso fingir ser uma reles humana... mas o fato de eu não ter sido atingida pelo raio... só os faz desconfiarem de mim... e se reportarem isso ao General...".

Surpreendentemente, a parede movimentou-se de modo mais progressivo, deixando cair uma fina poeira do teto com alguns ínfimos pedaços de terra. Sem desistir, a jovem empurrou novamente, priorizando mais o uso do ombro direito do que o das mãos. Os soldados observavam, praticamente hipnotizados e meio boquiabertos com a persistência de Rosie, produzindo entreolhares de espanto.

Franz deixara um fraco sorriso formar-se na face ao ver o êxito da jovem concretizar-se sem grandes complicações, embora ainda estivesse em dúvidas quanto aquela facilidade.

A parede virara até ficar quase na diagonal, revelando um compartimento escuro no qual via-se uma figura espectral encolhida ao fundo, em um canto severamente opaco

Rosie visualizara bem o recinto, aliviada por ter conseguido. O vulto se ergueu rapidamente e caminhou de modo desajeitado na direção da jovem, intencionando balbuciar alguma palavra.

- Ro... - gaguejava chorosamente. - Ro... Rosie?!

Com os olhos nitidamente marejados, Rosie encarou a pessoa, logo reconhecendo a fisionomia e a voz. Os soldados se aproximaram, dois deles rapidamente entrando na cela.

- Eu ouvi sua voz... - disse Êmina, revelando-se à luz das lanternas dos demais soldados. - Ai, caramba! - praguejou, protegendo os olhos da intensa claridade. - A tocha que havia aqui se apagou faz cinco meses e aqueles vermes nunca vieram trocar! Então minha visão está hipersensível à luz e...

O súbito e forte abraço de Rosie cortara a frase da alquimista. Êmina, visivelmente emocionada, retribuíra.

- Oh, Rosie. - disse ela, derramando algumas lágrimas. - Mal posso acreditar...

- Você vai para casa, Êmina. Hoje você vai acordar deste pesadelo. - disse Rosie, ainda abraçando-a e chorando.

- Eu já acordei... assim que ouvi sua voz. - disse Êmina, agradecida.

Barulhos de passos não-humanos ecoavam ao longe. A maioria dos soldados virara seus rostos para a escuridão do corredor, na direção de onde vieram, hesitantes em levar os fachos das luzes das lanternas à frente.

Franz, alerta, preparou-se para dar sua sugestão de segurança.

- Desliguem as lanternas. - disse ele, equilibrando o tom de voz a fim de não chamar muita atenção.

- Não tem jeito, já sabem que estamos aqui. - sussurrou outro soldado, cedendo ao pedido.

As luzes das lanternas apagaram-se sequencialmente, deixando o corredor inteiro mergulhado em profunda escuridão. Êmina, por sua vez, não se inquietara, permanecendo lado à lado com Rosie. Acostumara-se naturalmente a conviver com as trevas de seu confinamento, como método de sobrevivência auto-imposto. Somente ela sabia o quanto teve de se esforçar, e o quanto sofreu para fazê-lo.

- Nenhum movimento brusco. - aconselhou Franz, agachando-se lentamente. - Pelo que consigo ouvir, eles estão andando bem devagar...

- Eles realmente sabem que estamos aqui. - disparou Êmina, sussurrando.

- O quê?! Mas... mas eles talvez enxerguem com dificuldade no escuro total. - apontou Franz, incerto pelo seu tom.

- Além de estarem usando receptáculos de quimeras licantrópicas - disse Êmina, mantendo a voz baixa. -, são soldados de uma divindade lunar conhecida como Abamanu, que é o comandante de todos os planos malignos que estamos tentando evitar. É óbvio que podem enxergar sem dificuldades no escuro, pois são predadores sem igual. Estão saboreando a vantagem de seus sentidos apurados, enquanto esperam uma reação de algum de nós, para assim poderem atacar. Mesmo com nenhuma fonte de luz, é inútil esperar que eles desistam, pensando que talvez estejamos mortos, sei lá...

- Êmina, algo me diz que você... - disse Rosie, apreensiva.

- Que eu tenho um plano? - perguntou a caçadora, interrompendo a amiga. - Ora, comigo sempre existem saídas de emergência.

- Shhh... - chiou um soldado, recuando alguns passos. Os outros mantinham-se tensos e silenciosos. - - Estão se aproximando mais rápido desta vez...

- Acho que é porque não deveríamos estar falando. - disse Êmina, elevando o tom de voz, logo virando-se e andando até a parede da cela. Tocou-a com as duas mãos, olhando para sua direita, produzindo uma luz azulada que irradiara de um símbolo alquímico e desencadeara uma explosão.

Uma grande quantidade de poeira terrosa ergueu no corredor. Rosie usou sua capa vermelha para se proteger da poeira nos olhos e no nariz. Os soldados, por outro lado, tossiam e reclamavam do ato desesperado da caçadora. Os quiméricos reverberaram seus rosnados, seus passos selvagens evidenciando-se por definitivo, em uma perigosa proximidade.

- Mas que merda! - praguejou um soldado, em voz alta,, pegando sua metralhadora, sem hesitar, logo disparando uma saraivada de balas nos lobos bípedes que corriam para atacar o grupo.

Os outros imitaram a atitude, também descarregando suas munições a todo vapor.

- Anda Rosie! Vem logo! - gritou Êmina, passando pelo buraco na parede causado pela explosão, logo tornando a correr pela passagem.

- Não se esqueça de nós! - berrou Franz logo atrás de Rosie, correndo no mesmo ritmo frenético. - Está sob nossa proteção, por ora! - virou-se perto do buraco para atirar em um dos quiméricos que entrara na cela, disparando com intensidade. O monstro, no entanto, defendia-se ora com sua lança ora com sua armadura de prata.

Infelizmente, uma das balas ricocheteara, cravando-se com profundidade na perna esquerda de Franz, sem saber se a mesma provinha do alvoroçado tiroteio no corredor ou pelas constantes defensivas do soldado quimérico por conta do metal que compõe sua lança e armadura, o qual inexistia no mundo dos mortais. Franz dera um rápido urro de dor, ajoelhando-se e queixando-se de seu estado.

Rosie cessara a corrida, voltando-se para o outro lado, preocupada com o que ocorrera ao soldado.

- Essa não... - disse ela, quase sentindo-se obrigada a voltar para realizar salvamentos.

- Rosie! - disse Êmina, a uma certa distância, com um isqueiro aceso emprestado pela jovem. - Anda, vem! A gente não tem muito tempo! Eles sabem se virar!

- Não contra esses monstros! - retrucou a jovem, pensando em voltar. O quimérico que atacara Franz entrou pela abertura, correndo a toda velocidade, parecendo ter esquecido sua lança. - Muito bem... É agora ou nunca. - fechara os olhos. - Vamos lá, concentre-se... - ergueu a trêmula mão direita.

"O que está havendo? Por que não funciona?".

Forçou um pouco mais... sem sucesso.

Com um golpe que demonstrava toda a sua impaciência, Êmina tacara sua mão direita no chão terroso, após desenhar um círculo de transmutação com uma pequena lasca de carvão que trazia consigo. Antes que o quimérico abocanhasse a cabeça de Rosie, uma parede surgira na frente, bloqueando a passagem. Sobressaltada, Rosie recuara vários passos, logo virando-se para a amiga.

- Eles ainda estão lá! Por que fez isso? - perguntou ela, aborrecida.

- E o que estava tentando fazer? - perguntou a caçadora, franzindo o cenho. - Você levantou o braço e travou de repente. O que esperava que acontecesse? Que raios saíssem das suas mãos feito mágica?

- Não, eu estava... - disse Rosie, logo deixando a frase no ar, suspirando longamente. - Olha... Não importa. Vamos dar o fora daqui, rápido. - afirmou, tornando a correr.

- Finalmente, voltamos a falar a mesma língua. - disse Êmina, também voltando a correr, mantendo o isqueiro aceso. - Não quero te recriminar, Rosie... mas é que... salvar aqueles caras poderia ter sido um erro.

- Eu entendo perfeitamente. Não quero discutir isso. - disse a jovem, desconversando. - Só quero que saiba... que Adam e Lester já foram resgatados.

- Ah... que ótimo. - disse Êmina, aliviada, apressando ainda mais o passo. Ouviu-se um baque abafado atrás, vindo da parede que a caçadora criara alquimicamente. - Aquilo não vai durar por muito mais tempo. A primeira coisa que penso é: Que final trágico para aqueles nobres e bravos homens.

- Espera aí. Está pensando que...

Êmina parara de correr de forma abrupta, entregando o isqueiro aceso para Rosie. Arregaçara as mangas do sobretudo que usava desde a fatídica noite nas Ruínas Cinzas.

- Não tem saída. - disse Rosie, olhando para o fim da linha de modo aflito.

- Não quero abusar da sorte. - disse Êmina, desenhando um círculo de transmutação na parede de pedra. - Posso estar meio enferrujada, mas o que temos ao nosso dispor... acho que dá para o gasto. - estralou os dedos ao esticar os braços. Olhou enviesadamente para Rosie. - Afaste-se.

- Êmina... - disse Rosie, recuando vários passos conforme o pedido da caçadora, a voz tensa. - ... sabe que cometemos um péssimo erro. - fez uma pausa, olhando para trás. - Nós deixamos aqueles homens... morrerem.

- É, eu sei, uma pena. - lamentou ela, logo pondo a mão no símbolo com toda a força, fazend-o brilhar, mantendo uma distância menos segura da qual Rosie estava. Por fim, a parede de pedra explodira, levantando uma enorme poeira. Rosie, novamente, protegera-se com a capa vermelha, consequentemente tendo a chama de seu isqueiro apagada.

A fumaça aliada à poeira meio cinzenta amenizava aos poucos, mas o tempo urgia de modo a não permitir mais nenhuma espera prolongada.

Êmina saíra pela abertura feita pela explosão. Rosie correra atrás dela, após guardar o isqueiro em um dos bolsos presos no seu cinto de utilidades.

A parede provinda da alquimia de Êmina estava rachando-se devido à insistência dos soldados quiméricos que tentavam destruí-la, o som dos baques aumentando de volume a cada segundo.

As duas depararam-se com uma longa escadaria de concreto, cujos degraus subiam diretamente para a saída da área subterrânea da fábrica.

- E aí, o que estamos esperando? - perguntou Êmina, ofegando e sorrindo fracamente para Rosie.

                                                                                                 ***

Eleonor entrara de modo apressado na sala, abrindo a porta com grande estardalhaço, não tardando a se aproximar com rapidez de Hector e Alexia, ambos antes pacientemente andando pelo recinto, no aguardo pelo retorno da bruxa. A vidente a olhara com expectativa contagiante.

- Demorei demais? - perguntou Eleonor, fitando ambos.

- Não tanto quanto imaginávamos. - disse Hector, andando em direção à poltrona. Tirara o sobretudo, sentou-se e reclinou-se no assento. - Venha, vamos começar logo... aliás terminar o plano.

- Conheço essa cara. - disse Alexia, não gostando da forma que a sua mentora parecia se portar diante daquele ponto alcançado. - Por favor, logo agora que chegamos nessa parte, você não pode...

- A pedra reagiu bem ao feitiço. - disse a bruxa, interrompendo-a. Tirou-a de dentro do vestido, a mesma ainda brilhando de modo intermitente.

- Por que... ela está desse jeito? - perguntou Aexia, estranhando.

- Havia uma alta concentração de energia na marca, eu intensifiquei o feitiço para que a absorção fosse total. - disse a bruxa, segurando o artefato com extremo cuidado. - Por um momento eu achei que a quantidade não fosse o bastante para a Ônix suportar. Mas felizmente ela absorveu todo o conteúdo. O fato de estar brilhando assim indica que ela atingiu seu limite, obviamente por conta de seu tamanho. - andou devagar até Hector, trazendo a pedra com as duas mãos. - Caso a marca possuísse energia acima do limite da pedra... a Ônix racharia até se despedaçar.

- E existe algum outro tipo de Ônix que suporte uma grande carga de energia? - perguntou Alexia, curiosa.

- Uma que seja maior do que esta? - quis saber a bruxa, olhando para a pedra.

- Sim. - respondeu a vidente, assentindo.

- Existe. - confirmou a bruxa, logo olhando para Alexia. - No entanto, é extremamente rara. Foi assumida como uma lenda passada de geração à geração quando o uso da Ônix se tornou popular entre as bruxas mais alvejadas pela Inquisição. A Ônix suprema, segundo alguns manuscritos ocultos, muito provavelmente é única e difícil de obter. Boatos contavam que ela já foi vista nas mãos de leiloeiros desinformados que a vendiam como um amuleto de boa sorte, o que fez com que muitos acreditassem de que havia várias delas espalhadas pelo continente, algo que sempre frustrava colecionadores e magos que desejavam tê-la.

- Sim, mas... - disse Alexia, ainda não satisfeita. - ... você faz alguma ideia de onde ela pode ter sido escondida ou se há como saber com algum mago sobre uma localização secreta?

- Impossível. - disse Eleonor, lacônica. - Com tantos boatos confundidos com verdades, eu não tentaria isso, muito menos sem saber do que ela pode ser capaz de fazer. Quando se mergulha fundo na bruxaria, ao passo em que você reúne várias informações sobre coisas poderosas, vai ficando mais difícil discernir o que é real e o que é mito. - afirmou ela, voltando-se para Hector.

- Lendas são lendas. - disse Hector, com firmeza. Olhou para Eleonor. - E, é claro, não perdermos mais tempo virando o mundo a procura de uma Ônix mais poderosa... quando já temos a que é mais adequada ao meu corpo.

- É o que vamos descobrir agora. - disse Eleonor, baixando a pedra em direção ao abdômen. - Com todo o respeito, eu... gostaria que levantasse a camisa. - dera um sorriso enviesado à ele. - A Ônix não é intangível, a menos que seja manipulada por uma força telecinética que a insira e a retire.

Suspirando, Hector cedera ao pedido, levantando sua camisa preta até o torso, deixando a barriga à mostra.

- Ótimo. - disse Eleonor, sem ocultar a forte preocupação, algumas mechas do seu cabelo castanho pendendo.

- Sei como se sente. - disse Hector, mostrando-se corajoso. - Eu vou sobreviver. Minha licantropia está seguramente sob controle.

- Aí que está o problema. - disse a bruxa, parecendo relutante. - Sem conhecimento prévio dos efeitos de uma energia divina armazenada numa Ônix... dentro de um corpo humano... os resultados podem ser fatais. Alexia e eu apostamos na possibilidade de você enlouquecer e se transformar, pondo nós duas em perigo, porque caso você entre num estado de descontrole emocional, nem mesmo minha magia vai conseguir para-lo. Além das sequelas... que tanto podem surgir de repente ou depois de um bom tempo, dependendo dos efeitos iniciais que a Ônix vai impor sobre você.

Alexia sentia suas mãos gelarem de nervosismo, discretamente recuando alguns passos a fim de obter uma distância segura, por via das dúvidas.

- Aguente firme, Hector. - disse a vidente, torcendo pelo amigo.

- Obrigado... Alexia. - agradeceu o caçador, confiante, assentindo para ela.

Eleonor, segurando a vibrante pedra, já mostrava-se preparada.

- Saiba que estamos prontas... para o que der e vier. - disse ela, aproximando vagarosamente a pedra ao corpo do caçador, prestes a recitar o último feitiço para aquele plano. - Augurium corporis. Augurium lapidem. Uniendis. - por fim, pusera a pedra, a mesma adentrando no abdômen.

O caçador começava a dar os primeiros sinais negativos da dolorosa absorção, como gemidos agoniantes, dentes rangidos, olhos fortemente fechados e suor frio e profuso.

Hector queria debater-se na poltrona, desconfortando-se ligeiramente após a Ônix finalmente ter entrado em seu corpo, na região abdominal. Os gemidos tornavam-se grunhidos de raiva...

Eleonor não parecia tão convencida acerca do que aguardava ver, afastando-se lentamente.

De súbito, Hector inclinara-se para frente, transformando-se instantaneamente ao dar um selvagem rugido lupino, suas presas já crescidas e as pupilas de seus olhos brilhando uma luz azulada. O descontrole, como esperado, viera mais assustador do que se imaginava.

Estremecida, Eleonor procurou manter mais distância. Alexia encontrava-se próxima à porta.

- Hector! Por favor, aguente. - dizia ela, tentando convence-lo a se acalmar.

O caçador parecia estar preso à poltrona, as presas à mostra, os olhos fechados apertadamente. Seus rosnados eram altos, parecendo preceder um furioso ataque a qualquer momento. Olhou para Eleonor, mantendo a expressão descontrolada.

- Hector... Pode nos reconhecer? - perguntou ela, tentando uma aproximação. - Você... - apontou para ele. - ... entende minha língua? - apontou para si mesma. - Entende o que eu estou lhe dizendo?

- Porque está agindo como se ele tivesse virado um troglodita acéfalo? - questionou Alexia, franzindo o cenho para a bruxa.

- Preciso confirmar se a cognição humana dele não foi afetada. - justificou ela, ainda chegando perto com cuidado. - Lembre-se: Considerar todas as possibilidades. Demência e descontrole foram os primeiros efeitos que acreditei que iriam surgir. Mas... ele parece reconhecer o espaço à sua volta... até aí tudo bem.

Hector ofegava pesadamente, alterando a expressão furiosa para uma mais tristonha, fechando os olhos. Um detalhe animador logo fora percebido pela bruxa: As presas começavam a diminuir gradualmente e a face tornava-se humana de novo no mesmo ritmo.

- Hector? - perguntou a bruxa, entristecendo o olhar, mas deixando-se sorrir de leve. - Como se sente?

O caçador demorara a responder, tremendo como se estivesse com frio.

- Ele não parece bem. - disse Alexia, apreensiva quanto aos efeitos. - Também pensou que ele chegaria a ter essa tremedeira? Ele parece que vai convulsionar a qualquer momento.

- Está muito gelado. - disse Eleonor, ao tocar na testa de Hector. - Não... não... - desesperou-se.

- O que foi? - perguntou Alexia, já mais tranquila sabendo que um ataque repentino estava fora da lista.

- A temperatura do corpo dele... - disse ela, tocando as partes do rosto do caçador. -... está abaixo de 27 ºC! Uma queda muito brusca dessas...

- Significa que está entrando em estado de hipotermia! - disse Alexia, logo aproximando-se com rapidez. - Se continuar caindo, ele...

- Não, não vamos pensar no pior agora, Alexia, por favor. - disse a bruxa, passando a mão pelo rosto em preocupação. - Jamais vou me perdoar se caso ele morrer agora... logo agora! - tocara-o nos ombros, aproximando seu rosto ao dele. - Hector... ouça-me: Você está bem. Seguro e conosco. Volte para nós. Seja forte.

- Isso é estranho... - disse Alexia, com os dedos indicador e maior na veia carótida direita do caçador, detectando uma diferença surpreendente. - Ele... parece estável. O pulso está normal.

- O quê? - indagou a bruxa, virando o rosto para aprendiz. - Alexia, você tem certeza?

- É claro que sim, acabei de verificar. - disse ela. - Mesmo parado e sentado, o metabolismo dele não tem nenhuma falha, apesar da queda de temperatura.

A respiração de Hector retomara o ritmo adequado. Aos poucos, abria os olhos.

- Hector! - disse Eleonor, feliz pelo retorno, tocando no rosto do caçador. - Olhe para mim... fale comigo, diga alguma coisa.

Suavemente, Hector tirara a mão da bruxa sobre seu rosto, logo levantando-se e dando alguns passos.

- Inacreditável. - disse Alexia, baixinho, admirada ao ver o caçador mostrar-se vigoroso mesmo com uma temperatura corporal abaixo do normal. - Hector é um caso inédito... de alguém que mantém todas as funções vitais com uma hipotermia de terceiro grau.

- Definitivamente. - aquiesceu Eleonor, abrandando a aflição. - Com uma ajudinha extraordinária, é claro.

O caçador dera mais passos á frente, a face endurecida e sisuda.

- Ei, ei. - disse Eleonor, pondo-se na frente dele, sorrindo de leve. - Como está se sentindo?

- Mais forte... do que jamais me senti antes. - confessou ele, olhando-a. - Eu estou bem, não se preocupe. A dor cessou. De início, senti um frio que parecia querer me esmagar. Mas agora... ele não é mais um incômodo, tornou-se parte de mim. Eu preciso ir. Não está tentando me impedir... está? - perguntou ele, olhando-a com desconfiança.

- Não, é claro que não. - disse ela, balançando a cabeça. - Quero que vença. Alexia e eu vamos estar torcendo por você. Faça o melhor que puder.

- Eu vou mata-lo. - disse ele, de modo frio. - É o melhor que devo fazer.

- Sim... - disse Eleonor, concordante. - Mate-o. Mas lembre-se: Há um limite de tempo para a energia enquanto ela está dentro da Ônix.

- E quanto tempo eu tenho? - perguntou ele.

- Apenas meia-hora. - respondeu a bruxa, olhando-o fixamente, com seriedade. - Não mais do que 30 minutos. Procure uma forma de destruí-lo dentro deste tempo.

- Está bem. Obrigado pelo aviso. - disse o caçador, visando a porta e andando até ela. - Farei bom uso.

No entanto, a bruxa o segurara pelo braço de modo suave e amistoso.

- Ahn... Espere... - disse ela, fazendo Hector virar-se para sua frente. Tocara a parte de trás da cabeça do caçador, aproximando seu rosto ao dele... culminando em um singelo beijo.

Hector a olhara, sem entender.

- O que foi....

- Meu desejo de boa sorte. - disse ela, interrompendo-o com a fala rápida. - Acabe com ele.

Era nítido o esforço que Hector fazia para sorrir para expressar sua gratidão, sendo dominado pela essência frígida da energia divina do deus lunar que pulsava dentro de si. Tornou a andar em direção à porta... mas desaparecera em questão de milissegundos.

Alexia olhara para os cantos, perdida, sem ter percebido direito como o caçador sumira tão velozmente.

- Ué, mas... Onde ele está? - perguntou ela, confusa. - Ele estava bem aqui na sala... e sumiu feito um fantasma.

- Ele se teleportou. - explicou Eleonor, fitando o nada, pensativa e mais calma. - Uma habilidade comum de entidades divinas.

- E se houver algum risco de Hector se tornar igual àquele monstro? - perguntou Alexia, ainda afligida pelas possibilidades negativas.

- Não, isso não vai acontecer. - disse a bruxa, otimista. - A menos que... - olhou para aprendiz de modo sério. - ... ele se disponha a sofrer algum tipo de manipulação, mas a quantidade de energia que ele tem já descarta qualquer chance de isso ocorrer. Já vimos que a licantropia não assumiu todo o controle, o que já é bem aliviador. Se Hector estivesse em pleno período de crise, com seu lobo interior prestes a despertar a qualquer hora, o risco aumentaria a um nível muito mais perigoso. - fez uma pausa, suspirando pesadamente. - Agora é esperarmos que ele volte... trazendo a carcaça de Mollock até nós.

                                                                                              ***

Durante a subida, a escada dava a impressão de ser interminável. Com alguns tropeços nos degraus, Rosie e Êmina avançavam para chegarem a tempo à porta que levava de volta à superfície.

- Você está bem? - perguntou Êmina, olhando para a amiga, alguns degraus atrás dela.

- Bem cansada. - respondeu Rosie, pausando a subida apressada, ofegando bastante. Logo retomou o percurso.

Após cerca de 8 minutos, finalmente alcançaram o topo da escadaria. Êmina, prontamente, forçou a maçaneta redonda da porta de madeira meio bege meio amarela, no formato em arco. Estava trancada.

Rosie, com um pé no último degrau, observava com ansiedade enquanto reavia o fôlego.

- Acho que já chega de alquimia explosiva por hoje. - disse ela, temerosa. - Não aqui, certo?

- Bem, vamos pelo método tradicional. - disse a caçadora, recuando, cautelosamente, uns rês passos. Ergueu a perna direita, aplicando um chute violento no centro da porta, destroçando a madeira velha em vários pedaços. Saíram, logo deparando-se com a chamada área cinzenta da estrutura, mais precisamente no limiar de um labirinto de corredores meio escuros.

- O quê? Ainda estamos aqui? - perguntou Rosie, desiludida, vasculhando o espaço com os olhos. - Eu pensei que a escada nos levaria diretamente para o lado de fora.

- Menos papo e mais agilidade. Anda, vem. - disse Êmina, andando depressa, quase correndo, à procura de uma saída. Ambas adentraram em um dos corredores, sem temer o que encontrassem pela frente.

- Êmina, espera! - chamou Rosie, parando de correr subitamente. - Não adianta.

A caçadora cessara a corrida, virando-se para trás, logo andando em direção à jovem.

- Não adianta o quê, Rosie? Nós precisamos sair daqui, achar logo uma saída! - disse ela, alarmada. - Você me parece mais preocupada com o sacrifício daqueles soldados... - aproximou-se dela. - Mas, olha, me escuta. - tocou-a no ombro, a expressão carregada de seriedade. - Estamos no meio de uma guerra. O que você espera além de sacrifícios? Nem todos se salvam, Rosie. Mas sendo honesta com você, eu não me sinto nem um pouco culpada. Não foi por causa confinamento que você acha que me tornou uma pessoa fria e insensível, mas sim porque eu aceitei a decisão daqueles homens.

- Do que você está falando? - perguntou Rosie, parecendo perdida.

- Eles aceitaram ficar e lutar por puro instinto ao invés de se juntarem a nós duas. Foi uma escolha deles, não nossa. - explanou ela, firme no tom.

- Ainda assim, se algum soldado for averiguar aquele corredor - disse Rosie, não abandonando o nervosismo. -, caso haja um sobrevivente, ele vai saber que eu, a líder do pelotão, abandonou seus companheiros e fugiu com a vítima sem informar aos outros do que aconteceu, sem nem se dar ao trabalho de saber se havia uma grupo mais próximo dali para prestar reforços. - passou as duas mãos no rosto, em clara inquietude. - Não vou julgar você, Êmina...

- Vou repetir, Rosie: Não foi nossa escolha, foi deles. - insistiu ela, mostrando apoio à amiga. - Eu marquei aquele círculo de transmutação para ser usado justamente no dia em que eu seria resgatada, ou quando eu fosse transferida para uma outra fábrica, eu tentaria fugir nestas duas circunstâncias, e nelas o sigilo seria desfeito caso a parede virasse.

- Espera, então... - disse Rosie, olhando-a com curiosidade. - ... aquele sigilo bloqueava sua alquimia...

- Desde o dia em que fui jogada naquela cela feito um animal. - confirmou ela, assentindo. - Abamanu sabia das minhas habilidades, então ordenou que aquele sigilo fosse gravado previamente na parede. Ela inibe alquimia humana. Esta foi a primeira fábrica construída. Fiquei por poucos dias em uma sala branca qualquer, enquanto o resto ainda estava sendo criado. Depois fui levada para aquela masmorra, onde minhas únicas companhias eram ratos, baratas, uma lasca de carvão e uma tocha que durava um mês inteiro e depois apagava. Ficava mergulhada na escuridão esperando que trocassem. Enfim... chega de falar de mim. - fez uma pausa, relanceando o cinto de utilidade de Rosie. - Pensei que o Exército te ofereceu um rádio-transmissor, mas só vejo um...

- Ah sim. - disse Rosie, olhando para seu cinto. - Na verdade, é...

Um rugido estremecedor cortara a frase da jovem inesperadamente.

Estremecidas, ambas olharam para o fim do corredor que levava para outros dois á esquerda e direita, vendo um dos soldados de Abamanu ser arremessado com violência pelo corredor da esquerda. Correram para que pudessem ter conhecimento do que causara aquilo, dobrando para o corredor à direita.

- Não pode ser... - disse Rosie, em voz baixa, ficando boquiaberta com o que vira.

Êmina tivera a mesma reação, mal conseguindo respirar.

Hector, completamente sob o efeito da energia divina fixada na pedra Ônix dentro de seu corpo, andara em direção a outro corredor daquele labirinto, localizado à esquerda. No entanto, não exatamente um corredor, mas uma pequena área semi-quadrada, praticamente uma sala de visitas, cujo lado direito resumia-se em uma saída em diagonal para uma direção misteriosa, um corredor relativamente escuro.

Rosie e Êmina assistiam escondidas na parede um verdadeiro espetáculo de brutalidade.

Uns dois soldados quiméricos se encontravam na área, portando suas lanças de prata, rosnando contra o caçador.

Hector andava até eles, logo usando uma supervelocidade e tomando de um deles sua lança, em seguida cravando-a no corpo do quimérico por trás dele. O lobo bípede irradiara uma luz azul pelos olhos e boca antes de sucumbir. O outro viera tentando perfura-lo, empurrando-o contra a parede.

O caçador segurara a ponta vermelho da lança - o cristal vermelho - tremulamente, a mesma estando poucos centímetros próxima de seu olho direito, por pouco não atingido.

Hector forçava a lança para cima, ao passo em que o metal incrivelmente estava dobrando, surpreendendo seu portador.

- Isso está mesmo acontecendo? - perguntou Êmina, mal acreditando no que via.

- Por incrível que pareça... é bem real. - disse Rosie, mantendo o tom de voz baixo, fitando Hector totalmente embasbacada.

Por fim, o caçador aproveitara a lança retorcida, jogando-a para o lado, logo em seguida estendendo uma mão e empurrando o soldado quimérico para longe com telecinesia, fazendo-o colidir de costas com a parede.

Impressionando ainda mais as espectadoras, o caçador tornara a andar, mantendo o braço direito estendido, mas logo virando a mão e fechando-a com força. O soldado urrara em alto som, sendo rapidamente expulso de seu receptáculo graças à enorme força exercida por Hector. Rosie e Êmina arquejaram baixinho ao verem uma sombra espectral no formato de um lobo bípede com olhos azuis ser ejetada do corpo da quimera, logo a mesma "evaporando" no ar, ambas testemunhando um exorcismo instantâneo e eficaz.

- Mas...  o que... foi isso? - disse Êmina, encostando-se na parede, a face travada de espanto.

Rosie também fizera o mesmo, sem saber o que pensar a respeito.

- Que loucura. - disse Êmina. - Pelo visto, nem mesmo você que, provavelmente esteve com ele durante o tempo em que estive confinada, sabe do que está acontecendo.

- Não faço a mínima ideia. - respondeu Rosie, o olhar vago.

Um forte tremor reverberara, abalando nocivamente a estrutura, deixando alguns pedaços consideráveis do teto e poeira caírem com barulho no chão.

- O que foi isso? - perguntou Êmina, assustada, olhando para cima. - Parece que vai tudo vir abaixo.

- Parece que o Exército já iniciou o ataque armado contra a fábrica. - disse Rosie. - Estão tentando destruí-la com tiros de tanques.

Passos foram ouvidos por Êmina do corredor de onde vira Hector sair. Arregalara os olhos, ficando mais próxima de Rosie, logo agachando-se com urgente rapidez, sacando a lasca de pedra ao desenhar o círculo de transmutação.

- Rosie, se abaixa! - exclamou ela, terminando o desenho em questão de segundos, logo pondo suas duas mãos no chão empoeirado e cinzento. O símbolo alquímico brilhara, dando origem à uma parede de concreto de tamanho médio que protegia e ocultava as duas, com o objetivo de não serem vistas pelos quiméricos.

- Mas o que... - disse Rosie, parando a frase no meio, sem saber exatamente o que pensar a respeito da atitude de desespero da caçadora. A jovem ficou agachada e colada lado à lado com Êmina.

- Shhh! - chiou a caçadora, pondo o dedo indicador na frente da boca. - Fiz isso para não sermos vistas. O tremor não me impediu de ouvir os passos dos monstrengos vindo até aqui. A única coisa que quero saber agora é o que diabos deu no Hector? O que ele está fazendo aqui? De onde ele arranjou recursos para fazer aquilo?

- Acredite, também quero muito saber. - disse Rosie aos sussurros, logo olhando para a parede criada alquimicamente. - Esperava algo um pouco mais maior. - virou o rosto para a amiga. - O que houve?

- A falta de prática leva ao reaprendizado. - afirmou ela, ofegando em cansaço. - Em outras palavras, os dois anos que perdi foram o bastante para minha alquimia ficar mais fraca. Quero sair viva daqui para correr atrás do prejuízo, mesmo que isso leve mais dois ou até cinco anos.

Mais um tremor seguido de vários sons de explosões simultâneas.

Uma razoável porção de poeira e pequenos fragmentos de concreto caíam por cima das duas, que abaixavam as cabeças, sobretudo Rosie protegendo-se com o capuz.

- Você me deve muitas explicações. - disse Êmina, afastando os desgrenhados cabelos pretos do rosto. - Ao menos não vou ser a última saber...

Outro tremor cortara a frase da alquimista.

Hector olhara de modo frio para os dois soldados que aproximavam-se, armados com suas lanças disparadoras. O caçador erguera a mão direita para frente, o semblante de fúria, logo aplicando mais um golpe fatal, seus olhos brilhando a luz azulada. .

Ambos os quiméricos tiveram suas armaduras e corpos transformados em gelo sólido em velocidade surreal, sendo neutralizados antes que pudessem efetuar algum ataque contra o caçador. Em segundos, seus corpos gelificados fragmentaram-se feito vidro estilhaçado tilintando ao cair.

Mais dois deles surgiram, vindos do corredor escuro. Um deles atirara um raio vermelho com provindo da ponta da lança.

Hector, com um reflexo aprimorado, defendera-se com uma só mão, sem sentir nenhum dano significativo, com uma fumaça exalando de sua mão.

Insistentes, os soldados tornaram a disparar com mais fúria. Mantendo-se na defensiva, Hector seguira em frente, com os braços estendidos e as palmas à mostra. Os raios atingiam suas mãos sem causarem nenhum arranhão, apenas faíscas e fumaça.

De súbito, ao ganhar certa aproximação com os oponentes, movera-se até eles de modo superveloz, ficando no meio deles. rapidamente, tocara suas cabeças lupinas, aplicando a morte instantânea ao fazer os dois quiméricos irradiarem luzes azuis de seus olhos e bocas, seus corpos tremeluzindo freneticamente.

Deixara-os caírem no chão, logo imergindo nas trevas do corredor em passos relativamente afoitos.

Um esbaforido soldado do Exército Britânico dobrara para o corredor, onde avistou duas jovens garotas agachadas perto de uma parede mal feita e repleta de "rugas". Correu na direção delas, sem titubear. Rosie percebera a presença do rapaz, inicialmente olhando de modo enviesado, logo virando o rosto para ele.

- Senhorita Campbell! - gritou ele, chegando mais perto. Visualizou Êmina - Você é a resgatada?

- O que você acha? - perguntou ela, levantando-se devagar.

O soldado balançara a cabeça negativamente com os olhos fechados de modo rápido, ignorando a pergunta da caçadora.

- Mais da metade do pelotão já saiu da fábrica. Só restam mais alguns... e vocês duas! - preparou-se para ir, pegando na mão direita de Êmina com delicadeza para que ela pudesse acompanha-lo. - Nós temos que ir, depressa.

Rosie, contudo, mostrou-se resistente, inerte no mesmo ponto, encarando o soldado de forma séria.

- Com todo o respeito, mas... eu prefiro ficar. - disparou ela, sem medo, com mais um tremor sucedendo sua fala. - Ainda há mais alguém que precisa ser salvo.

- Rosie... - disse Êmina, a voz trêmula e a face nervosa. O rosto da caçadora estava sujo de poeira e terra.

- Afinal, quem mais está aqui, além daqueles lobisomens cinzentos? - questionou o soldado, soando irritado. - Campbell, por favor, venha conosco, as duas vítimas já foram salvas, os infectados já foram neutralizados, agora chegou a hora desta fábrica desmoronar. Mas eu quero que me responda: Quem mais está aqui? Até onde eu sei, tinha-se certeza de que somente duas vítimas estavam confinadas.

- É algo bem particular, devo dizer. - disse ela, sacando de seu cinto o inconfundível detector de atividades sobrenaturais.

- Ei, é um de novo modelo, não acredito que foi autorizada a portar um desses. - apontou o soldado, fitando-a desconfiado.

- E não fui. - retrucou Rosie, apertando alguns botões e levantando a longa antena do aparelho. Os barulhos psicodélicos e baixos do objeto soavam irritantes para qualquer ouvido, mas, de fato, era um mal necessário. O medidor - semelhante ao velocímetro de automóveis - exibia uma contagem de 500 EMF (Medidor de Campo Eletromagnético), uma leitura acima do esperado.

Rosie deu alguns passos vagarosos, olhando para o aparelho.

- Senhorita Campbell, por favor, venha, salve-se. - insistiu o soldado.

A partir daquele momento, vários pedaços grandes de concreto vindos do teto caíam - seguidos de bastante poeira - aos montes com baques estrondosos.

- Rosie, é melhor vir logo! Por favor. - disse Êmina, tentando desesperadamente convence-la. - Se não quiser que uma pedra esmague sua cabeça!

- Já disse que vou ficar! - disse ela, ríspida, dando a volta na parede e indo em direção á pequena área onde o caçador estava.

Êmina fizera a mão do soldado largar a sua.

- Me desculpa... - afastara-se dele em passos apressados, andando para trás. - ... mas eu preciso ir atrás dela! - por fim, seguira em frente.

- Mas o quê? - perguntou o soldado, estupefato. Sem outra alternativa, grunhira em fúria e resolvera correr dali o mais veloz que podia, praguejando inúmeras vezes.

As leituras do aparelho foram ficando mais insanas, próxima do limite que era de 800 EMF.

"Toda essa energia irradiando... está vindo de Hector!?", pensou ela, logo deparando-se com o local vazio. Apenas cadáveres de quiméricos, sendo dois deles reduzidos à gelo quebrado.

Infelizmente, Hector já não se encontrava mais ali, para a frustração imediata da jovem.

Êmina viera logo atrás, alcançando a amiga. Rosie continuava com as leituras, andando até a abertura - onde estavam dois quiméricos mortos -  que levava a um escuro corredor. O ponteiro do medidor tremia de modo estranho, indicando instabilidade. Poucos segundos depois, o aparelho começara a esquentar... à medida que ponteiro trêmulo ia para os 800 EMF. Nervosa, Rosie se viu hipnotizada pela leitura que chegava ao nível máximo daquela tecnologia.

Êmina passeava os olhos pela área, logo voltando sua atenção à Rosie.

- Rosie você tem mesmo plena certeza de que quer fazer isso? - perguntou ela, desconvencida.

A jovem de capuz e capa vermelhos permaneceu silenciosa, olhando fixamente para o medidor frenético, sentindo o aparelho aumentar consideravelmente de temperatura na sua mão esquerda. Passados alguns segundos, uma fumaça leve e esbranquiçada começava a emanar do objeto, ao passo em que o louco ponteiro já encontrava-se nos 800 EMF e, obviamente, não passaria além disso.

Subitamente, pegando-a de surpresa, o aparelho explodira na sua mão. Rosie, alarmada, largara-o no mesmo instante, dando um rápido grito de susto e recuando alguns passos.

O detector caíra no chão, exalando fumaça de odor incômodo e faíscas.

Êmina assistira, perplexa.

- Isso foi... intenso. - afirmou ela, olhando para Rosie.

- Hector entrou nesse corredor, é óbvio. - disse ela, preparando-se para ir. No entanto, a caçadora puxara-o de leve pelo braço.

- Vai com calma, Rosie, Um passo de cada vez. Esse lugar pode estar caindo aos pedaços, mas eu prefiro ir com você, venha o que vier, aconteça o que acontecer.

- O que você quer dizer com isso? - perguntou Rosie.

- Talvez não seja só Hector. - teorizou ela. - Esse troço pifou porque provavelmente estava detectando várias energias atuando ao mesmo tempo. Emanações simultâneas. - fez uma pausa, afastando os bagunçados cabelos. - Você sabe para onde esse corredor vai dar, não é? Quem quer que esteja no lugar para onde Hector foi... - deixara a frase no ar.

- Eu conheço essa área... - disse Rosie, rememorando algo. - ... antes de sair com o pelotão, estávamos reunidos no QG, discutindo nossos planos... na planta da fábrica em cima da mesa, eu vislumbrei esta sala, um cubículo meio desajeitado... que dava acesso ao corredor longo, vi uma linha escura... - olhou para Êmina, decididamente confiante. -... que terminava em um quadrado maior. A sala de controle.

- Se for o que estou pensando... - disse Êmina, empolgando-se de modo nervoso.

- Sim. - confirmou Rosie, apresentando uma face desalentada. - Ele veio até aqui somente para confrontar Abamanu. Com certeza para tentar mata-lo.

Uma revisitação torturante lhe veio como uma sequência incessante de imagens de um filme de horror. Um arrepio lhe dizia que o obscuro futuro da raça humana sob um nefasto governo estaria a um passo de se concretizar, e qualquer coisa que fizesse para intervir com a intenção de impedir o que se pensava ser inevitável seria arruinada pelas armadilhas do destino. "Tudo parece conspirar para que eu fracasse. Determinaram que metade da fábrica iria explodir quando os resgates fossem reportados para as equipes de apoio... que depois repassariam a informação para a armada. Mas ainda estou aqui... se aquele soldado conseguir escapar ileso, talvez repensem sobre detonar as bombas, não são loucos de fazerem isso sabendo que há vidas humanas aqui dentro.".

"Mesmo que junte todas as suas forças e recursos para impedir, mesmo que tente mudar o curso de qualquer evento... É exatamente aqui onde tudo irá terminar."

As palavras ditas por Abamanu naquele pesadelo em forma de futuro inevitável ecoavam na mente da jovem. Sem aturdir-se, Rosie respirou fundo.

"Eu posso. Eu devo!", pensou ela, encorajando-se.

Um novo tremor estremecera as bases. Um grande pedaço do teto da saleta desabara, prestes a cair sobre Êmina. Por reflexo e instinto de heroísmo, Rosie pulara frente à ela, pegando-a pelos ombros e fazendo seus corpos serem jogados para outro lado. O concreto caíra , quebrando-se em vários pedaços.

- Obrigada. - disse Êmina, olhando de modo espantado.

- Melhor você sair daqui logo enquanto esta área ainda está com partes inteiras, eu preciso ir! - disse Rosie, levantando-se depressa e correndo para abertura.

- Rosie, espera. - disse a caçadora, com urgência. - Me deixa ir com você. - afirmou, em tom exacerbadamente sério. - Eu tenho um plano. Um ás na manga que pode servir como atraso para Abamanu.

- Se você diz... Está bem, vou confiar em você. Vou apostar nessa vantagem. - disse Rosie, assentindo para ela, permitindo que a caçadora a acompanhasse. Leves tremores e baques podiam ser ouvidos do corredor sombrio. Rosie virara o rosto para ele, incerta.

- Anda, vem logo. - disse Êmina, sendo a primeira a correr e entrar. - Antes que a passagem seja bloqueada pelos escombros! - sua voz já soava cavernosa àquela distância.

- É tudo ou nada. - disse Rosie para si mesma, pondo-se a correr o máximo que conseguiria, mergulhando na escuridão do corredor tenebroso, por pouco não sendo atingida por pedaços ainda maiores do teto, alguns deles esmagando brutalmente os cadáveres dos soldados quiméricos.

                                                                                                  ***

Na sala de controle, Áker entrara em nervosismo incontrolável enquanto ouvia um alerta de um dos seus aliados que provavelmente estaria do lado de fora da fábrica, temeroso quanto ao desanimador fato. Áker retirara com rapidez o amuleto do bolso de seu smoking e colocara na palma da mão direita. Aproximara-o à boca para proferir a resposta.

- Khétro, ouça-me. - disse ele. - Não sei onde exatamente está, mas... sugiro que fuja daí o mais rápido que puder ou volte para o palácio. - logo em seguida guardara o objeto.

"Maldita seja!", pensou ele, enraivecido ao juntar as mãos e coloca-las diante dos lábios em preocupação, imaginando o modo como a péssima notícia se desenrolou. "Era impossível... Não havia a menor chance de escapar! Como ela conseguiu, afinal?".

Andou de um lado para o outro, temente às imprevisibilidades.

Para sua decepção, Sekhmet conseguira se desvencilhar dos efeitos nocivos do sigilo que a mantinha neutralizada, muito devido ao poder de seu amuleto combinado à energia residual do emblema de Yuga. A deusa recorrera à uma improvável fusão energética que possibilitaria sua fuga em um curto período de tempo. Com os dois objetos em mãos, Sekhmet optara pelo movimento audacioso. Pusera ambos à sua frente, dentro da marcação, utilizando suas forças para ativar o poder de absorção deles, ainda que tal habilidade estivesse enfraquecida. Ao invés dos objetos serem esvaziados energeticamente pelo sigilo aceso, eles, prontamente, tiveram suas forças de absorção ativadas e sorveram a quantidade de energia de Sekhmet retirada pela marcação. Vendo o sigilo perder sua atividade aos poucos, a deusa comemorara sua vitória perfeita com uma mefistofélica gargalhada, livrando-se gradualmente das perturbações físicas que o símbolo lhe afetava. Após o sigilo perder seu brilho amarelado e desaparecer completamente do chão, Sekhmet logo pegara os dois objetos dourados, apertando-os com os punhos cerrados e absorvendo a energia consumida por eles. Em outras palavras, reavendo sua energia antes sugada pela marcação, bem como a energia residual já antes presente no emblema de Yuga, fortalecendo-se novamente.

"Deixei algo passar despercebido, com certeza.", pensou Áker, culpando a si mesmo pelo deslize. "Foquei minha atenção em somente coloca-la sobre o centro do sigilo, esquecendo totalmente de que ela é muito mais bem instruída do que eu. Deve haver alguma testemunha que saiba me fornecer todos os detalhes, tem que haver. Preciso saber como ela conseguiu escapar sem grandes dificuldades.". Caminhou pelo espaço vazio da sala, praticamente andando em círculos. Certamente estava à espera de alguém e não era nenhum de seus aliados ou Mihos. "Eu também fui cego.", lamentou.

Um baque surdo na porta metálica situada na parede da esquerda o arrancou de seus devaneios, fazendo-o virar-se rápido para ela olhando-a com expectativa. "Finalmente veio. Posso sentir sua aura intoxicante daqui.".

Mais um estrondo. A porta retorcia-se furiosamente como se algo estivesse querendo amassa-la como uma folha de papel. Áker observava atento, aproximando com alguns passos à frente, a expressão séria. Olhou de relance para as duas paredes e tornou a visualizar a porta sendo destruída em baques sucessivos e assustadores.

Por fim, ela fora violentamente jogada para frente como um pedaço de metal sem valor, deslizando no chão de concreto com um som rascante e produzindo algumas faíscas até chegar próximo à alguns cabos pretos grossos e meio emaranhados conectados ao vaporizador.

Irrompendo do corredor ao entrar na sala, Abamanu exibia fúria transposta em uma pose autoritária realçada pela robustez de sua armadura prateada que reproduzia ruídos incômodos e mecânicos. A primeira coisa que seus frígidos e lupinos olhos amarelos fitaram foi a figura de Áker posicionada em um ponto central da sala. O deus lunar limitou-se a andar, esboçando um sorriso vil.

Áker o analisou por uns instantes, estranhando as feridas em um lado da face do inimigo.

- Francamente, sua visita desnecessária mal passou pela minha cabeça. - disse o deus lunar, virando-se para o arauto. Ergueu a mão direita, mexendo-a próxima à orelha. - É isso que ocorre quando energias se confundem e me direcionam justamente ao local errado. Você não me engana, garoto de recados. - provocou.

- E quem esperava, afinal? - perguntou Áker, curioso.

- Também não sabe fingir, pelo visto. - retrucou Abamanu, olhando-o com zombaria. Fechou os olhos, suspirando lentamente. - Não está... saboreando essa sensação? Não está sentindo o mesmo que eu?

Áker tornou seu olhar vago ao fitar o nada enquanto influenciava-se por uma estranha energia sendo irradiada em algum ponto da fábrica. Obviamente, não era Sekhmet, tampouco Mihos. Era algo ligeiramente renovado. Pulsante e indiscreto, bem como vagueante. "Mas... quem está liberando todo esse poder?", pensou o arauto, fortemente intrigado. Olhou para Abamanu com um semblante preocupado.

- Caso fosse Sekhmet ou Mihos estaria irritado em vez de calmo. - constatou o arauto. - Significa que tal indivíduo que está dentro desta estrutura detém um poder equivalente ao um deus-quimera. É simplesmente inconfundível. - deu alguns passos à frente, sem esconder a apreensão.

- E sabendo que todos os meus irmãos de espécie foram mortos... - disse Abamanu, suspeitando.

- Chega. - interrompeu Áker. - Deixando isso de lado... pelo menos por enquanto... Você não aparenta estar revigorado. Não da mesma forma quando o vi pela última vez. Posso sentir seu cansaço apenas ouvindo sua respiração forçada. Ao que parece o predestinado mencionado nas escrituras não era exatamente o que pensávamos. Ou estou enganado?

- Você e suas travessuras. - disse Abamanu, olhando enviesadamente para as duas paredes com suspicácia máxima. Sorriu sacanamente ao olhar para o arauto. - Acha mesmo que vai funcionar?

- Está bem, você acertou. - disse Áker, erguendo levemente a mão esquerda. - Mas saiba que, hoje, foi ainda mais ingênuo que eu ao cair nesta armadilha. - estalara os dedos, acionando repentinamente dois sigilos gravados em tamanho maior nas duas paredes. Ambos irradiaram uma luz alaranjada.

Sem demonstrar surpresa, Abamanu dera uma risadinha zombeteira, sentindo o espaço ao redor vibrar de modo leve.

- Impecável. - ironizou ele, batendo as palmas.

- Com este plano não há necessidade alguma dos mortais intervirem com seus métodos para destruir esta fábrica. - disse Áker, sorrindo misteriosamente. - Nenhum de nós pode sair daqui. O sigilo à esquerda nos mantém prisioneiros, enquanto que o da direita é um explosivo que pode ser executado com um único comando meu. - afirmou, sem parecer estar para brincadeiras. - Automaticamente você imagina que decidi me sacrificar para aniquilar a última coisa que mantinha seu plano em funcionamento.

- Ainda há as vidas que julga inocentes aqui dentro. - disse Abamanu, pressionando-o.

- E sua casca está se esfacelando. - apontou o arauto, levantando uma sobrancelha. - De qualquer modo, toda esta estrutura logo mais será destruída por completo, reduzida à escombros. Para facilitar seu julgamento, você decidirá: Saímos vivos ou mortos. - disse, lançando o desafio.

O deus lunar respondera com uma infame gargalhada, as presas enormes à mostra.

- Facilitar... o meu julgamento?! - disse, ainda rindo. Alterara bruscamente a expressão ao erguer os dois braços intencionando um movimento habilidoso. - Se sacrificar por meras vidas humanas... É este o seu propósito atual? Isto é digno de pena.

- O quer vai fazer? - perguntou Áker, incerto. - Ouça minha sugestão para seu próprio bem: Desista... enquanto ainda resta tempo para repensar nos danos que pode causar.

- Os danos à este mundo pouco me importam. - disse Abamanu, produzindo sua contra-ofensiva.

Um ar gélido elevara-se subitamente naquele recinto. Áker olhara desesperado para ambos os lados, completamente sem ideia de ação para impedir o processo. Camadas de gelo puro formavam-se nas paredes em velocidade considerável, inibindo as atividades dos sigilos embora não os apagando.

- Pare! - pedia Áker, irritado.

- Tente. - desafiou Abamanu. - Eles são fracos, imperfeitos e irrelevantes, é perda de tempo se sacrificar por eles. Além do mais, você claramente descumpriu a ordem que lhe foi dada. - abaixara os braços, fitando o arauto ameaçadoramente. - Fez muito mais do que dar o aviso e sair. Um arauto que impõe tarefas extras a si mesmo torna-se um criminoso destinado a sofrer uma punição de igual caráter a de Chronos, por exemplo.

- Até onde eu sei Chronos ainda aguarda sua sentença. - disse Áker, enfático. - A ruína do seu império lhe deu uma vantagem.

- Você terá o que merece, arauto. - ameaçou Abamanu, andando alguns passos em direção ao inimigo, cerrando os punhos. - Com o que está contando, afinal? Aliás, com quem? Sua armadilha foi inutilizada por ora. Agora é minha vez de mostrar minha esperteza... de um jeito mais ativo, se é que me entende.

- Não recebeu a punição por seus crimes... - continuou Áker, olhando-o com ojeriza e recuando alguns passos. - ... por conta da sua própria irrelevância, a qual tentou usar contra aqueles que julgou indignos de uma vida próspera. De fera passou a ser domador. Injustamente, é claro.

- De modo justo! - enervou-se Abamanu, chegando mais perto. - O fato de meu nobre pai reconhecer este mérito é a prova inabalável! Não me force a contrariar meus princípios, seu mensageiro patético!

- Não quero força-lo a nada. - afirmou Áker, seguro de si, franzindo o cenho. - Apenas quero que repense seus conceitos relacionados ao poder que lhe foi confiado.

- Quer discutir sobre poder? - estralou os dedos das mãos, em preparação para um embate. - Prefiro o caminho mais curto.

- Um conflito desproporcional. Tão produtivo. - disse Áker, soando irônico.

- Por que está sugerindo isto... - disse Abamanu, rangendo os dentes em fúria. - ... se deseja tanto que Rosie Campbell sirva de artifício para Yuga me enfrentar neste mundo condenado?

- Condenado pelo seu reinado de podridão. - atacou o arauto, revoltado.

- Exatamente. - aquiesceu Abamanu, dando uma risada escabrosa em seguida.

- Não ouse dar mais nenhum passo. - avisou Áker, severo, sacando sua espada dourada. - Gaste suas energias para pensar em uma maneira de salvar seu receptáculo antes que exploda. Presumo que saiba das consequências. Está se deixando levar pelos instintos sanguinários não só por causa de minhas palavras sinceras... mas também pelo fato do que está vindo diretamente para cá. - sorriu de canto de boca, olhando de modo enviesado para a parede à esquerda. - Quem quer que seja, está expondo um poder que mal pode conter em si mesmo.

- Então não passa de um reles humano. - constatou Abamanu, olhando interessado para a parede à esquerda, praticamente desistindo de confrontar Áker fisicamente. - Instável... e, sobretudo, estranhamente familiar. - estreitou os olhos, sorrindo.

A proximidade que tal força ganhava à medida que os segundos passavam era entendida como assustadoramente descontrolada e desequilibrada, embora ambos tendo ciência de que tal usuário esforçava-se para manter o poder sob domínio pelo tempo que lhe foi permitido usa-lo. Os olhos de Abamanu estavam fixos na parede de concreto, o deus lunar estando ansiosamente no aguardo pelo indivíduo carregando um poder ligeiramente reconhecível de modo inexperiente. "Apareça. Venha até mim. Sinto sua aura engrandecer à cada passo que dá, a cada respiração que executa e a cada batimento cardíaco que ouço desta distância. Esta distância que está encurtando mais rápido do que esperava.", pensou ele, aparentando estar fazendo pouco caso da presença de Áker, bem como os sigilos ainda neutralizados.

O arauto, por sua vez, já demonstrava apreensão na face ao se dar conta de quem se tratava, reconhecendo apenas pelo ritmo da frequência cardíaca. "Se for verdade...", pensou, olhando de relance para Abamanu e tendo contínuos flashes na mente que o faziam revisitar as visões que tivera sobre o futuro desastroso para o qual enviou Rosie. "Sei que ela aqui, mas... Não, talvez não reste muito tempo, muito provavelmente poderá ser tarde demais, ela pode ainda estar muito ocupada resgatando sua amiga. O que eu faço?".

A parede rachara-se em velocidade impressionante com fachos de luz azul saindo pelas fissuras, logo em seguida rompendo-se com o baque estrondoso produzido pela pessoa que a destruíra. Como se houvesse sido explodida, a parede quebrara-se violentamente, levantando uma enorme quantidade de fumaça e poeira cinzenta pelo ar. Aos poucos uma silhueta vaga em meio a fumaça foi se tornado mais visível a cada vez que se aproximava. Uma figura alta e relativamente truculenta, mas claramente bastante forte. Pela poeira ainda levantada viu-se dois pontos azuis brilhando. Eram olhos. Furiosos olhos que fixaram sua atenção em Abamanu.

Um sorriso presunçoso formou-se lentamente na face do infame deus lunar ao visualizar e, finalmente, a pessoa que enervava-se com tanto poder dentro de si.

Áker, contudo, observou com certo espanto, o suor abundante descendo pelo seu couro cabeludo careca e pela testa. "Inacreditável! Mas como, afinal?".

Desviando dos escombros de concreto, Hector chegava mais perto esbanjando uma raiva soberba ao fuzilar Abamanu com os olhos repletos de cólera. O surreal brilho azulado de seus olhos sumira rapidamente.

- Hector... - disse Áker, intencionando impedi-lo de fazer uma estupidez. - Consigo perceber... que ainda está ajuizado o bastante para me escutar. - andou alguns passos até lá, hesitante. - Você não precisa, de modo algum, fazer o que acha que deve. - aconselhou, fitando-o incisivamente.

- Cale-se, Áker. - disparou o caçador, desrespeitando-o, continuando a andar em direção à Abamanu.

- O quê? - indagou o arauto, como se não tivesse entendido. - Como disse? Não pode ser... - virou o rosto para um lado, desistindo de tentar mais uma vez.

- Agora tenho a chance - disse Hector, confiante - de finalmente poder acabar com esse monstro de uma vez por todas, e não vai ser agora que alguém me impedirá, muito menos você! - afirmou, enfurecido.

- Isso. Continue vindo. - incitou Abamanu, pretensiosamente pérfido. Ergueu a mão esquerda, logo estendendo o braço e aplicando uma força telecinética que empurrava o caçador para trás. - Mostre-me o que aprendeu. Vejamos se conseguiu se equiparar à mim, seja lá onde tenha encontrado esse incrível poder, tampouco importa como conseguiu. - sorrira, as presas medonhas à mostra, aumentando a intensidade de seu empurrão telecinético.

Hector sentia seus músculos serem espremidos por uma força brutal e descomunal enquanto era afastado, seus pés arrastando-se no chão frio. Em persistência aliada à resistência, o caçador gemeu, esboçando uma expressão que indicava estar realizando um intenso esforço para seguir em frente. Seu olhar estava mais penetrante do que nunca devido à fúria que sentia. Rangeu os dentes, dando poucos passos adiante, resistindo ao máximo contra o teste do inimigo.

Abamanu rira em escárnio, intensificando sua força ao empurrar ainda mais o caçador.

- Ha-ha! - debochara ele, seus olhos amarelos fitando Hector com expectativa.

Áker, mal sabendo como intervir, limitou-se a assistir o sofrível teste de habilidades. "Já chega... Pare já com isso, sua besta desprezível. Não percebe que já teve uma demonstração convincente somente por ter sentido esse poder... que antes já lhe pertenceu?", pensou o arauto, indignando-se com a insistência do deus lunar.

Hector reunira dentro de si toda a força para perpetrar um contra-ataque, cerrando fortemente os punhos. Por um breve instante, permaneceu parado, parecendo, pela perspectiva de Abamanu, não estar mais sofrendo com o empurrão telecinético, estando parado num ponto, completamente inerte.

O deus lunar aplicara ainda mais força, rosnando furiosamente ao esticar mais o braço contra o caçador, abrindo mais a mão.

Hector, entretanto, não sentira mais nenhuma influência de tal habilidade, sorrindo fracamente de canto de boca.

De súbito, avançara em impressionante e altíssima velocidade contra o algoz, logo pegando-o pelo seu pescoço ferido e erguendo-o pucos centímetros do chão.

Boquiaberto, Áker encarava aquilo como algo inconcebível. "Com tamanho poder fixado dentro de si, seu corpo deveria ter explodido no mesmo instante em que o recebeu! Mas ainda necessito saber: Como?", pensou, balançando de leve a cabeça em negação.

Hector saboreava seu momento de glória ao objetivar esmagar aquele robusto pescoço animalesco. Olhou para Abamanu mantendo seu semblante raivoso ao passo em que apertava cada vez mais. O deus lunar, por outro lado, gemia levemente, fitando-o com um misto de surpresa e frustração.

- Vamos acabar logo com isso. - disse o caçador. - Não tenho muito tempo... - seus olhos voltaram a brilhar a luz azulada por alguns milésimos.

- Ah, você tem sim. Eu o oferecerei à você, com todo o prazer. - disse Abamanu. - Sem arrependimentos.

- É sua súplica final? - perguntou o caçador, pressionando-o.

- Uma... - disse ele, a voz entrecortada por conta do aperto forte em seu pescoço. - ... tentativa de dialogar pacificamente.

- Engraçado como não teve esta ideia enquanto usava os rastros de sangue como trilhas para encontrar os tesouros que roubou. Muito menos quando um inocente implorou por sua vida enquanto encarava a ponta da sua espada. - disse Hector, enfurecido.

- Aqui vai a primeira proposta. - disse Abamanu, mal aguentando a familiar força que o caçador exercia sobre seu pescoço. - O que acha... de nos desprendermos de nossos passados? Sem remoer mais nenhuma mágoa ou fracasso.

- Passo! - vociferou o caçador, rejeitando logo de imediato a ideia.

- Hector! - chamou Áker, interrompendo. - Diga-me: Onde conseguiu essa energia? Alguém lhe ofertou? Se sim, que preço foi obrigado a pagar? - questionou o arauto, olhando-o severo.

- Em vez de fazer perguntas desnecessárias - disse Hector, sem olha-lo. - deveria salvar sua vida fugindo daqui e deixar isto somente entre eu e ele. Portanto, faça isso! - falou, em tom de ordem.

- Não sairei daqui enquanto não obter a resposta. - disse o arauto, irredutível, aproximando-se mais.

- Se ficará apenas assistindo - determinou Hector, rigoroso. -... então me deixe mata-lo.

Abamanu rira baixinho de modo zombeteiro.

- Qual é a graça? - perguntou Hector, ríspido, apertando com mais força o pescoço do deus.

- Deixe-me explicar a situação, mortal. - disse o deus. - Sei que notou estas... desagradáveis marcas no meu pescoço, e é sobre elas que prefiro falar. Você está me fazendo sentir dor, muita dor! - reclamou.

- Então é um bom sinal. - disse Hector, fulminando-o com o olhar.

- Ah, ouça de uma vez! - disse Abamanu, impaciente. - Esta criatura está perdendo sua capacidade de me comportar a cada hora que passa! Mollock está sendo destruindo aos poucos, de dentro para fora! Então, aqui vai a segunda proposta: Tendo em vista de que possui restos de meu poder, ainda que não possa me matar mas pode me ferir gravemente, eu preciso usa-lo... - olhou com ansiedade extrema ,as pupilas dilatadas. - .... como meu novo e definitivo receptáculo.

Uma efervescência nos nervos abateu sobre Hector no mesmo instante em que aquela frase aterradora fora dita. Como resposta, empurrara o deus com a mão esquerda de modo violento em um golpe preciso, fazendo-o cair sobre o chão que se destruía quanto mais ele se afastava.

Áker ficara embasbacado com a força adquirida pelo caçador apenas com aqueles resquícios de energia divina abrigados na pedra Ônix.

"Uma clara atitude vergonhosa de desespero.", pensou Áker, indignando-se com a carência supérflua que o deus lunar utilizara para obter o consentimento do caçador, bem como um certo perdão. "Não é possível que Hector vá cair neste golpe, percebo que está em total domínio de suas faculdades mentais, está equilibrado demais para ceder à esse pedido.".

Abamanu levantara-se vagarosamente, ficando de um só joelho no chão, olhando de modo impressionado para Hector, espantando com a força proporcionada por aquela quantidade de energia.

- Também passo esta. - disse Hector, decisivo no tom, cerrando os punhos.

- Tem ideia do que pode vir a ocorrer caso Mollock tenha pedaços de seu corpo espalhados por todos os lados? - questionou o deus lunar, tocando no ponto onde o caçador o ferira, pondo-se de pé. - Você não quer me matar... - deu um passo trôpego à frente. - Afinal, não pode.

Hector redobrara os sentidos, reforçando sua resistência. Sua face estava mais sisuda do que nunca.

- Admita, caçador. - disse Abamanu, logo rindo em tom baixo. - Aceitou acompanhar seus aliados às Ruínas Cinzas para apagar uma chama que consome cada fio de esperança que seu coração produz. - olhou-o incisivamente. - Não é sobre me impedir. Nunca foi.

- O que está querendo insinuar? - perguntou Hector, olhando-o intrigado.

- As perdas que sofreu... - disse o deus lunar, passando a andar em direção ao caçador de modo lento, a armadura reproduzindo os insuportáveis ruídos ferrosos. - ... são comparáveis às minhas. A hierarquia de minha espécie foi desmoralizada e vista como indigna de valor ou atenção. Minha esposa... os meus bens valiosos que me foram tirados...

- Bens valiosos que seus soldados roubaram de Yuga para que você os colocasse na cripta. - acusou Hector, rememorando o fato que causara o início do confronto entre as divindades.

- Ele feriu o acordo de compartilhamento! - vociferou Abamanu, tentando defender sua posição. - Mas isto não vem ao caso agora. Uma coisa é certa: Você não quer me matar... você quer Mollock.

- Tem razão. - disparou o caçador, tranquilo. - Certamente se refere à minha vingança pessoal.

Áker fitara Hector com preocupação na expressão. "Estaria eu errado sobre como ele está se portando? Sobre como ele está lidando com um poder que não entende?", pensou ele, relanceando os olhos para Abamanu, sentindo-se cada vez mais deslocado e afastado daquele embate.

- É. - confirmou Abamanu, assentindo. - Mollock estará totalmente entregue à você... quando nós dois nos tornarmos um só. - olhou para um canto da sala, parecendo aflito e angustiado. - Eu consigo ouvir. É de dar pena. Pobre criatura infortunada. Resvalada à submissão, quando seu único sonho foi ser o maior dentre os maiores. - voltou-se para Hector, o olhar triste. - Está gritando. A todo momento ele dispersa suas emoções mais agressivas sobre mim. Ele quer reassumir o controle daquilo que lhe pertence. - aproximava-se com mais vagarosidade. - Jamais mentiria para alguém em sua condição, Hector. Não me interprete como um aproveitador, apenas porque possui restos do meu poder. Eu sinto-me incompleto sem ele.

- Está na cripta, não é? - indagou Hector, levantando uma sobrancelha.

- Hector, por favor... - disse Áker, querendo interferir.

- Faça-me você um favor, Áker. - falou o caçador, rigoroso, sem olhar para trás. - Saia daqui, para seu próprio bem! Não insista mais!

- Ignore-o. - aconselhou Abamanu. - Concentre-se somente em mim. Este mensageiro é a única barreira que impede nossa união inevitável.

- Inevitável não é bem o termo que eu usaria. - retrucou Hector, inalterável na face.

- Não, isso não pode acontecer... - disse Áker, falando consigo mesmo em voz baixa, olhando para ambos com nítida apreensão. "Os sigilos ainda estão inutilizados. O poder subiu à cabeça de Hector e essa maldita quimera está tentado usar isto como brecha para cravar suas garras. Só me resta contar com a ajuda de Rosie. Mas isso depende. Ela pode já ter resgatado sua amiga e saído da fábrica, sem nem ter visto Hector... Oh, não... Não há garantia nenhuma de que ela vá intervir! Deveria ter ganhado mais proximidade com Abamanu, assim eu o teleportaria para a fábrica de Birmingham, prendendo-o lá mesmo e explodido-a. Mas isso despertaria suspeitas do Exército, além de que a explosão teria a mesma intensidade da que destruiu a fábrica onde o amigo de Rosie, Adam, estava confinado. A partir de agora, as possibilidades estão nebulosas ao meus olhos.".

- Sabe porque - disse Abamanu, esperançoso quanto ao seu poder de convencimento. - Mollock não consegue ter voz e vez enquanto eu estou no seu corpo? Por que não quero que ouçam seus lamentos tediosos. Eu o aquieto. Mas, às vezes, não adianta. Quanto mais eu tento, mais ele se revolta e se debate, ansiando por liberdade e controle. De início, eu pensei que o manteria adormecido, mas ocorreu-me exatamente o oposto. - parara de andar sobre o rastro de destruição no chão, logo em seguida estendendo os braços para os lados e juntando os pés. - À medida que tento mantê-lo calmo... o resultado acaba por prejudica-lo seriamente.

Os braços e as laterais do corpo da armadura possuíam pequenas travas de fechamento, o que facilitava o vestir da mesma. Estas travas, naquele instante, abriam-se, uma por uma, com ruídos mecânicos e finos. Por fim, a armadura abrira-se, as partes da frente e de trás dividindo-se ao abaixarem-se, deixando à mostra o corpo nu de Mollock com hematomas e feridas graves.

O olhar de Hector mudara repentinamente. "Então é verdade.", pensou ele, testemunhando a prova.

Áker não reagiu de modo surpreso, já ciente de que a força de sustentação do receptáculo já estava prestes a ser esgotada a cada tentativa do deus lunar em inibir seu hospedeiro, forçando um controle que causaria mais prejuízos do que ganhos. Era como um humano estar prendendo um simples espirro, mesmo sabendo o quão perigoso pode ser.

- Ao que parece, não estão se dando muito bem. - disse Hector, em tom irônico.

- E somente a sua escolha é o elemento que selará o destino desta relação fracassada. - ditou o deus lunar, sério em sua expressão. - Eu tento controla-lo, ele sente dor e veja como este ciclo termina. - baixou a cabeça, visualizando as enojantes feridas. - Quando estivermos separados, ele mal terá noção de contexto e realidade, talvez nem conseguirá exprimir uma frase lógica e coerente, de tão desvairado que está. - tornou a fitar Hector. - Por isso estou pedindo à você, Hector. Obviamente, estes restos foram absorvidos das Ruínas Cinzas... onde no mesmo ponto em que retornei, abaixo da minha cripta, eu usei meu amuleto, seu outro lado especificamente, para transportar o mago do tempo à um lugar distante e inexplorado até que tudo estivesse pronto. Eles podem não completar o poder que ainda me tem, pois a cripta não pode ser aberta sem minha autorização e eu sei que você não fez isso. Afinal... - sorrira de maneira enigmática e infame. - ... quem chegaria até as Ruínas Cinzas em um único dia e conseguiria recursos para absorver a energia lá contida?

Hector engolira a saliva, ficando apreensivo com a maneira sorrateira que o deus lunar usava para conseguir obter uma explicação.

- Muito bem, já chega. - disse Áker, a paciência esvaída, tentando se pôr entre os dois.

Em um rápido movimento, Hector erguera o braço direito, estendendo-o para o arauto e fechando a mão, telecineticamente lançando-o contra a parede.

As costas de Áker bateram com força no concreto duro, seu corpo semi-imobilizado.

- Eu avisei à você, Áker. - disse Hector, decepcionado. - Fique fora disso! É a última vez que o advirto! - virara seu rosto para Abamanu, denotando pressa. - Então é verdade? Mollock estava tentando trocar de lugar com você em determinados momentos, mas você acabava impedindo-o. Dividir para conquistar. Não é mesmo?

- Uma regra com a qual nunca estive de acordo. - afirmou ele, categórico.

- Você soube fingir muito bem seu desprezo por mim naquela noite. - disse Hector, relembrando o fatídico ato de impedimento ocorrido na tempestuosa noite. - Rosie e eu somos... seus tesouros. Mas... no momento, não sei se devo...

- Não... - grunhiu Áker, forçando para se libertar da pressão que Hector impunha com suas habilidades.

- Você sabe que deve. - emendou Abamanu, assentindo para seu escolhido. - Com Mollock frágil... nós dois seremos imbatíveis. Concluíra sua vingança.

- E como fica o mundo? - perguntou o caçador, soando ríspido e indo mais além na questão. - Existe apenas uma condição: Desistir do plano de dominação global e deixar a humanidade em paz. É isto ou não há acordo.

O arauto de Yuga rangia os dentes com os olhos fechados, querendo mais do que tudo poder fazer algo para evitar o caçador de cair nas mãos de Abamanu.

Por um breve instante estando pensativo, Abamanu avaliou com cautela suas opções.

- Além disso - continuou Hector -, terá de me deixar assumir o controle do meu corpo para que eu possa matar Mollock.

- Por mim está ótimo. - concordou ele. - Mas lembre-se: Nós jamais nos separaremos. Este é o preço a ser pago. - alertou o deus, sorrindo sacanamente e empolgando-se.

Uma lágrima escorrera no rosto do caçador comovido.

- À esta altura... vingar meu pai tornou-se o único propósito de vida que consegui alimentar com minhas poucas esperanças. Não pode sair do receptáculo sem causar maiores estragos... não é?

- Exato. - confirmou Abamanu, assentindo de leve e relanceando Áker com um olhar despreocupado e alegremente escarniante. - Seria demais para os mortais. Metade da cidade não seria o bastante para me acomodar. - andou alguns passos, aproximando-se mais do caçador. - Mas antes de firmamos nossa parceria amigável... deixe-me ver... - ergueu a mão direita, intencionando um toque. - ... suas misteriosas fontes que o auxiliaram para esta conquista. - ficara poucos metros de Hector, o mesmo desconfiado e raivoso. Tocara-o na cabeça, logo fechando os olhos para conseguir vislumbrar claramente as memórias do escolhido, exclusivamente aquelas pertencentes às últimas horas daquele dia.

Hector gemera desconfortável ao sentir a pesada mão do deus invadir sua mente ao vasculhar suas lembranças. Tal incômodo o fez baixar o braço com o qual prendia Áker com telecinesia, consequentemente fazendo o arauto cair ofegante no chão.

Um sorriso suave formou-se na face monstruosa e animalesca do deus. Abrira os olhos amarelos, voltando-os para Hector, logo retirando a mão.

- Ha. - rira rapidamente, parecendo admirado. - Quem diria!? Uma convivência secreta com uma bruxa e uma profetisa. Isto é... fascinante. Eu não poderia estar menos surpreso. - cruzara os braços. - Permita-me mudar alguns termos do contrato...

- E o que inclui estas mudanças? - questionou o caçador, cada vez mais esbaforido, respirando pesadamente.

- A bruxa é dispensável. - disse Abamanu, dando de ombros. - Por outro lado, no entanto... a profetisa possui um valor especial. Ela é dotada de um saber único dos tempos que virão pela frente. E um imperador deve estar bem informado para se preparar e saber lidar com imprevistos. - inclinou-se para Hector, o olhar mais incisivo. - Seremos um só. Compartilharemos das mesmas lembranças... prometo não esconder nada, isto eu juro do fundo do meu coração. E, sendo assim, você, além de reencontra-la, poderá saber o que ela tanto insiste em ocultar.

- Mas... - disse Hector, pensativo e um tanto hesitante.  -... Rosie ficará abalada... não tendo outra escolha a não ser dizer sim à Yuga. - tornou a olha-lo com frieza máxima. - Então... é assim que terminará.

Abamanu assentiu, aquiescendo com a terrível perspectiva que Hector adotara sobre os resultados do acordo.

- Sim, Hector. O encontro de vocês dois não foi um mero acaso. - elucidou ele, confiante. - Já estava escrito. Yuga e eu devemos terminar o que começamos através de vocês dois. Meu escriba... já sabia. E por falar nele... preciso da profetisa para tira-la de seu rastreamento.

- Isto explica ele não ter dado sinais de sua presença até agora. - deduziu Hector.

- Ele se escondeu por medo e covardia. - disse Abamanu, desapontado com seu grande assistente. - Com seu desaparecimento repentino, passei a duvidar de suas verdadeiras intenções. Ele sabia que eu imaginaria isso e resolveu se esconder nos confins, embora seja apenas uma especulação da minha parte... mas isso é o que menos importa agora. - tocou Hector no ombro. - Com a energia que armazena dentro de si, poderá elevar meu nível de poder.

- Você detém cerca de 60%. - disse Hector, constatando a precisão. - Posso sentir. - assentiu ele. - Possuo somente 20%.

- Verdade. - aquiesceu Abamanu, assentindo positivamente. - E veja o que conseguiu fazer com o mensageiro. - gesticulou com a cabeça, apontando para Áker.

- Com a soma... consegue 80%. - disse Hector, falando de modo mais calmo desta vez. - Presumo que o que esteja na cripta é o bastante para completar os outros 10.

- Engana-se. - retrucou o deus lunar, dando as costas e pondo as mãos para trás juntas. - O que está lá não deve ser libertado, em hipótese alguma. A menos que eu veja alguma necessidade, o que dificilmente acontecerá. - olhou-o por trás do ombro. - Insistir em um erro que custou a relevância do meu império é a última coisa que eu quero.

Engolindo em seco, Hector respirara fundo, encarando-o com extrema postura corajosa, como que querendo igualar-se à ele em uma desnecessária disputa de egos.

- Pode me dizer... o que há de tão perigoso escondido na cripta que até mesmo você rejeita? - perguntou ele, ávido por saber toda a verdade relacionada à caixa de pedra no centro da cripta.

Abamanu virara-se para o caçador, exibindo uma face rude.

- És uma curiosidade que deve ser sanada quando realizarmos a união. - disse ele, dando alguns passos à frente. - Mas... tendo em vista o ponto ao qual chegamos... por que não compartilhamos nossos segredos mais profundos?

Áker se pusera de pé, ainda desconfortável e cansado por conta da pressão exercida por Hector contra ele, vendo-se inerte e impotente. Apenas um espectador aguardando o desfecho de um espetáculo horrendo.

Olhara para a parede esquerda, mais precisamente para a parte que fora destruída, sentindo presenças aproximando-se com rapidez. Voltou sua atenção para os dois predestinados a se unirem.

- Ela havia sido o melhor presente que já nos foi dado. - contou o deus lunar, divagante. - Caso eu morresse, ela me sucederia no trono, eu dediquei esta promessa unicamente à ela. Não a reconheci mais quanto cometi o pior dos meus erros. Foi como se o mundo pelo qual eu lutava para preservar estivesse se definhando ao meu redor. Eu doei aquilo que me tornava único.

- Está se referindo à sua filha, não é? - perguntou Hector, curioso, estreitando os olhos. - Por que conferiu à ela sua energia residual?

- É um poder que esconde-se na cripta junto à ela. - revelou Abamanu, tornando-se inseguro ao lembrar-se do desastroso acontecimento. - Iguala-se à energia residual que Yuga depositou em Rosie Campbell. Por isso ele está tentando ganhar vantagem. Ele aproveitou-se do fato que perdi minha obscura fonte de poder para depositar toda sua confiança em uma mortal.

- Agora estamos falando de Yuga... quero saber mais da sua filha. Como ela se chama? - perguntou Hector, tornando-se impaciente ao dar alguns passos firmes.

- Seu nome é...

Passos apressados e uma voz destacante rasgaram a conversa de modo súbito.

- Hector! Não acredite em nada do que ele disser! - disse Rosie, em alto e bom som, apressadamente entrando na sala com urgência estampada na face e no olhar aflito.

O caçador virara o rosto, mal acreditando em sua presença.

- Rosie!? - disse ele, estupefato, sentindo o mundo parar á sua volta ao revê-la.

A jovem voltara-se para sua direita, onde vira Áker parado próximo à parede.

- Áker! - gritou ela, alarmada.

- Inoportuna demais para meu gosto, mortal. - afirmou Abamanu, enraivecido pela chegada triunfal da jovem.

- Hector, por favor, me escuta. - pediu ela, voltando-se para o caçador. - Eu vi o que você fez com aqueles soldados, e não sei onde conseguiu tanto poder pra isso, mas ouça: Não permita que ele manipule você. - disse, com bastante firmeza no tom. Foi aproximando-se devagar. - Consequências terríveis podem vir se você deixa-lo entrar.

- Isto é algum tipo de ameaça? - perguntou o caçador, franzindo o cenho, dirigindo à palavra à companheira de modo frio. - Está tentando impedir minha vingança?

- O quê? - indagou ela, franzindo a testa, confusa. - Mas... - gaguejou, relanceando os dois.

- Mas nada! - bradou Hector, ríspido. - Enquanto estiver possesso por Abamanu, poderei completar minha vingança aproveitando que Mollock está debilitado e frágil, e logo depois vou expulsa-lo de mim.

- Como é!? - perguntou Abamanu, olhando-o com suspicácia intimidadora ao elevar o tom de voz.

- Exatamente o que você ouviu. - retrucou Hector, voltando-se para o deus, fitando-o desafiadoramente.

- Ah... - disse Abamanu, parecendo exausto e decepcionado com o caçador, suspirando pesadamente. - Agora entendo a vida difícil dos Coletores neste mundo. Vocês humanos são péssimos negociantes. - afirmou, logo em seguida erguendo a mão esquerda e estalando os dedos.

Cerca de 16 soldados, feito fantasmas assombrosos, apareceram repentinamente na sala, portando suas lanças prateadas.

- Apontem! - ordenou Abamanu, autoritário e furioso.

As lanças, então, marcaram seus alvos. Quatro soldados apontaram as armas para Áker e três para Rosie, enquanto que os outros permaneceram observando alertas e aguardando novas ordens.

- Vamos com calma, rapazes. - disse Áker, erguendo levemente as duas mãos, resolvendo não produzir movimentos bruscos para não comprometer a segurança de Rosie. - Uma retaliação pela perda de seus parceiros. Eu entendo. - olhou para cada um deles, sério.

- Deixe-os em paz! - exigiu Hector, exasperado com o ato.

- Mudança de termos. - disse Abamanu, retesando os músculos e sorrindo. - Escolha entre o acordo ou a preciosa vida de Rosie Campbell. - apontou para a jovem com a mão direita.

- Não dê ouvidos à ele, Hector! - disse Rosie, sacando uma adaga e encarando aqueles ferozes lobos bípedes que rosnavam ao apontarem suas lanças contra ela. - Ainda existe outra saída.

- Quieta! - esbravejou Abamanu, tentando cala-la.

Voltando-se para Hector, Abamanu arqueara a sobrancelha, esperando uma decisão rápida. Hector olhara para seu relógio de pulso incontáveis vezes a cada cinco segundos. Na última olhadela, desesperara-se de imediato. "Mas que droga! Meu tempo está acabando... Se não fosse por Rosie... certamente teria terminado de outra forma. Dane-se. Esperei por anos... talvez eu seja capaz de esperar um pouco mais.", pensou, logo erguendo os dois braços para os lados, os dedos das mãos em forma de garra, indicando uma investida imprevisível.

Abamanu o observava movimentar os braços para cima, curioso.

- Oh. Então este é o seu sinal de redição? - questionou o deus lunar, zombeteiro.

Um sorriso enviesado formou-se em Hector, ao mesmo tempo em que seus olhos brilharam, em questão de segundos, uma luz azulada clara.

Para o espanto súbito de Áker e Rosie, os soldados do Cavaleiro da Noite Eterna foram afetados por Hector, um por um, seus olhos brilhando uma luz azul antes de caírem mortos no chão. O caçador manteve os braços abertos e para cima até que todos estivessem executados, esforçando-se ao máximo para conseguir total êxito. Contudo, gastando os últimos resquícios de energia que sobraram dentro da pedra Ônix.

O ruído do metal das lanças caindo fora o único som audível até o silêncio perturbador vir.

O caçador, por fim, baixara os braços, sentindo que a fonte de poder fora completamente esvaziada de seu corpo. Um suspiro de alívio e satisfação foi tudo que ele conseguira expressar naquele instante.

Emanando um ar de desilusão, Abamanu encarara o ato como uma sincera demonstração dos verdadeiros propósitos de Hector, que resolvera, pela presença motivacional de Rosie, abandonar o arriscado seguimento para findar sua vingança e honrar a memória de seu pai. O ar frio abateu sobre a face do caçador, o mesmo expirando pela boca um leve e efêmero vapor gélido. As reações corporais retornavam aos seus estados normais em ritmo gradativo. Os cinco sentidos, com o esgotamento total da energia divina, voltavam a funcionar de modo mais humano por assim dizer. O que restara foi somente um incômodo no estômago... algo movendo-se devagar. "Não pode ser verdade que Eleonor esqueceu de me dizer que vou regurgitar a pedra. Não sinto como se ela fosse dissolver dentro de mim...", pensou ele, tocando no abdômen ao sentir um mal-estar contornando a parede intestinal.

Abamanu ainda fitava-o com descrença.

- Não pode ser. - disse ele, erguendo a mão direita, estendendo-a até Hector. - A emanação... ela desapareceu! - vociferou, algumas gotículas de saliva lançadas ao ar.

O tom homérico da chateação do deus ecoou por todo o recinto de modo assustador.

Rosie manteve a adaga firme na mão direita, olhando tanto para seu inimigo quanto para seu parceiro. Áker aproximava-se discretamente de Hector, atento aos movimentos.

Abamanu fechara a mão direita do braço estendido, como se estivesse afim de puxar algo para si.

Hector sentira o abdômen vibrar em um ritmo desconfortante, como se seu corpo tivesse adquirido uma ebulição de uma penela em fervor, uma sensação borbulhante e incontrolável. Abatido pelo terrível mal-estar, o caçador gemera de dor mal aguentando-se em pé, logo ajoelhando-se devido à crescente fervilhação que sofria.

- Hector.. - disse Rosie, preocupando-se com o estado do caçador. - O que está havendo? - direcionou seus olhos para Abamanu. - O que está fazendo com ele? - perguntou, o tom ríspido.

Hector revirava os olhos, a boca movimentando-se desajeitadamente, sentindo uma dor indescritível, cuidadoso ao não emitir um som de sua voz que representasse a gravidade do problema para não afligir Rosie. O deus lunar parecia puxar algo... de dentro do caçador.

- Áker, faça alguma coisa! - pediu Rosie, alarmada.

- Embora esteja sendo submetido a um processo doloroso... - disse o arauto, os olhos fixos no pequeno objeto esférico que parecia transpassar o corpo do caçador. - ... acredito que esteja sentindo-se livre.

- Livre de quê? - insistiu a jovem, curiosa.

- Daquilo que o agraciou com o poder divino. - disse Áker, olhando para ela, sério.

Rosie retrucara fazendo uma cara de confusa, o cenho franzido. Ao ouvir um rápido grito de dor do caçador, voltou sua atenção para a incômoda cena, ficando boquiaberta com o que estava presenciando. "Que coisa mais... estranha... Como ele colocou essa coisa dentro do próprio corpo?".

A pedra Ônix, ensanguentada, flutuava no ar após sair do interior de seu hospedeiro, indo diretamente para as mãos daquele que a extraíra. Uma ferida aberta no abdômen de Hector golfava sangue em profusão, fazendo-o entrar em pânico, tentando estancar ao pressionar a mão na barriga com toda a força para recuperar-se logo.

- Veja o que temos aqui. - disse Abamanu, satisfeito ao ter a Ônix em sua mão. - O mecanismo que possui um fascinante atributo de sorver qualquer tipo de energia, não importando a quantidade ou nível. - olhou para Hector. - Mais uma vez não estou surpreso. Esta talvez seja a única forma de um humano ter acesso a um poder que não consegue dominar. Você mal domina sua maldição, caçador. Pude sentir através do toque ao vislumbrar suas memórias.

Rosie fitou Hector com desconfiança por alguns segundos, ainda mais indecisa sobre acreditar ou não no controle absoluto que o caçador obtivera sobre seu monstro interior.

- Como sabe disso? Sobre a Ônix... - disse Hector, levantando-se com dificuldade.

- Mollock, obviamente. - disse o deus lunar, direto. - Sem ele e suas lembranças, não teria conseguido desfrutar da melhor coisa que os mortais deste mundo já criaram. Uma melodia sinfônica que ameniza minhas constantes dores de cabeça. Mas sobre isto... - olhou para a pedra. - ... Mollock tomara conhecimento deste artefato mágico ao ler um livro de bruxaria em alguma ocasião. É descartável quanto torna-se limitado. - disse, vendo a Ônix reduzir-se em pó ao vento, até não sobrar mais nenhum átomo de sua matéria-prima. - E se foi. Que pena. Segundo a pesquisa de Mollock, estas esferas possuem um prazo de validade quando absorvem grandes quantidades de energia, e não me admira o tempo ser mais curto quando energia divina limitada é incluída no jogo.

- Isto não é um jogo... - redarguiu o caçador, aborrecido ao se pôr de pé completamente. - Vim unicamente para mata-lo... Caso eu falhasse, moveria céu e terra para encontrar algum jeito de matar você... ou para-lo de uma vez por todas.

- Seu mensageiro de estimação tentou algo parecido quando dificultou a situação de sua protegida - olhara para Rosie enviesadamente - em um encontro que poderia acabar com menores transtornos, se ele não tivesse sido chamado, matado três dos meus soldados e me aprisionado em uma armadilha.

Áker apressara os passos, impaciente com tudo aquilo. Colocara de frente à Hector, logo tocando-o no ombro e usando a outra mão para tocar seu ferimento. Uma luz amarelada surgira da ferida... que sumira logo que o arauto terminou o serviço, curando o caçador. Hector ergueu a cabeça, voltando seus olhos descrentes para o mensageiro de Yuga, embasbacado com a façanha.

- Você... - gaguejou ele, ainda sem acreditar, com um sorriso fraco em formação em sua face suada.

Áker recuara alguns passos rapidamente.

- Deixemos os agradecimentos para depois. - estendera o braço direito, a palma da mão à mostra com os dedos juntos. - Vá. - dera um pequeníssimo "empurrão" com a mão, fazendo o caçador sumir imperceptivelmente da sala.

Rosie passeara os olhos pelo recinto, não vendo Hector em mais nenhum canto dali.

Áker virara-se Abamanu, desafiante.

- Nada mal. - zombara o deus, entortando a cabeça de leve. - E pensar que eu e ele seríamos uma ótima dupla contra Yuga. Não sei porque o despachou como prova de sua confiança e proteção, pois eu não tinha intenção nenhuma de mata-lo.

- Claro que não. - afirmou o arauto, sério no tom. - Mesmo que a energia na pedra esgotasse, a possessão ainda seria viável. Procuraria uma brecha. Não sairia desta sala até que ele cedesse ao acordo. Ainda há a maldição que ele sofre para controlar todas as noites. O lobo é sua parte quimérica mais predominante em dons e personalidade. Por isso esteve tão calmo quando percebeu que a energia tinha um limite de tempo na pedra, você contou com esta saída alternativa quando resolveu esconder a importância da maldição para o acordo. Você só deu importância à energia porque Hector estava cego pelo poder que ela lhe dava, mas a cada minuto que se passava ele percebia seu jogo e mais evitava cair nele. - disse Áker, em uma visão esclarecedora dos reais intentos do deus lunar.

- Não tenho mais nada a temer. Ainda possuo o mago do tempo... - disse Abamanu.

- É a sua última chance. - avisou Rosie, ameaçadora no tom. - Onde está Charlie?

O deus lunar caíra em uma gargalhada de escárnio.

- Pensa que seu protetor alado armou previamente aquela mesma armadilha? - perguntou ele, ainda rindo, esquivando-se da pergunta.

Rosie o encarava com mais fúria, cada vez menos tolerante.

- Você pode sair, se quiser. - disse Áker, conformado com a desvantagem. - Ainda mantém os sigilos neutralizados. Eu fui tolo.

- Não, Áker, isso ainda não acabou. - disse Rosie, a postura brava. - Ele não vai a lugar nenhum.

- O que vai fazer? - perguntou Abamanu, olhando-a com zombaria. - Tentar me ferir com esta... pequena espada? Eu vou lhe avisando, mortal: Há uma opção vantajosa. Correr. Correr sem olhar para trás. Você se negou a ser aprimorada por uma versão mais potente da substância que Lenox criaria especialmente para você.

- O Dr. Lenox está são e salvo. - afirmou Rosie. - Para sempre longe das suas garras imundas.

- Como o encontraram? - questionou Abamanu, enfezando-se.

- Isso não importa mais. - retrucou Rosie, lacônica. - Você terá o que merece.

- Ah é?! - indagou o deus lunar, cruzando os braços em plena tranquilidade. - Pois então teste sua lâmina contra minha armadura com camadas de blindagem impenetráveis.

- Não vai ser necessário. - disse a jovem, sorrindo de modo enviesado e balançando levemente a cabeça. - Tenho alguém capaz de fazer isto melhor do que eu. - erguera a mão esquerda, estalando os dedos duas vezes.

Uma aparição inesperada para Áker surgira depressa em sue campo de visão.

Êmina saíra de seu esconderijo atrás da parede destruída, usando a mesma roupa que usara na noite nas Ruínas Cinzas - o bem abotoado sobretudo cinza, calças pretas e botas de couro preto -, correndo por cima dos pedaços de concreto quebrado em direção à Abamanu, portando luvas metálicas, que cobriam apenas a palma da mão, com símbolos alquímicos entalhados nela para realizar decomposições de matérias.

O deus rosnara, preparando-se para o ataque.

A caçadora sorriu ao correr até ele, os cabeços pretos desgrenhados e bagunçados e o rosto sujo de poeira.

- Hora da vingança, cachorrão! - gritou ela, ganhando mais aproximação.

Áker não entendera o ato impensado por ele, nem seu objetivo, olhando estranho para a jovem caçadora que parecia encaminhar-se para uma guerra.

Rapidamente, Êmina ficara cara à cara com o deus lunar, logo tocando os antebraços do inimigo com as luvas metálicas, imobilizando-o instantaneamente e produzindo uma série de intensas descargas elétricas de tom azul que pareciam sair dos olhos do Cavaleiro da Noite Eterna, que urrava em ardor profundo, sua mandíbula alongando-se verticalmente, como se uma chama consumidora transpasse sua carne através da armadura que tanto gabava-se por ter como sua infalível proteção.

Os inúmeros raios pareciam subir para o teto, saindo tanto dos olhos de Abamanu quanto pelas manoplas, onde a alquimista aplicava seu golpe com toda força que lhe dispunha, produzindo uma aterrorizante tempestade dentro da sala. A tensão provocava um tremor que fazia quebrar as vidraças das janelas no alto das paredes, além de fragmentar as camadas de gelo que inutilizavam os sigilos criados por Áker.

Rosie - com um súbito alerta em sua mente dizendo "Afasta-se" - recuara até uma parede, com os braços protegendo os olhos da imensa claridade, afim de também não ser queimada ou atingida fatalmente por uma das descargas poderosas que saltavam e pareciam penetrar nas paredes violentamente.

Áker fizera o mesmo, perplexo com a total ausência de temor da caçadora, observando o espetáculo estático e brutal, indiferente ao ressoante grito de dor de Abamanu.

Os olhos de Êmina faiscavam de cólera, seus cabelos pretos e soltos esvoaçando com a corrente de vento que o processo causava.

Dera um furioso grito, pressionando as luvas mais fundo no metal da armadura.

- Mas o que ela está tentando fazer, afinal? - perguntou Áker, olhando para Rosie com perplexidade, com ênfase no "tentando".

- Eu não sei! - respondeu ela, ainda cobrindo os olhos. - Quando corri para alcançar Hector, ela me puxou de volta, deixou o soldado ir embora e me convenceu de que tinha um plano para feri-lo! Estávamos com muita pressa, então só houve tempo para explicar a minha parte!

Por fim, todos os efeitos causados pela forte alquimia cessaram de imediato: O tremor, os raios e a claridade intensa diminuíram em segundos.

Contudo, Êmina ofegava bastante, tanto pelo cansaço quanto por uma desanimadora revelação, seus cabelos bagunçados com alguns fios no rosto suado.

Seu olhar era de espanto desesperador, suas mãos passando a tremer, sentindo as palmas queimarem graças à fervura pela qual as luvas alquímicas foram submetidas. Olhou para os itens, os quais contava como armas secretas, e ambos estavam com os símbolos chamuscados e exibindo uma temporária coloração laranja como se estivessem em brasas ou combustão. O horror fora a emoção mais predominante naquele instante.

- Não... - gaguejava ela, desnorteada. - Eu podia jurar... - olhou para a armadura do deus. - ... que fizessem algo contra você, que...

- Reduzisse minha armadura em cinzas?! - questionou Abamanu, interrompendo-a, também ofegando, a fumaça que emanava da pesada armadura prateada dissipando-se e revelando seu rosto afetado pela alquimia, a carne fresca tendo sido completa e grotescamente exposta. - Tola! - vociferou, logo movimentando-se ao dar uma bofetada no rosto da Êmina com a mão esquerda, fazendo-a ser lançada contra uma parede.

- Êmina! - exclamou Rosie, aflita, correndo para ajuda-la. - O que estava tentando fazer? Esperava que fizesse outra coisa mais... cuidadosa. - disse a jovem, ajudando a amiga se levantar.

- Isso é impossível. - disse a caçadora, tocando nas costas ao sentir a dor do impacto. - Não, espera... Na verdade, faz todo o sentido. Ah, merda! - praguejou ela, virando o rosto, raivosa.

- O quê? Qual era seu objetivo tentando uma loucura daquelas? - perguntou Rosie, tocando-a no ombro.

- Foi veloz o bastante -  comentou Áker - para não ser arremessada com um golpe antes que atacasse.

O rosto de Abamanu reconstituíra-se progressivamente graças ao fator de cura de Mollock, as camadas da pele restaurando-se espontaneamente. A armadura não exibia nenhum arranhão, apenas suaves manchas pretas que desapareceriam em questão de horas.

- O fato é que - disse o deus lunar - eu permiti que ela avançasse contra mim, estava curioso quanto aos seus dons... proporcionados por estes metais em suas mãos. Essa é a tão famigerada... alquimia? - dera uma leve risada debochante. - É graças á ela que certos seres humanos brincam de deuses? Isto não fez nem cócegas em mim.

- Cala essa sua boca... - disse Êmina, fuzilando-o com o olhar. - ... pois pelo visto a alquimia é uma ciência complexa até para os deuses. - fez uma pausa, respirando mais fundo. - Tentei decompor a matéria da sua armadura a nível sub-atômico, mas depois me dei conta de que a matéria-prima que a constitui é de uma liga metálica que não pertence a este mundo, é praticamente indestrutível. - olhou para as mãos com desalento, as luvas metálicas ainda fumaçando. - Infelizmente, elas só podem ser usadas uma única vez, e isso explica a produção abundante delas para alquimistas que decidem ser caçadores. Para meu azar, só havia levado estas duas para as Ruínas Cinzas, pois achei que não seriam tão úteis por lá. - revelou, os olhos marejados por um certo arrependimento abatê-la.

- Esta armadura é uma perfeita réplica da qual uso em minha morada. - disse Abamanu, cruzando os braços. - Com tanto conhecimento a meu respeito, graças aos meus seguidores humanos, é decepcionante que tenha sido tão ingênua a ponto de usar sua própria ciência contra mim. Algo criado por mortais que se veem como deuses para ferir deuses e fazê-los se sentirem mortais. Faça-me o favor... - virara o rosto, a expressão entediada.

- Antes falhar com ingenuidade... - disse Áker, deixando um leve sorriso formar-se. - ... do que com desatenção. - direcionou suas pupilas para a parede à direita, na qual o sigilo explosivo mostrava-se aceso após a camada de gelo sólido ter quebrado-se com o tremor.

- Mas o que... - disse o deus lunar, confuso de início ao olhar estranho para o arauto e acompanhar sua visualização à parede. Logo descruzara, rosnando em fúria. - Ora, seu... Eu já devia saber...

- Repare à sua esquerda. - disse Áker, pondo-se entre Rosie e Êmina, ficando no meio das duas jovens. - A alquimista falar com você me serviu como distração.

- É sério? - indagou Êmina, franzindo o cenho para o arauto, depois olhando para Rosie. - Afinal, quem é ele?

- Longa história. - retrucou Rosie, direta.

- Ah, ótimo. - disse a caçadora, suspirando pesadamente. - Mal sou resgatada e lá vem mistérios de pirar cabeças. Nunca estive tão ansiosa. - olhou para Áker. - É um prazer conhecê-lo... ahn...- estreitou os olhos.

- Áker. - respondeu ele, apresentando-se gentilmente e assentindo.

- Nome interessante. Inspirado em quê? - perguntou ela, curiosa.

Rosie pigarreara fortemente, tornando-se tensa.

- Êmina. - dera um sorriso nervoso. - Acho que não é uma boa hora. - voltou suas atenções para Abamanu.

- Assim aproveitei a oportunidade - continuou Áker. - para apagar o sigilo de aprisionamento que impedia nós dois de sairmos daqui a menos que eu permitisse nos libertar. Para depois desenhar... - direcionou os olhos para o chão, no ponto em que o deus lunar estava de pé. - .Bem, creio que já deva ser óbvio. - erguera a mão esquerda, estalando os dedos.

Para o completo horror de Abamanu, uma marcação criada para aprisiona-lo e neutraliza-lo acendera-se como um círculo luminosamente amarelado, cercando-o. Capturar deuses-quimera havia se tornado uma das tarefas absurdamente mais simples de se realizar por toda a vastidão da morada dos deuses. Um círculo vazio desenhado para "engaiola-las" soava risível com seres que, ao serem agraciados com inteligência e racionalidade, ansiavam por ascender ao patamar de imperadores divinos e desbravadores implacáveis. Boa parte da prole sucumbiu por conta de tamanha facilidade, enquanto poucos ainda conseguiam, com sorte, erguer seus exércitos e armadas. O mais perdurante de todos da espécie encontrava-se novamente preso em sua armadilha, em uma situação ainda mais atemorizante.

- Ora, maldito! - disse Abamanu, mal contendo-se de tanta raiva, olhando para o círculo luminoso.

Áker estalara os dedos da mão direita e, com rapidez, tocou as duas jovens em seus ombros, desaparecendo dali com elas em milissegundos.

O sigilo explosivo irradiara sua luz alaranjada com mais potência, produzindo um ruído ensurdecedor, passando a preencher toda a extensão da sala.

- Não!!! - berrara Abamanu, olhando para o teto e pondo as mãos na cabeça em desespero absoluto, logo sendo cercado e abocanhado por múltiplas explosões sequenciais que se agravavam com velocidade máxima até destruir todo o recinto.

Do lado de fora da fábrica, em certa distância da mesma, Áker, Rosie e Êmina viraram seus rostos para assistir ao flamejante espetáculo.

A nuvem da explosão soava bela e assustadora em simultâneo, aliado ao poderoso estrondo.

Rosie e Êmina, por fim, se entreolharam, suas expressões suavizando-se com emoção ao passo em que se aproximavam uma da outra... acabando por efetuarem um singelo, apertado e comovido abraço de reencontro.

                                                                                       ***

Hector fora mandado para a floresta de árvores magras e altas, vendo-se solitário ao olhar ao redor, ainda abismado com a cura feita por Áker em sua ferida e ter sido afastado da sala daquela maneira.

A fábrica era avistada à uma considerável distância, e do ponto onde o caçador encontrava-se era possível ver exatamente uma das paredes externas da sala de controle.

Com seus apurados instintos lupinos bem aflorados e equilibrados, o caçador detectara ruídos de passos aproximando-se de onde estava. Olhara por cima do ombro direito, suspeitando da presença.

"Algum animal selvagem? Um soldado de Abamanu? Não...", pensava ele, virando-se para a direção de onde vinham tais passos. "Tenho quase 70% de certeza... É um ser humano... são movimentos característicos de uma pessoa, é inconfundível.", constatou, já preparando-se.

Virara o corpo e o rosto para vários lados, tentando abstrair precisamente a direção de onde os passos vinham.

"Apareça de uma vez. Só vai estar perdendo seu tempo esperando que eu baixe minha guarda.".

- Trabalhe melhor seus instintos... caçador. - bradou uma voz masculina sintetizada e grave, soando quase demoníaca.

Hector captara a direção exata, virando-se assim que ouvira a assombrosa voz, não tardando a estremecer com o que se deparara. Uma expressão de desafio surgiu em seu rosto, o fazendo revisitar, em pensamentos, o dia em que um pequeno grupo de lobisomens meta-simbiontes atacaram o Casarão de modo inexplicável e razões desconhecidas, ocorrido que lhe deixou com várias dúvidas.

O tenebroso homem vestido com macacão de couro preto que lhe cobria o corpo inteiro, equipado com aparelhos e fios na cintura e nas costas e que usava uma máscara de mesma cor com um par de olhos redondos e vermelhos voltara para assombrar Hector, dando passos ameaçadores.

- Surpreso em me ver? - perguntou o assassino, entortando levemente a cabeça, parecendo estranhar a reação de Hector.

- Honestamente... não tanto. - confessou o caçador, recuando devagar, a face séria. - Não seria inocente a ponto de imaginar que a primeira vez que nos vimos também havia sido a última. - fez uma pausa, olhando-o com rigorosidade. - Tentou me matar e pelo modo como o fez certamente deixava claro que retornaria para concluir o serviço.

- E agora estou aqui - disse ele, chegando mais perto - para arrancar de você o que roubou daquelas pessoas que, para você, não passavam de mais uma refeição qualquer do dia.

- Escute bem, eu lembro exatamente do que disse. Cada palavra. - disse Hector, em uma tentativa de convencimento. - Uma testemunha. Você é a principal testemunha do assassinato que causei.

- A única! - disse o assassino, ríspido.

- Sim... está bem... - disse o caçador, olhando de relance para trás, ouvindo barulhos estrondosos e  advindos da sala de controle da fábrica e uma luz azulada e frenética há alguns quilômetros. - Eu entendo. - afirmou, voltando-se para seu opressor, sem nenhum resquício de receio.

- Entende? - indagou o algoz, friamente descrente. - Ah... eu farei com que entenda melhor. - aproximou-se com mais ameaça em seu tom. - Farei com que sinta a mesma dor que fez aquelas pessoas sentirem. Igual ou pior. - falou, fazendo surgir de seus braceletes cinzas duas lâminas médias pontiagudas e reluzentes.

O assassino mascarado avançara contra Hector, movimentando os braços com rapidez a fim de conseguir efetuar um corte grave no rosto ou no corpo do caçador, protegido apenas pelo sobretudo de couro marrom e pela camisa preta que ele vestia por baixo. Hector, na defensiva, esquivava-se das lâminas no mesmo ritmo, seus reflexos bem aprimorados lhe dando uma vantagem singular. Contudo, o assassino girara, logo dando um chute no rosto do caçador, fazendo-o cair de um só joelho no chão.

Aproveitando a deixa, o mascarado tentara golpeá-lo com a lâmina do bracelete esquerdo visando uma perfuração profunda nas costas do caçador. No entanto, Hector movimentara-se rápido e segurara a espada antes que ela penetrasse em seu corpo, mantendo-se de um só joelho e olhando para seu algoz com uma frieza que só instigava a atacar com mais violência.

Hector dera-lhe uma rasteira, derrubando-o no chão. Velozmente, o homem de preto reerguera-se, logo dando um pulo de costas até um dos galhos mais altos de uma árvore próxima. Hector correra para escapar dali e reencontrar Rosie, ignorando a ameaça do vingativo homem. Porém, o assassino pulara para frente para cair por cima de Hector, mantendo o braço direito esticado com a afiada lâmina ainda à mostra, visualizando perfura-lo de uma só vez pelas costas. Dois golpes em um. Pelo menos era isto que se tinha em teoria.

Com o reflexo aflorado, Hector virou-se, sem outra escolha a não ser ceder ao instinto e, sobretudo, despertar a fera que se contorcia em seu interior ansiando por alimentar sua fome incontrolável. Já transformado, o caçador rosnara com selvageria e ódio e, barrando seu inimigo ao pega-lo pelo pescoço no exato momento em que a espada o atacaria. O empurrara contra uma árvore, as costas batendo com impacto no tronco. O caçador avançara contra ele, fazendo crescer suas garras e o mantendo preso com uma mão no pescoço e ameaçando rasgar sua máscara com a outra.

- Pensa que pode escapar do seu castigo iminente? - questionou o assassino, a voz sintetizada cada vez mais fantasmagórica. Sem demora, usara a lâmina direita para fazer um corte no abdômen de Hector. O caçador gritara em dor, revidando ao bofeteá-lo na máscara, logo sentindo o sangue escorrer pela ferida e manchando sua camisa preta.

O assassino levantara-se, realizando cambalhotas típicas de artes marciais conhecidas para executar um novo golpe. Hector, rosnando, observou suas movimentações, visualizando com precisão, mesmo com a dor aguda que sentia, o ponto onde deveria atingi-lo. Quando o opressor intencionara ataca-lo com as duas lâminas após dar a cambalhota final, Hector fora mais rápido, desviando o rosto das lâminas e cravando profundamente suas garras na roupa de couro do oponente, não tardando a sentir a carne humana sangrar por entre seus dedos. Uma espada fizera um pequeno corte no seu rosto - saindo um filete de sangue -, o que seria fatal caso ocorresse o contrário, se o caçador somente visasse atacar com as garras sem se esquivar com a cabeça ao ver as duas espadas vindo de encontro ao seu rosto.

O assassino gemia, além de começar a tremer, quase perdendo o equilíbrio. Fechou os punhos, o que fez com que as lâminas voltassem para dentro dos braceletes, o ruído rápido e rascante soando irritante aos ouvidos do caçador. O homem de preto agarrara o braço de Hector, cuja mão ensaguentada ainda estava dentro da ferida com as garras cravadas no corpo, na tentativa de tira-lo à força. Em resistência, Hector não cedia e lutava para manter as garras na ferida, fitando seu adversário com cólera sem limites naquela face monstruosa com presas pontiagudas.

- Já... já che... - gaguejava o assassino, apertando um botão em um dos aparelhos acoplados à sua roupa. De repente, uma voz mais humana e aflita falara. Uma conhecida voz para os ouvidos de Hector. - Tudo bem! Tudo bem! - dizia ele, querendo se afastar. - Já pode tirar suas garras de mim, Hector! Já chega!! - vociferou ele, em desespero.

Voltando à forma humana, Hector retirara sua mão da ferida no corpo do seu oponente, recuando alguns passos, tão enojado quanto estupefato, mal conseguindo respirar. O sangue gotejava de seus dedos e ínfimos pedaços de carne grudaram pegajosamente nas unhas. Aquilo era o de menos comparado com a revelação que se apresentara diante dos seus olhos, para seu total espanto e decepção pura.

O assassino recuava mais passos, tirando a máscara sinistra, logo exibindo sua face. O rosto relativamente robusto, o cabelo curto e a barba meio ruivos com o rosto com algumas poucas sardas e olhos verdes avivados. Hector o olhou de baixo à cima, como se não o reconhecesse, a desilusão amargando seu coração.

- Isso... não pode estar acontecendo. - disse ele, em negação. Apontou o dedo para seu oposto. - Isto é um truque! Desfaça deste rosto agora mesmo. Aliás... retire já esta máscara! - vociferou, deixando cair uma lágrima.

- Não tem máscara, nem ilusão, nem nada do tipo, Hector. - disse Edgar, com frieza, largando a máscara negra. - É tão real quanto pensa. - falara, rindo levemente.

- Por que? - perguntou Hector, a voz embargada de emoção. - Só me diga... uma coisa: Por que? - tornou a perguntar, com rispidez.

- Lhe direi mais do que isso, na verdade. - retrucou Edgar, soberbo. - Também vou lhe dizer sobre a dor que seu ato me fez sofrer nos últimos dois anos. Não, eu acho que... - olhou para sua roupa especial. - ... palavras não são suficientes para expressar tamanha dor. Minhas espadas, minha agressividade, junto com toda a minha raiva que alimentei nestes dois anos já falam por si. - fez uma pausa, dando alguns passos à frente, os olhos frios fixos em Hector. - Aquelas pessoas não mereciam morrer, Hector. Eles eram minha única família. E você os tirou de mim... então nada mais justo do que tirar de você aquilo que você tirou deles. Eu daria um fim digno a sua vidinha medíocre! Se pelo menos tivesse se controlado como eu naquele dia...

- Espere, como disse? - indagou Hector, franzindo o cenho, como se não tivesse ouvido direito. - Controlar o...

Interrompendo-o subitamente, Edgar transformara-se com um furioso rosnado, sua licantropia sendo despertada após dias adormecida de modo forçado. Estremecendo, Hector dera um arquejo de surpresa.

- Por que estão tão impressionado, seu idiota miserável? - perguntou Edgar, mostrando as pontudas presas, seus pelos um pouco elevados. - Será que ainda não se olhou no espelho? Deve saber qual a sensação. A sensação de ter se tornado aquilo que você tanto desprezou na vida!

- Há quanto tempo, Edgar? - perguntou Hector, sem tempo para discutir coisas em comum.

- Desde que fui desvinculado do Colégio de Caçadores. - revelou Edgar, corajoso. - Os mesmos que me morderam... - olhou enviesadamente para a sua direita. - ... são aqueles que agora estão ao meu lado. Também os mesmos que invadiram sua casa em Raizenbool...

- O quê!? - disse Hector, aborrecendo-se com a confissão. - Então você é o responsável por ordenar aquele ataque?

- Por que acha que eu apareci por último, hein? - perguntou Edgar, andando alguns passos para um lado. - Era a chance que eu tinha de capturar você e mata-lo com minhas próprias mãos.

- Espere um minuto. - disse Hector, erguendo levemente uma mão, ficando pensativo por alguns segundos. - Tentou forjar sua própria morte... usando uma outra pessoa para se passar pela testemunha do assassinato. Mas agora você está em poder do manto...

Edgar apanhara a máscara e mostrara para Hector o seu interior, no qual via-se um pequeno aparelho retangular preto acoplado na parte da "boca".

- Está vendo isso aqui? - perguntou ele, apontando para o objeto. - É um sintetizador de voz minimizado por tamanho, mas incrivelmente potente no tom. Foi a única alteração que fiz em relação aquele dia na roupa. A pessoa que entrou na casa e atirou em nós dois... - ele rira debochadamente - ... não exprimiu uma única palavra.

A explicação deixara Hector ainda mais aturdido, sentindo uma ojeriza crescente pela natureza daquele que um dia esperou considerar como um grande amigo. "E pensar que cheguei a cogitar recruta-lo para a Legião com a autorização do Mestre... ao menos para preencher o vazio que Adam deixou.". pensou ele, desalentado.

Edgar prosseguira:

- A diferença daquele dia para hoje com relação à máscara era de que havia um gravador. - revelou Edgar. - Três dias antes, eu, previamente, gravei uma mensagem com o sintetizador e conectei a fita com o gravador na máscara, o que explica toda essa... - olhou para a roupa. - ... aparelhagem. Sei que deve ter estranhado logo de início, eu também achei um pouco excêntrico. - tornou a olhar para Hector, sem alterar a frieza na expressão. - Meu contratado atirou duas balas diferentes. Em você, foi um paralisador de músculos, você perderia, permanentemente, todos os movimentos dentro de poucas horas. Já em mim foi um sedativo que apagou todos os meus sentidos instantaneamente. Pesou um pouco no bolso, mas valeu a pena. Fiquei desacordado por 20 minutos, quando despertei a primeira coisa que vi foi meu contratado duro feito uma rocha no chão, com a roupa chamuscada e exalando um pouco de fumaça. Obviamente tinha sido eletrocutado, pois, além de ver uma mancha preta no chão, eu retirei a máscara e senti seu rosto meio quente, só constatando que ele estava morto depois de verificar seu pulso. - fez uma pausa, voltando a olhar para sua direita. - Era para ser um serviço rápido. Ele mataria você naquele exato instante... se não fosse pela coisa que te salvou.

- E imagino que anseia por saber. - deduziu Hector, mantendo-se alerta à sua volta.

- Isso pouco me interessa agora. - retrucou Edgar, sem vontade de escutar a verdade sobre a pessoa que salvara Hector do atentado. - Naquele dia... na manhã em que fomos impedir os infectados de sequestrar mais pessoas... Eu vi... todo o sangue ser derramado... cada parte do corpo sendo trucidada pelas suas garras... você tratou minha família como bois a caminho do abate. Jamais vou perdoa-lo por isso, Hector.

- Mas foi necessário. - disparou o caçador, sem medo. - Logo quando entrei, um mimético estava prestes a ataca-los e sequestra-los em seguida, agi prontamente e o decapitei. Em outras palavras, os mantive a salvo, sem pensar no que viria a seguir. E foi então que... mais duas vans chegaram e mais dois deles vieram em direção à casa... - fitou-o tristemente, demonstrando puro arrependimento. - Eu já me encontrava em meu limite, quase sem nenhum controle sobre meu corpo e minha mente. Apenas senti a fome crescer dentro de mim. Tentei manter esse animal enjaulado... Juro que tentei, Edgar! Acha que eu os mataria mesmo que nenhum mimético estivesse se aproximando para leva-los?

- Sim, eu acho. - provocou Edgar, raivoso. - Foi a mesma sensação que tomou conta do meu ser quando me transformei pela primeira vez. É como se houvesse um parasita querendo assumir o controle absoluto do seu corpo. Sua mente e alma passam a ser dele. - fez uma pausa, enxugando uma lágrima. - Assim que as vans se aproximavam... eu deixei de espiar pela janela , corri para o outro lado da rua e me escondi em um arbusto.

- E em seguida - completou Hector, fortemente comovido. - eu avancei contra os dois miméticos que pararam na soleira da porta quando me viram transformado e com as mãos sujas de sangue. Por fim, eu voltei ao normal, peguei a faca e os decapitei.

- Eu vi isso também. - disse Edgar. - Depois corri imediatamente para o bosque para que eu não fosse visto por você. Quando nos reunimos novamente, fingi estar desconfiado por você ter voltado duas horas depois do término da missão, na qual salvamos apenas duas pessoas. Mentiu para todos dizendo que foi capturado por um grupo de infectados, sendo mantido refém em um cárcere.

- Precisei de um bom tempo para assimilar toda o estrago que eu causei. - defendeu-se Hector, categórico no tom. - Somos dois monstros que se deixaram levar pelo instinto assassino adormecido em nossas almas.

- A diferença entre nós dois Hector... - disse Edgar, recuando alguns passos de modo suspeito. - ... é que não matei pessoas logo na primeira transformação. Eu fui psicologicamente forte o bastante para adestrar esse lobo feroz dentro de mim, matando somente animais selvagens que encontrava pelo caminho. Mas você... foi fraco. - afirmou, intencionando humilha-lo. - Você teve sorte. Mas só porque jogou sujo quando se transformou, enquanto eu ainda estava no meu normal, lutando como um humano, pois do contrário você desconfiaria. Posso não chegar a mata-lo, mas ainda existe um destino pior.

- E qual destino pior do que a morte você considera para mim? - perguntou Hector, descrente.

- Obrigado por perguntar. - disse Edgar, dando um sorriso cínico, enquanto tirava algo de uma pequena caixa preta presa ao cinto. Com seus olhos extremamente atentos, Hector vislumbrou um objeto de vidro com um conteúdo de cor vermelho. Edgar olhara para a ampola que segurava, logo depois mostrando-a ao caçador com um sorriso de satisfação. - O que seria mais doloroso do que a morte? O sofrimento. Lento e desesperador.

- Mas o que... - indagou Hector, franzindo o cenho, relanceando a ampola com sangue. - O que significa isso, afinal? Que tipo de loucura planeja fazer, Edgar?

- Essa é uma amostra do seu sangue. - disse Edgar, direto. - Sabe... honestamente, devo dizer que não fui totalmente honesto com você.

- Como já era de se esperar. - disse Hector, olhando-o com mais desprezo, andando para um lado.

- Naqueles sete dias que se passaram - disse Edgar, confiante - nós já estávamos bem adiantados. E quando eu digo nós, eu quero dizer que usei um dos meus companheiros para fazer o serviço. Lembra do caçador que mandei para as Ruínas Cinzas para confirmar se você estava vivo ou morto? Pois bem... - fez uma pausa, andando calmamente, pensativo por um breve instante. - Aquele não foi a única vez que ele pisou naquele lugar cheio de escombros.

Hector sentia uma náusea elevar-se dentro de si.

- Na manhã seguinte àquela noite maluca, eu o mandei que fosse até lá... ele me passou informações privilegiadas. Na verdade, ele eu enviei para que coletasse amostras sanguíneas de todos que estavam lá. Eu suspeitei que você eu seus companheiros talvez não fossem mais humanos... sim, eu suspeitei que a Legião dos Caçadores tinha largado os bons costumes e apostou tudo para vencer um inimigo invencível. Mas como não havia mais ninguém por lá, demos-os como mortos ou desaparecidos, pois ele encontrou alguns resquícios de sangue nos escombros. Mas só estava você lá. Caído. Inconsciente e sujo de poeira. Ele o furou com a agulha e surrupiou um pouco do seu sangue. Secretamente, verifiquei, com um microscópio, a composição. Depois veio a confirmação: O célebre ex-líder da Legião dos Caçadores é um licantropo meta-simbionte. - fitou Hector com escárnio, balançando a cabeça em negação e desaprovação. - Estipulei um prazo de mais seis dias para ele voltar lá e encontra-lo acordado... e no fim foi pura sorte, justo no dia exato do fim do prazo, lá estava você, erguido e desesperado por encontrar seus amigos.

- Nós nunca sacrificaríamos nossa humanidade para impedirmos uma ameaça. - disparou Hector, desapontado. - Qual seu objetivo, Edgar? O que realmente mais você quer, além da minha morte... para aliviar toda essa sua dor?

- O bastante para manchar sua imagem de caçador. - revelou ele, arqueando as sobrancelhas e balançando de leve a ampola. - Francamente, acho uma pena seus amigos ainda estarem vivos. Uma humilhação solitária é tudo o que você merece, já que até a morte parece rejeitar você. - inclinou-se levemente para o caçador, ainda mostrando a ampola. - Isto que está na minha mão... é a chave para destruir sua carreira como caçador da Legião, Hector.

De repente, dois meta-simbiontes, comparsas de Edgar, surgiram irrompendo dos altos arbustos em passos intimidantes e com rosnados selvagens. Ambos vestiam roupas características de caçadores.

Afastando-se um pouco, Hector dera-se conta da gravidade exposta do dilema em que fora colocado.

Edgar insistira com as ameaças, andando para trás e se juntando aos seus parceiros.

- Eu só a trouxe para que soubesse do meu plano. - disse ele, sentindo-se vitorioso. - Você é um meta-simbionte muito diferente, Hector. Consigo ver algo de especial. Seus movimentos, o jeito como se defende e ataca... - olhou-o dos pés à cabeça, com falsa admiração. - Invejável, devo dizer. Inigualável, talvez você seja o mais forte da espécie. Mas estes dois bons homens aqui são um pouco mais experientes que eu em carnificina, então... muito provavelmente vão deixar você bastante ferido. É o mínimo que posso esperar. - recuou mais passos, objetivando uma retirada, ao passo em que os dois aliados aproximavam-se devagar para ataca-lo de surpresa em resposta a qualquer movimento brusco. - Sei que não parece muito justo... mas você não foi com meus parentes, não é?

- Espere, Edgar, o que...

- Ah sim! Eu sei o que quer perguntar. - disse ele, interrompendo-o, mantendo a ampola em sua mão direita. - Quer saber qual será meu próximo passo. Bem, deixe-me ver... - pôs o indicador esquerdo no queixo, fingindo estar pensando no caso. - Acho que hoje a noite será uma ótima hora para revelar a verdade ao General Holt. O que acha?

Hector sentira seus pelos eriçarem em questão de segundos, fazendo um contato visual com Edgar de modo a dizer para não pensar em agir com um ato audacioso daqueles. As cartas haviam sido postas na mesa, e o caçador perdera todas as rodadas, vendo-se sem escolha a não ser render-se à derrota.

- Quando o General souber... - disse Edgar, insistente. - Todas as suspeitas que ele alimentou até agora... serão confirmadas com apenas alguns milímetros de sangue em uma análise de DNA. Eu nem consigo imaginar... a forma como ele vai mobilizar suas tropas para caçar você implacavelmente por todo o país, se possível pelo mundo todo caso consiga fugir do país. Também sei das provas que ele reuniu. Um diário bobo... algumas anotações suas sobre os estágios dos infectados... uma amostra da substância que Rosie Campbell ocultou... e cinzas do lado de fora da casa no dia da invasão. Sabe-se lá como um dos meus soldados foi incinerado... mas isto não vem ao caso.

- E depois de feita esta parte do plano... - disse Hector, tentando manter-se calmo ante aquela tensão, suando bastante. - ... o que fará? O que fará quando finalmente souber da minha queda como caçador?

- Será que não percebe? Você já caiu. - afirmou Edgar, zombeteiro. - Solitariamente, vou comemorar. E me preparar para voltar ao Colégio dos Caçadores daqui a um ano e participar dos exames de qualificação para a nova Legião dos Caçadores. O Mestre Vannoy me contatou ontem. Disse que vai permitir seus amigos de agirem livremente quanto a ameaça que pode destruir a humanidade. Vocês não são mais caçadores! - exclamou, com um sorriso sacana no rosto.

Uma efervescência subira em Hector, fazendo-o encarar Edgar com olhos coléricos e dentes rangindo.

- Isso. Demonstre sua raiva. - disse Edgar, estimulando o estresse do caçador. - Se quiser me pegar, vai ter que passar por eles, o que no caso não seria muito inteligente, já que eu fugiria. Por outro lado... Você pode escolher correr daqui e eles não vão ataca-lo. De qualquer forma, vai estar permitindo que eu fuja. - afirmou, dando um risadinha escarniante.

Um som longínquo de uma intensa explosão fora ouvido pelos quatro. Hector olhara para trás, alertado pelo estrondo. Surpreendido pela volumosa nuvem de fumaça que tomava forma e elevava-se vertiginosamente, o caçador deixou especulações amedrontadoras corroerem suas esperanças.

Voltou-se para seus opressores, com decisões ainda nebulosas na mente.

- Acho que conheço essa expressão. - disse Edgar, provocando-o. - Fuga e medo. Vamos lá, vá salvar as valiosas vidas de seus amigos... enquanto deixa escapar o elemento que vai retalhar sua trajetória como caçador. Sua fama, reputação... tudo isso vai...

Pegando Hector de surpresa, três raios retos, flamejantes e de luz amarelada desceram dos céus rapidamente de encontro ao chão... de encontro aos seus três alvos, incinerando-os em poucos segundos.

Sobressaltado e alarmado, Hector recuara vários passos, encarando o processo com estranheza máxima na face.

Passados breves instantes, conseguira entrever uma forma humana em meio a fumaça. O solo se encheu de ínfimas brasas e labaredas pequenas, não causando tantos danos quanto o caçador pensou que haveria enquanto assistia seus inimigos serem massacrados sem aviso.

Ainda surpreso, ele aproximou-se um pouco e vira o responsável.

Edgar e seus dois comparsas foram reduzidos à cinzas de modo violentamente abrupto.

- Eu já devia imaginar... - disse Hector, suspirando com certo alívio, olhando para um canto da floresta. Voltou seus olhos para seu salvador.

Áker descera uma parte meio íngreme do solo, encaminhando-se ao caçador, baixando a mão direita que usara para realizar aquele fabuloso ataque.

- Impressionante. - elogiou Hector, sorrindo fracamente. - Como o fez?

- Reúno o máximo de energia solar a partir de uma certa altura. - explicou Áker, chegando mais perto, o olhar condescendente. - A partir do que vocês chamam de ionosfera. Converto-a em descarga retilínea em direção a um alvo específico. É bem mais fácil conjura-la em mundos pequenos como este, que necessitam do sol para sobreviver. - fez uma pausa, olhando para os "cadáveres". - Tagarela demais, não acha?

- De pleno acordo. - aquiesceu Hector, fitando as brasas com certa angústia. - Edgar estava falando mais sério do que qualquer monstro que já me ameaçou em caçadas passadas. - olhou para Áker. - Realmente seria o fim da minha estrada como caçador... se eu o deixasse fugir, pude ver nos olhos dele... todas a negatividade acumulada por meses. Ele morreu... com a certeza de que eu fazia meu trabalho por aliciamento do ego. Por uma reputação que nunca pedi. E pensar que chegaríamos a ser amigos... que ele preenchesse a vaga deixada por Adam.

- Talvez devesse parar para pensar - disse Áker - sobre como deve depositar suas expectativas nas pessoas. E, acima de tudo, sobre quem.

- Não confio em Holt. Se Edgar saísse vivo... Não, sinto medo só de pensar. - disse Hector, passando as mãos no rosto exibindo cansaço.

- Por falar nisso... - disse Áker, entregando um objeto de vidro com um conteúdo avermelhado para o caçador. - Acho que isto pertence a você.

- Achei que tivesse a destruído. - disse Hector, pegando seu sangue, logo guardando em um dos bolsos internos do sobretudo. - Me livrarei disso depois. Não quero que nenhuma gota caía nas mãos do Exército. - tornou a fitar Áker, com gratidão na face. - Não sei como devo agradecê-lo. Nem se chegarei a retribuir um dia, mas...

- Tudo bem. - disse o arauto, sorrindo levemente. - Em uma ocasião tensa, acredito que faria o mesmo por mim.

- Não me julga por ser um assassino impiedoso de quatro pessoas inocentes? - perguntou Hector, levantando uma sobrancelha.

- Me recuso. - retrucou Áker, tranquilo no tom. - Estava sob o controle de uma fera irracional. Não o fez conscientemente. O monstro trocou de lugar com você. E não pense que estou sendo flexível com você por ter uma ligação forte com Rosie. E... nunca pensei que diria isso, mas... eu concordo com Abamanu. - disparou, sem hesitar.

Hector quase engasgara-se com a saliva. Olhou-o com o cenho franzido, balançando a cabeça negativamente.

- Você tem noção do que acabou de dizer? - perguntou o caçador, estranhando.

- Plena. - retrucou Áker, com um sorriso calmo. - Mas o ponto que estive de acordo... foi sobre você e Rosie. O inevitável encontro. Eu realmente creio que estava pré-determinado. Não sei quanto a você, Rosie me disse uma vez que é bem cético com relação a certas coisas. Como bruxas, por exemplo.

Hector dera uma risada envergonhada.

- Sim, é verdade. Ao me relacionar com uma bruxa passei a acreditar na existência de um mundo infernal, regado de dor e sofrimento para almas sombrias. Talvez seja lá que eu deva ficar quando morrer. - olhou para Áker, tocando-o no ombro. - Por favor, me prometa que não vai contar à Rosie que lhe falei sobre isso, embora ela já saiba: A avó dela é uma bruxa rejuvenescida com quem tive uma curta parceria. Foi ela a responsável por fazer meu corpo absorver a pedra Ônix, depois que ela foi às Ruínas Cinzas absorver aquela energia.

- Não direi nada, fique tranquilo. - garantiu Áker, amigavelmente. Era sua vez de tocar Hector no ombro. - Muito bem. Hora de ir.

- Para onde? - indagou o caçador.

- Vou leva-lo para casa. Precisa descansar. - disse Áker.

                                                                                              ***

Rosie e Êmina caminhavam às pressas pela floresta, na tentativa de encontrar uma base emergencial instalada pelo Exército Britânico para tratar de vítimas, o que incluía os resgatados da fábrica.

- Tem mesmo certeza de que esta é a direção certa? - perguntou Êmina, incerta, andando atrás da jovem encapuzada, atenta os arredores.

- Eu imaginava que colocariam setas para qualquer soldado se orientar e encontrar a base... - disse Rosie, preocupando-se com alguma medida relevante que o planejamento deixou passar despercebida. - ... mas não. Não há nada aqui! - parara, aborrecida com o suposto deslize.

- É, parece que estou por sua conta agora. Eles te deram um poder de decisão, mesmo te dispensando. - disse Êmina, tranquila.

- Como é? - indagou Rosie, franzindo o cenho. - Você acha que...

- É só uma especulação. - esclareceu ela, interrompendo-a. - Em outras palavras, você decide qual vai ser meu destino de agora em diante. Talvez tenham escondido isso de você... porque... você sabe...

- Por que sou uma mulher, o que para eles é um sinônimo de distração. - disse Rosie, parecendo ter chegado à uma conclusão, suspirando para manter a paciência. - Ainda sonho com o dia em que ao menos seremos tratadas com alguma dignidade.

- Já eu não sou tão otimista assim. - disse Êmina, andando calmamente, chutando de leve algumas folhas. - Isso me faz lembrar do que minha mãe me contou sobre minha avó. Ela era sufragista. Muito batalhadora, nunca baixou a cabeça para injúrias ou acusações infundadas. - olhou para Rosie, condescendente. - Rosie, olha... Não precisa da aprovação desses caras fardados para reconhecer seu valor. Ter me resgatado já é uma prova maior. Obrigada. - assentiu para ela, comovida.

Rosie retribuiu com um leve sorriso e um olhar meio entristecido, exalando ar de exaustão.

- Senhorita Campbell! - chamara uma voz apressada ao longe, ambas logo notando se tratar de um soldado à procura de Rosie.

- E bateu a saudade. - comentou Rosie, o ar brincalhão, arqueando as sobrancelhas.

Apresentando cansaço ao arfar bastante, o soldado caucasiano e de porte atlético chegara próximo das duas com tom de alarde, apoiando-se numa árvore com um braço.

- Vim para avisa-la de que... - pausou para recuperar o fôlego. - ... de que Edgar sumiu misteriosamente. Quando foi a última vez que o viu?

- Depois que terminamos o interrogatório com o mimético - disse Rosie, desconfiada. - nós nos separamos. Desde então não vi mais ele.

- Ah, esses caçadores... - disse o soldado, desapontado. - Vocês deviam ter esperado um de nós vir.

- Isto não constava no planejamento. - retrucou Rosie.

- Mas o planejamento cobria apenas o início, meio e fim da missão, não o que viria após ela. - treplicou o soldado. - Eu me cansaria menos se tivesse me esperado para que eu levasse a resgatada até a base, para se juntar ao Dr. Lenox.

- A propósito, como ele está? - perguntou Rosie, interessada em saber a respeito do estado do cientista.

- Está se sentindo bem. - confirmou o soldado, assentindo. - Nenhum sinal de dano psicológico ou físico. Aliás, eu acho que ele está bem saudável para alguém que esteve confinado por dois anos em um laboratório. - olhara para Êmina, com um sorriso enviesado. - O mesmo não posso dizer de você.

- Não, estou perfeitamente bem. - respondeu Êmina. - Me senti em um hotel cinco estrelas, com um atencioso serviço de quarto e tratamento de luxo. Você já experimentou uma carne assada de rato vinda do melhor esgoto da cidade? - perguntou ela, soando claramente irônica, a expressão com um sorriso de canto de boca e um olhar convencido.

Visivelmente consternado, o soldado fizera expressão de enojo ante à resposta da caçadora, quase que sentindo uma ânsia de vômito emergir de seu esôfago.

- Ahn... Err... - dizia Rosie, sem saber bem como intervir, olhando para ambos. - Acho melhor irmos rápido. Os outros devem estar preocupados. - disse ela, tornando a caminhar.

- Eles? Preocupados? Com você? - perguntou Êmina, indo atrás dela.

- Eu estava, confesso. - disse o soldado, passando a ir na frente, como que servindo de guia para ambas.

- Como os outros estão se saindo? - perguntou Rosie.

- Segundo as últimas informações que me foram fornecidas, alguns ainda estão travando confrontos com pequenos grupos de infectados, mas acredita-se que boa parte deles já se encontra nas caixas criogênicas que serão transportadas para o QG do Ártico daqui a quinze dias. - informou ele, falando de modo sério, ziguezagueando por algumas árvores mais finas.

- Estou precisando seriamente de um banho. - disse Êmina, apertando o passo.

- E de um hotel melhor. - completou Rosie, logo desatando a rir.

- Com funcionários humanos. - disse Êmina, logo contagiando-se pelo riso.

                                                                                                 ***

QG Alternativo do Exército Britânico -  16h20.

O General Holt encontrava-se deitado sobre uma cama com equipamentos ao lado, na área hospitalar da base alternativa, em um quarto branco de uma só janela.

- Ah, merda. - praguejou ele, despertando. Seu rosto estava virado para sua esquerda. - Não deixaram a cama próxima da janela, assim não posso apreciar a bela vista que esse andar... - logo tossira fortemente.

Um soldado entrara no mesmo instante, trazendo um pequeno volume de papéis.

- O médico sugeriu que o senhor evitasse falar muito. - avisou ele, andando em direção à cama.

Holt se limitou a olhar para o teto, entediado, a cabeça confortavelmente sobre o travesseiro.

- Eu nem ao menos lembro como cheguei aqui. - disse ele, ainda sentindo resquícios de exaustão.

- O senhor foi sedado antes de passar pela cirurgia. - informou o soldado, colocando os papéis sobre uma mesinha próxima da cama. - Estes são os relatórios preliminares da força-tarefa de hoje. Acho que os oficiais só chegarão á sua mesa mais tarde, senhor. Está uma correria lá fora.

- Alguém invadiu o QG? - perguntou Holt, alarmando-se ao olhar desesperado para o soldado.

- Não, não senhor... - disse ele, gaguejando, dando-se conta de que escolheu mal as palavras. - Não há invasão nenhuma. Só... estamos um pouco atarefados. - esclareceu, pondo as mãos para trás, de pé ao lado da cama. - A imprensa começará os preparativos para a noticiar a intervenção da nossa equipe na tentativa de contaminação. O prefeito havia sido infectado, mas foi parado por nós quando tentou escapar com outros, também infectados, assim que demos voz de prisão. Felizmente, nenhum civil presenciou eles sendo mortos com tiros na cabeça, cuidamos de tudo para acobertar, recolhemos os corpos discretamente, depois demos um comunicado à população dizendo que tudo não passou de uma armadilha forjada para parecer uma imunização coletiva e que recebemos a informação de uma fonte segura e anônima, além de termos constatado que usariam mesmo a substância tóxica para infectar a população e mostramos para que acreditassem totalmente em nós.  - fez uma pausa, pigarreando. - Além disso, o grupo B do pelotão alternativo conseguiu chegar a tempo à rede de esgoto, tiveram bastante sucesso em impedir uma contaminação que se alastraria... até se tornar em nível mundial. Os infectados que iriam cometer esse parte do plano foram levados para becos, amarrados e amordaçados, e depois decapitados em lugares discretos. Recolhemos todo o material tóxico, está tudo armazenado nas cápsulas criogênicas, todas elas para serem transportadas à base no Ártico daqui a quinze dias.

- Menos mal. - falou Holt, aliviando-se.

- Eu não teria tanta certeza. - retrucou o soldado, o tom pesaroso.

- O quê?! - indagou Holt, virando o rosto para o subordinado rapidamente, o cenho franzido. - Soldado, faça-me o favor. Se existe um problema ocorrendo dentro do QG é sua obrigação informar diretamente à mim, não esconda nada com receio de que vá afetar o meu estado, independente do caráter da informação. Eu estou bem. - olhou-o fixamente. - Fale.

O soldado engolira em seco.

- Nós... - hesitou ele, respirando fundo. - ... encontramos o cadáver do soldado Heller... dentro do freezer. Decepado e com órgãos em falta. Não existe um consenso sobre quem possa ser o responsável...

- Sei como estão se sentindo. - disse Holt, interrompendo-o. - Devem estar... confusos. Afinal, Heller estava comigo na operação em Birmingham. Você foi um dos ficaram aqui reunindo as informações que os participantes da operação traziam via rádio. A que horas a descoberta foi feita? - perguntou, o tom de luto.

- Às dez e meia, senhor. - afirmou o soldado, tristonho.

Holt assentira levemente, olhando para o nada e imergindo em pensamentos por alguns segundos.

- Isso não lhe parece estranho, senhor? - perguntou o soldado, intrigado com a calma com a qual o General lidava com a situação.

- Honestamente... não. - respondeu ele, seco. - Foi um deles, soldado. - apontou para a ferida enfaixada por gazes manchadas com um ponto vermelho - Um deles perfurou minha carne apenas com a mão. Ele se passou pelo soldado Heller durante um tempo.

- Se passou... - disse o soldado, cético. - Mas como? Ele era uma duplicata ou algo do tipo?

- É difícil explicar... sem um estudo profundo e completo sobre a criatura que me fez de bobo. Ninguém engana assim tão facilmente William Buck Holt. - disse Holt, relembrando a face pentelha e sacana de Mihos. - Só posso dizer que é parte do desconhecido. Pertencente a um alto escalão que enxerga nosso mundo e sociedade como uma fazenda de formigas. - fez uma pausa, olhando enviesadamente para o homem. - E isto não é a anestesia falando, pode ter certeza.

- O que achou que eu estava pensando, General? - perguntou o soldado, incerto.

- Que posso estar delirando. - disparou Holt, soando meio ríspido. - Eu quero acreditar, soldado. Ainda quero inspirar as pessoas a acreditarem no desconhecido. Fui alvejado por esses seres superpoderosos duas vezes... - fitou o vazio por um breve instante. - ... e por duas vezes fui humilhado. Por pouco não tive o outro olho arrancado. - deixara uma lágrima escorrer. - E por causa deles perdi em dias mais do que perdi em anos. Mas não vou parar. Eu fui poupado...

- Ahn... senhor. - interviu o soldado, tocando seu superior no ombro. - Remoer esse fato só vai prejudicar ainda mais seu estado. Não acha melhor... descansar um pouco, dormir agora e poder acordar somente amanhã? - sugeriu ele, esboçando preocupação.

- Só me diga que acredita. Por favor. - pediu Holt, o semblante firme.

- Sim. - disse o soldado, assentindo. - Eu acredito no senhor.

- Não me referia à mim. - retrucou o General, impaciente. - Eu disse... Ah, esqueça. - desistira, sentindo-se bombardeado por uma onda de cansaço súbito. - Me dê os relatórios. Estou disposto o suficiente para ler.

O soldado pegara a pequena pilha de folhas e entregara-a ao General.

Uma reação inesperada por parte de Holt fizera o soldado estacar enquanto se encaminhava para sair do quarto.

- O que é isto aqui? - perguntou Holt, olhando para uma das folhas com estranheza.

- Ah sim. - disse o soldado, pegando o papel de volta e rindo. - É um dos panfletos que os outros compartilharam comigo. Uma série de leilões vai ocorrer em 10 cidades daqui a 1 mês, então não quero perder esta chance. Não está afim de ir conosco, senhor?

- Para mim isto não vale a pena. - opinou Holt, desinteressado. - Muitos dos leilões deste país são forjados por enganadores que falsificam peças para venderem como se fossem autênticas. Por isso coleciono artefatos que consigo de leiloeiros que agem legalmente, o que não é o caso dessa propaganda medíocre. Tenha dó, soldado... - rira fracamente, zombando do panfleto. - Isto aí nem mesmo diz quais peças vão ser ofertadas. Sinceramente, aconselho a vocês a não caírem nesse golpe.

- Pode ficar tranquilo, General. - disse o soldado, dobrando o panfleto e guardando-o no bolso da farda. - Somos bem espertos para saber onde estamos nos metendo. - por fim, abrira a porta e depois fechara-a, saindo do quarto.

Holt suspirou pesadamente, jogando as folhas sobre a cama diante de si, indisposto demais para fazer a leitura dos relatórios.

                                                                                          ***

Área florestal de Raizenbool - 20h30. 

No casarão, a luz pálida e inebriante do luar banhava a espaçosa sala de estar. Um pouco mais longe da luz da lua, estava Rosie, parada em frente à lareira, olhando para uma fotografia em preto e branco... na qual via-se ela reunida com seus amigos antes de encararem as forças maléficas de Abamanu no catastrófico futuro, o qual a jovem desejava tratar como um mero pesadelo esquecível.

Àquela altura, a calmaria retornara para os humores antes nervosos e exaltados, com Lester tendo recebido um excelente tratamento médico e psicológico na base de apoio do Exército Britânico, sendo posteriormente encaminhado para um hotel em Liverpool, com a estadia de curta duração previamente paga. Por fim, o caçador resolveu aceitar a sugestão de um dos soldados para que se encontrasse com Rosie, podendo preferir tanto voltar para o hotel e receber visitas por lá ou se estabelecer na casa da jovem nos arredores de Raizenbool, ficando por lá o tempo que desejasse.

Sem pestanejar, Lester escolhera a segunda opção, ainda mais sabendo que Êmina também resolvera ficar por lá para espairecer enquanto a batalha final contra Abamanu ainda não possuía seguimentos planejados. Exatamente no fim da tarde daquele dia, ambos reencontraram-se, dando um forte abraço, seguidos de lágrimas de emoção. Rosie contara para eles sobre Adam... e a inesperada partida do mesmo por não suportar mais estar no mesmo time em que Hector Crannon, seu melhor amigo que escondera um terrível segredo por anos, pertencia, alegando que não seria mais a mesma coisa.

Hector escapou de ter de dar satisfações aos amigos desapontados... embora não partilhassem do mesmo sentimento de ódio apresentado por Adam, algo que ambos concordaram que não passou deu ma reação exagerada. A decepção estava estampada em seus rostos, mas sequer uma ponta de raiva foi vista. Hector, naquela noite, perdera a chance de ter o perdão dos próprios amigos com quem travou várias batalhas juntos. Graças ao Exército, o alvorecer do dia seguinte voltou a ser visto com mais otimismo. A humanidade livrara-se da pestilência sombria que destruiria tudo o que significava ser humano. A pestilência que reduziria a luz em trevas entorpecentes.

Rosie sentiu passos calmos andando até a sala, mas precisamente até ela. Virou o rosto, logo percebendo de quem se tratava. Jogou a foto no fogo da lareira, voltando-se para Hector, que se aproximava com postura tranquila, olhando-a amigavelmente.

O caçador, detalhista, notou algo queimando na lareira.

- O que havia jogado? - perguntou ele, curioso. Estreitou os olhos, analítico. - Me parece ser... um cartão de visita... ou uma foto. É isso mesmo? Uma foto? - olhou para ela.

- Sim, mas... é só uma lembrança que resolvi apagar. - disse ela, evasiva, a luz alaranjada das chamas iluminando parte de seu rosto. - Não me serve mais.

- Áker me contou sobre uma nova ofensiva de Sekhmet contra você em Birmingham. Ele me disse quando me teleportou para cá... depois que eu... depois de ele ter me salvado de um atentado à minha vida.

- O quê? - indagou Rosie, disposta a saber dos detalhes. - Espera... eu acho que devo perguntar do começo. Onde você estava enquanto as operações aconteciam?

- A mesma coisa que tentou me matar naquele dia, tentou novamente hoje, logo depois de eu ter sido mandado para fora da fábrica por Áler. - disse Hector, fitando as chamas. - Agora sei como se sente.

- Sobre o quê? - perguntou Rosie.

- Sobre decepções e desilusões. - afirmou ele, olhando-a.

- E dói profundamente na alma. É, eu sei bem como é. - disse ela, séria. - Me diga como foi.

- Edgar. - disse Hector, direto. - Ele não era quem pensávamos ser. Disfarçou todo o ódio que alimentou de mim por dois anos.

- O quê!? - soltou ela, surpreendida, arregalando os olhos. - Mas... mas como? O que você fez para revelar seu lado assassino psicótico? Eu já desconfiava que tinha algo de estranho nele desde que o vi pela primeira vez hoje.

- Minha primeira transformação ocorreu na primeira missão conjunta entre caçadores e soldados do Exército. Os primeiros infectados chegavam em veículos para invadirem as casas e sequestrarem inocentes. Edgar me falou, antes de chegarmos, que ficava próximo de onde seus tios e primos moravam... - sua face passou a adquirir pesar. - ... eu só não sabia que viviam naquela casa. A última da vizinhança. estava prestes a ser atacada, então eu entrei... impedi de serem pegos... mas eu já me encontrava no meu completo limite, mal conseguir distinguir o espaço à minha volta. Depois vieram mais deles para invadir... e não tive outra escolha. Deixei a fera sair da jaula... e cravei minhas garras nos corpos daquelas pessoas. E... uma parte de mim se sente culpada por usar como justificativa o fato de que não havia como eles serem salvos, de que mata-los foi a única saída. - olhou para Rosie, desalentado. - Mas... uma outra parte de mim... me diz que fiz a coisa certa.

- Olha... - disse Rosie, fitando o chão pensativa, sem estar muito no clima para lidar com aquele drama. - ... não vou julga-lo. Estava sendo... vítima de um monstro dentro de você... completamente fora do controle. Sei que a atitude da minha avó foi... impensada, desesperada...

- É sobre ela mesmo que queria saber, não é? - perguntou Hector.

- Quando fiz aquela pergunta eu não pensei nela. Mas já que tocou no assunto... - disse Rosie, olhando para a lareira. - Prefiro falar sobre ela do que sobre seu assassinato forçado. Sei que no fundo não queria fazer aquilo.

- O que a leva a pensar nisso? - questionou Hector, olhando-a intrigado.

- Eu não vi você transformado enquanto ainda estava com seus poderes divinos. - disse ela, relembrando a inesperada aparição do caçador na fábrica. - Eu me sinto vitoriosa. Alem de eu ter impedido você de ser possuído por aquele monstro, eu consegui ver que... você assumiu o absoluto controle da licantropia.

- Verdade. - aquiesceu Hector, baixando um pouco a cabeça, pensativo. - Eleonor foi uma peça fundamental para que eu me controlasse mais. Ela reuniu toda a energia que Abamanu depositou nas Ruínas Cinzas quando levou Charlie com a ajuda do talismã... lembra?

- Sim. - disse ela, assentindo.

- Graças aos feitiços de absorção, ela inseriu a pedra energizada no meu corpo e adquiri cerca de 20% de energia divina.

- Mas espera. - cortou Rosie, erguendo levemente a mão direita, afim de entender. - Como ela foi e voltou das Ruínas Cinzas em tão pouco tempo? Isso tudo aconteceu hoje?

- Sim. - disse ele, sorrindo de leve, assentindo positivamente. - Magia de teleporte.

- Ah sim, claro. - compreendeu Rosie, satisfeita. - Agora só restam dois resgates. - disse ela, determinada.

O caçador virara o rosto para ela, franzindo o cenho.

- O quê? Dois resgates? Negativo. - disse ele, balançando a cabeça.

- Charlie e Alexia. Esqueceu? - retrucou Rosie, olhando-o de soslaio.

- Alexia está junto de Eleonor. - revelou ele, sem rodeios.

Rosie voltara-se para ele com perplexidade na face.

- Sério?

- Por que eu mentiria sobre isso?

- Não, é que... - disse ela, fechando os olhos, sem muita paciência. - Sei que perdi muita coisa, então... acho melhor deixar os detalhes sobre minha vó ter conhecido Alexia para amanhã, minha cabeça está cheia, minha mente está muito carregada, me conte tudo amanhã.

- De pleno acordo. - aceitou Hector, pondo suas mãos para trás, contemplando o fogo. - Garanto à você: Alexia está segura.

- É bom mesmo que esteja. - disse Rosie, parecendo preocupada. - Lembro que disse sobre minha avó estar sendo perseguida por outras bruxas vingativas.

- Isso é verdade. - disse Hector, firme. - Elas não vão parar até que alcancem seu objetivo. Mas sinto que Eleonor vai saber contra-atacar e se manter um passo á frente, não se preocupe. - olhou para ela. - A propósito, onde estão Êmina e Lester?

- Já foram dormir. O fogão está enferrujado, então Lester decidiu ir pra cama cedo pra acordar disposto a cortar lenha.

- Precisamos achar um modo de fazermos Mollock expulsar Abamanu. - propôs Hector, ansiando para voltar à luta.

- Falou como se fosse a missão mais simples do mundo. - retrucou Rosie, revirando os olhos. - Como acha que vamos estabelecer contato com Mollock? Sequestro é impossível, só pra constar

- Tentativa de sequestro com certeza fora de questão. - disse o caçador, concordante. - Áker deve saber uma maneira. Ele me devolveu o amuleto para que eu entregasse à você, amanhã você pode chama-lo e, quem sabe, talvez consigamos pensar em um plano, não só para o objetivo citado, mas também para encontrar o cativeiro de Charlie, sei que existe uma localização secreta. Não, pensando bem, acho que... devemos dar, no mínimo, uns 5 dias até que ele recarregue suas energias. Não custa nada esperarmos um pouco mais.

- Concordo. - falou Rosie, esfregando levemente as mãos. - Porém... - ficara alguns segundos em silêncio

Hector olhou para ela, arqueando as sobrancelhas.

- Porém...?

- Não vai dar para contactarmos Áker daqui a cinco dias. Êmina vai visitar sua cidade natal, ela quer rever a família e os amigos que tem por lá, e eu aceitei acompanha-la. E justamente ela marcou a viagem para daqui a cinco dias.

- Estão cientes do clima tenso lá fora, certo? - perguntou Hector, denotando preocupação.

- Sim, claro, ela vai tratar de escolher uma linha ferroviária segura. - disse Rosie, tranquilizando-o. Suspirou longamente, andando devagar até o corredor que onde ficava seu quarto. - Bem... eu vou indo. Vai ficar aí parado até o fogo se apagar?

Hector dera uma risadinha bem-humorada.

- Não, eu... - tirara um livro meio grosso do bolso interno do sobretudo. - ... vou aproveitar a chama acesa e ler este compilado de poemas de Lord Byron. Aliás, reler. - tornou a rir.

Rosie assentiu, sorrindo de leve, ora olhando-o ora relanceando a lareira.

- Bom, ainda vou decidir se escrevo algo no meu diário, que finalmente recuperei, ou leio um livro na estante. - disse ela, andando para trás em vagarosos passos. - Até amanhã. - virara-se para o corredor.

- Espere, Rosie. - chamou Hector, ainda com uma dúvida a ser sanada.

A jovem virou-se para ele, seus olhos azuis realçados.

- O que foi?

- Sobre eu ter quase aceitado o acordo de Abamanu... você se sentiu vangloriada por pensar ter impedido que eu fosse possuído. Mas não impediu. Você apenas chegou em um instante onde eu já tinha percebido a verdadeira jogada dele, sabendo que se eu revelasse minhas reais intenções ele mudaria os termos, em nenhum momento eu estive nas mãos dele. - olhou-a estreitamente, sorrindo de leve. - Mas a pergunta é: Como sabia que eu corria o risco de ser possuído?

Rosie se limitou suspirar, fitando o nada por alguns segundos.

- Se eu lhe dissesse... você não acreditaria. - afirmou ela, tornando a andar até seu quarto. - Boa noite e boa leitura.

- Idem. - retribuiu Hector, satisfeito.

O caçador voltou-se para a lareira, abrindo o livro, logo retirando de dentro um envelope branco e retangular... e, por fim, jogando-o às chamas.

Com um olhar aliviado, Hector encarava o papel ser consumido pelo fogo crepitante, a luz alaranjada iluminando seu rosto meio robusto e barbudo.

Havia se livrado de um item que tocara por pouquíssimas vezes.

A carta que recebera de Eleonor há um 1 ano... a qual jamais lera.


                                                                                     CONTINUA...

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