Capuz Vermelho #36: "E tudo se transforma"


"Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma."

                                                                                                                  - Antonie Lavoisier.

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CAPÍTULO 36: E TUDO SE TRANSFORMA


Nas profundezas de um local rústico, cinzento e sombrio, jazia um ser inerte, pálido, nu e envolto de correntes dentro de uma enferrujada jaula capacitada para comportar um ser de seu tamanho.

A única luz provinha de uma abertura ínfima e quadrada, localizada à uma curta distância da jaula. Através dela, a luz do luar penetrava no imundo piso de concreto.

E por uma pequena brecha na porta, olhos atentos fixavam-se na criatura fadada a estar trancafiada.

- Somente uma visita casual. - disse a mulher, em tom sussurrante. - Logo irá acordar... filho.

A brecha ia diminuindo... até que, enfim, sumira com o fechar silencioso da porta.



                                                                                          ***

Ferrovia Leste, à caminho de Waytehaal

A todo vapor, em uma bela e refrescante manhã ensolarada, o trem seguia direto à cidade natal da integrante da Legião dos Caçadores mais requisitada por seu incrível manejamento de uma ciência há muito tempo menosprezada pela massa consumidora de bobagens e pela elite que inclinava-se na observação e acompanhamento da dita "ciência única e verdadeira" com uma indiferença muitas vezes até mais infame que a da outra classe.

Sentadas em assentos do quarto vagão de passageiros, uma diante da outra, Rosie e Êmina aguardavam esperançosas o fim da longa viagem de duração aproximada de 4 horas e meia. A primeira ansiosa por conhecer uma cidade vista como peculiar por olhos preconceituosos devido ao seguimento da tal falsa ciência - ou, para os mais fervorosos, a "ciência do diabo". Já a segunda, lia um guia oficial da cidade como se quisesse se familiarizar novamente aos costumes e rotina da cidade em que nasceu e viveu sua infância e parte da adolescência antes de ingressar no Colégio de Caçadores para o disputado teste de qualificação. Por um instante, ela pegou-se num momento fugaz de uma nostalgia ácida, mal olhando para o livro, ao revisitar cenas de discussões acaloradas acerca do seu sonho incompreendido. Tão imersiva que quando recobrou a concentração sentiu que durante o transe nem estava segurando algo ou dentro de um trem em movimento.

Rosie percebeu a instabilidade e se viu obrigada a perguntar.

- Esse livro está te entediando? - perguntou ela, o bom humor irônico nítido, os olhos voltados para a amiga. - Há pouco tempo parecia até mais interessada em se reabituar à sua amada cidade.

- Ah, não é isso, é que... - pausou, baixando o guia, hesitante. Relanceou a paisagem exterior e voltou-se à Rosie. - De fato, estou animada, até demais, mas às vezes penso que quando saí de lá aos 16 anos as pessoas mais próximas da família tenham formado uma impressão negativa, não que eu esperasse um comitê de recepção super caloroso... - sorriu pra si mesma, um tanto emocionada. - Mas é a minha família. Tanto tempo longe deles, e ainda nem sei por onde começar quando me perguntarem se valeu a pena ou não.

- Não acho que deve provar nada aos que duvidaram de você. - disse Rosie, conselheira. - No seu lugar, eu me importaria em dividir os frutos dessa experiência com aqueles que realmente estavam dando algum apoio.

- Não se trata dos "amigos" da família - disse, fazendo aspas com os dedos -, muito mais em parte da minha mãe... postiça.

- Postiça não soa meio... pesado? - indagou Rosie, estreitando os olhos, um tanto incerta.

- É até mais aceitável do que mãe falsa. - respondeu Êmina, dando de ombros, voltando à sua leitura.

- Bem, até agora você não me falou nada a respeito dela. - disse Rosie, curiosa, olhando pela janela.

- Eu prefiro falar sobre o porque de você recusar minhas dicas de moda, mas daí pensei: "Que imbecil eu sou, é a minha melhor amiga, não acho justo dar palpite no que ela deve ou não vestir para se portar adequadamente ao meu povo".

- Você disse... melhor amiga?! - disse Rosie, empertigando-se, como se não tivesse ouvido direito.

Êmina ergueu a cabeça e olhou-a meio nervosa.

- Ahn... Foi. - respondeu, rapidamente, as pupilas movendo-se depressa. Deu um veloz sorriso aberto. - Por que a surpresa?

- Não, é que... - disse Rosie, sem saber como reagir. - Você é a primeira pessoa que me diz isso. - revelou, a cabeça meio baixa e os braços apoiados na mesa. - É meio estranho, não acha? Nos conhecemos há tão pouco tempo.

- Nem tão pouco assim. - retrucou Êmina, os olhos nela, balançando levemente a cabeça com um não. - Amigos de verdade se sentem desse jeito. Quando o entrosamento chega a certo ponto a noção de tempo meio que muda e ambos se sentem como se tivessem se conhecido há anos. E eu sinto que foi assim conosco. Mesmo que tenhamos perdido dois anos de nossas vidas, os fracassos não abalaram nossa amizade. Esperei muito por você... desde o dia em que me colocaram naquela cela imunda. E tenho certeza que os outros também esperaram.

Aquelas palavras reanimaram a confiança de Rosie de um modo arrebatador. Ela assentiu, um pouco sem jeito e séria, mas certamente grata pelo apoio.

- Eu sei disso. - disse ela, sorrindo de leve.

- Vai escrever para o Adam? - perguntou Êmina, de supetão ao voltar para sua leitura, assustando Rosie.

- Ei, vai com calma. Não íamos falar sobre você quase me proibir de usar meu manto? - indagou ela, meio desconcertada.

- Só responde a pergunta, por favor. - disse ela, rendendo-se à desconcentração mais uma vez, baixando o livro e olhando-a com expectativa. - Tenho quase certeza de que deixaram acontecer naturalmente...

- Agora você já está indo longe demais. - disse Rosie, sorrindo, apontando para ela com o indicador direito. - Na verdade, foi o contrário, ele escreveu pra mim. Mas não penso em enviar uma resposta. - fez uma pausa, assumindo um tom mais sério. - Ele precisa de um tempo. Talvez depois de quebrar a cara de uma forma tão traumática ele nem pense mais em caçar.

- Deve estar se perguntando... se Lester e eu estivemos errados em perdoar o Hector. - disse Êmina, olhando para Rosie fixamente, depois afastando um mecha do cabelo para atrás da orelha esquerda.

- Não, não estavam. Nessa situação, a única coisa que o Adam e eu tínhamos em comum foi o fato de termos reagido de maneira agressiva quando descobrimos a verdade. - disse Rosie, pensativa. - Hector mentiu por medo, não confiou nos próprios amigos. - Não tenho porque culpa-lo, porque eu fiz praticamente o mesmo. Mas eu esperava que ao menos ele se permitisse superar, deixar essa nuvem negra passar aos poucos.

- Mas pelo visto ele não confia no ditado de que o tempo cura todas as feridas. - disse Êmina, parecendo desapontada pela decisão do amigo.

- As vezes cicatrizar velhas feridas significa abrir novas. - disse Rosie, novamente olhando a vegetação pela janela.

- Veja pelo lado bom: Se não fosse por ele, não teríamos conhecido você. - disse Êmina, assumindo a posição aconselhadora há poucos minutos pertencida à Rosie. - Também não critico o Adam por ter surtado de raiva, foi uma reação natural porque eles eram muito próximos e aquela amizade tinha um significado que ele faria de tudo para preservar, o que é uma pena já que, em se tratando disso, só dependeu do Adam. - fez uma pausa, pegando novamente o guia de Waytehaal. - E, francamente, parar de caçar só porque seu melhor amigo te decepcionou de pior forma possível é, no mínimo, idiotice. Conheço o Adam talvez até mais do ele mesmo. Ele não larga o osso assim tão fácil. É só uma fase e como qualquer uma... vai passar.

- Assim espero. - disse Rosie, assentindo positivamente enquanto observava a paisagem.

Um garçom veio até elas para servir o café.

- Aqui está. - disse ele, pousando as duas xícaras na mesa.

- Obrigada. - disseram ambas, em uníssono.

O garçom gentilmente meneou a cabeça fazendo que sim e se fora.

- Espere só para se surpreender com o acervo do museu. - disse ela, logo dando um gole no café. - É parte integrante da sede da Associação dos Alquimistas.

- Deixa eu adivinhar: Você só falou isso porque o guia ajudou você a lembrar. - disse Rosie, fazendo uma cara de suspicácia com um sorrisinho misterioso.

- Não, na verdade eu nem sabia que tinha um museu. Esse guia é bem atualizado. - disse ela, olhando para o livro, com um dedo entre uma página e outra. Olhou para Rosie, controladamente empolgada. - Mal posso esperar para conhecer.

                                                                                      ***

Waytehaal - Ponto de entrada. 

Alguns anos longe da sua amada cidade pareceram fazer Êmina esquecer-se dos rumos a se seguirem para chegarem a um determinado local outrora bastante frequentado por ela. Ambas caminhavam por uma esquina à procura da pensão administrada pela mãe adotiva da alquimista, Ophelia Flower, passando por várias residências em uma rua relativamente movimentada - e repleta de pombos.

- De acordo com o guia, fica em frente à praça central. - disse Êmina, com o livrinho aberto diante do seu rosto enquanto apertava o passo. - Onde eu costumava brincar com meu labrador nas manhãs de sábado, único dia livre das aulas sobre alquimia na escolinha para jovens aprendizes na Associação. - olhou de relance para Rosie, meio desconcertada. - Me diz aí: Estou parecendo uma guia turística ou uma saudosista praticamente amnésica?

- Um pouco das duas. - disse Rosie, o ar bem-humorado, andando no mesmo ritmo e visualizando a área urbana da cidade. - O que, convenhamos, não é uma combinação muito boa. - olhou para ela. - Você não precisa se lembrar de tudo para voltar a se sentir parte da sua cidade.

- Logo você, a voz da experiência... quem sou eu pra contrariar? - disse a caçadora, fechando o guia e guardando-o no bolso de trás.

- Minha experiência de amnésia não serve como parâmetro. - retrucou Rosie, franzindo o cenho e sorrindo de leve.

- A propósito, só uma dúvida: Quando Abamanu devolveu suas memórias, você continuou com as que você tinha quando estava andando com aquela coisa magrela e sem rosto? - perguntou ela, olhando-a com curiosidade.

- Não lembro de nenhuma coisa magrela e sem rosto como companhia. - disparou Rosie, fazendo que não lentamente com a cabeça, levantando uma sobrancelha.

- Ah, que bom. - disse Êmina, dando-se por satisfeita, atravessando a rua em direção á praça. Rosie a seguiu, apressando-se. Não tardou para avistar, mesmo com as árvores da praça quase ocultando, a placa retangular vermelha no alto da fachada com o letreiro. "Pensão Flower... Nem consigo acreditar!', pensou ela, andando mais rápido. - E terra firme à vista. - apontou para o local. - Vamos.

                                                                                    ***

- Tem chamado muita atenção com esse capuz vermelho berrante. - disse Êmina, quase soando como uma reclamação, ao abrir uma porta dupla da entrada da pensão, sentindo toda a aura nostálgica logo ao pisar novamente no chão de tábuas de madeira cor de avelã. - Vou ficar famosa com minha amiga fantasiada.

- Pára, não tem graça. - disse Rosie, quase aos risos, batendo seu braço direito de leve com o esquerdo da amiga que rira com o gesto. As duas voltaram-se para a recepção. O jovem rapaz ruivo que cuidava do balcão e sardento as fitou com nervosismo contido.

- Você é novo por aqui? Recém-contratado? - perguntou Êmina ao jovem.

- Temporário. - disse ele, acanhadamente.

- Ah, sim... - disse Êmina, assentindo positivamente, logo tirando o dinheiro para a reserva. - Quarto para dois. - disse ela, entregando.

- Não há vagas. - disparou o rapaz, a expressão meio dura. Relanceou Rosie.

- Se não houvesse deveria ter uma placa avisando... - contestou Êmina, desconfiada. - Não acha? - perguntou, franzindo o cenho. Falou baixinho para Rosie: - Ao que parece, sua capa não agradou ao estagiário.

O jovem recepcionista pigarreou fortemente, dando a entender que ouviu ter sido chamado de estagiário.

- Olha, quero falar com a atual gerência dessa espelunca, se não for pedir demais. Ou você mesmo pode ir por mim, dizendo que Êmina Flower voltou para matar as saudades e acompanhada de uma amiga que não merece ser destratada pela maneira como se veste. - disse Êmina, soando rígida.

- Você disse... Flower? - indagou o rapaz, empertigando-se com surpresa. - Por que não disse antes?

- Por que você não me perguntou. - disparou ela, revirando os olhos, a expressão séria. - Eu preciso que vá, por favor. Nós somos apenas amigas, se está pensando que estamos em lua de mel.

- Não estou pensando em nada. - disse o jovem, estreitando os olhos, prestes a dar a volta no balcão para falar com o superior.

Rosie voltou-se para a amiga com um olhar de estranheza.

- O que foi? - perguntou Êmina. - Viemos para nos divertir. E foi bom começar quebrando alguns tabus.

- Espera aí. - disse o rapaz, aparentando suspicácia, apontando para Êmina. - Posso não conhecer muito da história dos Flower, mas sei quando alguém está mentindo pra mim. Quero que me prove que é quem diz ser.

- Agora ele está se soltando. - disse Rosie, não gostando da postura do rapaz.

De repente, uma voz quebrara todo o clima de tensão. Uma voz que fizera Êmina arrepiar-se por inteiro em questão de segundos.

- Você quer a prova? Aqui está ela. - disse uma bela mulher de rosto moreno, olhos verdes, sobrancelhas angulosas arqueadas, cabelos castanhos meio ondulados que lhe caíam até os ombros. Vestia um manto azul turquesa amarrado com um nó abaixo do pescoço, por cima de uma camisa branca com mangas que iam até os pulsos, além de um espartilho meio marrom meio bege e uma calça de couro preta apertada e botas marrom claro de salto alto.

Êmina virou-se no mesmo instante, dominada pelo poder daquela voz.

- A senhora é... - disse o rapaz, meio perdido.

- Mamãe!? - disse Êmina, sem saber o que pensar, por um lado espantada, por outro extremamente feliz pelo retorno inesperado.

- Mamãe!? - indagaram Rosie e o jovem em uníssono.

- Olá, filha. Há quanto tempo. - disse Ophelia, sorrindo para Êmina, entrando e carregando sua mala na mão direita.

- Se importa de eu ajudar com a mala? - perguntou o jovem, rapidamente indo até a moça, prestativo.

- Ficaria agradecida. - dissera ela, gentilmente. Voltou-se para sua filha, logo abraçando-a. - Oh... - interrompeu o abraço para estuda-la com ar de orgulho, tocando-a nos ombros. - Não tenho dúvidas de que se tornou uma grande mulher. Pelo visto, eu estava totalmente enganada sobre o lugar em que você quis se enfiar.

- Falando assim até parece que não mudou de opinião. - disse Êmina, não contendo sua emoção em rever sua mãe adotiva, aquela que lhe acolheu nos braços quando tudo parecia perdido.

- Que nada. Estou orgulhosa de você. Li todas as cartas que me mandou. - disse Ophelia, contente.

- E o papai? - perguntou Êmina, meio receosa. - Ainda estão brigados?

- Ahn... - Ophelia baixara um pouco a cabeça, mordendo os lábios. - A razão da viagem foi em virtude de outra coisa. Mas seu pai e eu estamos fazendo o possível para... resolvermos nossas diferenças o mais breve possível.

- Tomara. - disse ela, em seguida voltando-se para Rosie. - Mãe, quero que conheça minha amiga, diretamente de Raizenbool... Rosie Campbell. - apresentou-a com gosto.

- Muito prazer. - disse Ophelia, sorrindo, estendendo-lhe a mão.

- O prazer é todo meu. - respondeu Rosie, em um aperto de mão. - A Êmina tem falado muito bem de você a viagem inteira.

- Eu imagino. - disse Ophelia, dando uma risadinha bem-humorada.

- Mas e aí? Porque voltou assim tão de repente.? - perguntou Êmina, querendo saber logo o que motivou o retorno da mãe.

- Vim compartilhar com a cidade o sucesso mais recente dos meus estudos. Estive aprimorando minhas experiências com uma equação infalível para avançar o projeto da pedra filosofal definitiva. - revelou ela, com certa empolgação. - Diria que uns 85%, praticamente em fase conclusiva.

- Não brinca. - surpreendeu-se Êmina, contagiando-se pelo entusiasmo transparecido. - Isso é demais. Vai mexer com toda a comunidade alquimista. Já enviou uma carta para a Associação?

- Na verdade, resolvi apostar em uma divulgação menos discreta, selecionando alguns moradores da pensão a contribuir com panfletagens. Quero que pelo menos pouco mais da metade da cidade saiba que há um progresso real e em curso sobre a conversão de uma lenda em fato. - declarou Ophelia, confiante de si, olhando para Êmina e Rosie.

Ouviram-se passos descendo as escadas no lado esquerdo próximo ao balcão.

Eram os dois jovens designados a cooperarem com a proposta da vice-presidente da Associação de Alquimistas. Não contiveram a estupefação ao se depararem com a grande pioneira.

- Ela está aqui! - disse Josie, alegremente, pulando os degraus. Uma garota de descendência asiática de cabelos pretos e lisos usando uma tiara violeta e um vestido da mesma cor, florido e caseiro.

- Nossa, nem acredito! - comemorou Andrew, um rapaz de vinte e poucos anos, de cabelos pretos meio crespos e rosto quadrado e caucasiano, além do sorriso radiante e largo e os olhos castanhos. Vestia uma camisa listrada de manga longa, cinto e calças e sapatos sociais. Visualizou de relance Rosie e Êmina. - E você é...? - dirigiu-se à Rosie com interesse.

- Ah, eu sou uma simples acompanhante da herdeira Flower. - disse ela, meio retraída, sorrindo. Apertara a mão dele. - Me chamo Rosie.

- Andrew. - disse ele, entusiasmado. - Já soube da novidade? - olhou para Ophelia e voltou-se para Rosie. - Finalmente poderemos ter um sonho se realizando. É a pedra filosofal. Imagine um mundo sem doenças, sem mortes prematuras por causas naturais, imagine uma humanidade mais forte... É tudo o que sempre quisemos. Vai mudar nossas vidas. Vai mudar o mundo.

- Rosie, está é a Josie - disse Êmina, apresentando-a -, está na fase preliminar para ingressar na escolinha da Associação. - fez uma pausa, pondo-se entre as duas. - Rosie, Josie. Josie, Rosie. - dissera, em tom brincalhão, logo depois soltando uma risada.

- Nem acredito que será hoje à noite. - disse Josie, empolgada. - Trabalhamos duro, por 15 dias, para convencermos o máximo de pessoas possível a ir na conferência.

- E estão de parabéns pelo esforço. - congratulou Ophelia, tocando-os no ombros. - Pelo visto, estive certa de que vocês eram perfeitos para fazer isso acontecer. Mais de 100 bilhetes vendidos... não poderia estar mais feliz. - disse, abrindo um sorriso.

- Espero que dê tudo certo. - disse Êmina, confiante no trabalho da mãe. - Me admira muito passos tão largos em tão pouco tempo numa descoberta tão revolucionária. Estou... orgulhosa da senhora.

- E além de tudo isso, pretendo, em breve, me candidatar à presidência da Associação. - disse ela, transparecendo um pouco de modéstia na fala e na postura, embora sem ocultar sua satisfação.

- Uau - soltou Êmina, sorrindo de leve. - Já era tempo hein?

- Pode contar com o meu voto. - disse Josie, a fala rápida.

- E o meu também. - disse Andrew, erguendo levemente o indicador esquerdo.

- Quando será a eleição? - perguntou Rosie, curiosa.

- Daqui à 2 anos. - respondeu Ophelia, fazendo que sim com a cabeça.

Rosie demonstrou certo espanto ao arquear as sobrancelhas.

Ophelia, por outro lado, sorrira para ela.

- É que não queremos nos apressar, ainda faltam vários detalhes, além de que seria bem desconfortável organizar uma eleição em plena época de sangue. - disse ela, desfazendo-se do sorriso ao lembrar-se da situação de tensão que alguns países estavam vivendo.

- É, faz sentido. - concordou Rosie, olhando para Êmina de relance.

- Bem, vejo vocês na conferência. - disse Êmina para Josie e Andrew. - Queríamos alugar um quarto, mas o estagiário ali - apontou com o polegar direito para trás - não nos atendeu de forma decente, então...

- Não precisam se preocupar, deixem por minha conta. - disse Ophelia, prestativa.

- Você tem sorte de ter uma mãe assim, Êmina. - disse Josie, olhando para Ophelia com admiração.

- Muita sorte. - complementou Andrew, com o mesmo sentimento de euforia da amiga.

- É, eu sei bem disso. - disse Êmina, meio encabulada. - Enfim, obrigada. Se um dia eu puder retribuir...

- Não, não é necessário. - cortou Ophelia, tocando suavemente no rosto da filha. - Apenas quero que aproveite ao máximo estando do lado de sua amiga. - relanceou Rosie. - Se possível protegê-la.

- Olha, devo admitir, mãe: A Rosie sabe se cuidar sozinha. - disse ela, quase aos risos.

- Não tiro a razão dela. - aquiesceu Rosie, sorrindo abertamente.

- Estejam lá na sede às oito. - disse Ophelia, entregando para ambas dois bilhetes gratuitos. - Se ainda desse tempo, eu faria questão de reservar lugares na primeira fileira. - voltou-se para os dois colaboradores - E quanto à vocês... presumo que queiram ajuda com a lista de convidados especiais.

- Bem, é verdade - disse Andrew -, os estudos praticamente sugaram muito do nosso tempo disponível.

- Ficamos imensamente gratos que queira ajudar numa tarefa tão simples. - agradeceu Josie, não deixando o entusiasmo se perder.

- Então, ótimo. Podemos fazer isso na biblioteca da sede. O que acham? - propôs Ophelia, transmitindo-lhes disposição.

- Por mim tudo bem. - concordou Andrew, esfregando as mãos.

- Eu topo. - disse Josie, sorridente.

- Vocês podem ir. Nos vemos mais tarde. - disse Ophelia para Rosie e Êmina, logo virando as costas para sair ao lado dos dois jovens engajados na iniciativa. - Escolham um dos quartos que está com a fita vermelha, significa que estão desocupados.

- Pode deixar. A gente se vê. - disse Êmina, carregando sua pequena mala, gesticulando com a cabeça para Rosie em sinal de que deveriam entrar logo. - Vamos lá, Rosie. - a jovem encapuzada acompanhou-a por trás.

                                                                                        ***

Sede principal da Associação dos Alquimistas


No escuro gabinete do presidente - uma pequena parte iluminada apenas pelo luar que atravessava a janela retangular vertical - uma figura meio corcunda, umbrosa e esquelética se aproximava na ponta dos pés em direção a um quadro próximo à estante de trás da mesa.

Suas mãos magérrimas e meio cinza-azuladas tocaram nas laterais da moldura, logo removendo o quadro cuidadosamente e depositando-o no chão.

O quadro nada mais era do que uma fachada para um cofre de combinação obtida pelo giro do botão.

Ao tentar destravar com o número de voltas que lhe foi dito, sua segurança nos dedos era controlada de modo a fazê-lo como se não temesse nenhum possível flagra.

Por fim, a combinação se mostrou correta e puxou a maçaneta do cofre.

No interior jazia um objeto valioso conhecido por carregar um forte simbolismo. Uma serpente de prata, com rústicas escamas de dragão, devorando a própria cauda formando um círculo perfeito.

Pegara-o rápido e fechara a porta com o mesmo cuidado com que abrira-a.

                                                                                        ***

O auditório possuía lamparinas fluorescentes no teto, um palco que mais parecia uma grande plataforma de concreto semi-retangular e capacidade máxima para comportar mais de 250 pessoas.

O local, àquela hora, já estava relativamente movimentado, com os membros da Associação já todos presentes. Rosie e Êmina procuravam assentos melhores para se acomodarem após chegarem 5 minutos adiantadas. A alquimista emprestou à amiga um vestido vermelho carmesim escuro e decotado. Já a própria resolveu vir com um vestido mais curto, com alças finas e de cor cinza, além do cabelo preto sem as suas amadas tranças laterais, naquela ocasião estando em um coque.

Por fim, sentaram-se confortáveis em seus lugares.

- É sério mesmo? A pedra filosofal? - questionou Rosie, ainda incrédula. - O lendário elixir da vida eterna?

- Aparentemente, não será mais lendário daqui há poucos anos. - disse Êmina, olhando para o palco ainda vazio, dando um ponta de ceticismo que interessou Rosie.

- Ainda custo a acreditar. Sua mãe voltar assim tão de repente com uma notícia tão impactante dessas... - disse a jovem, suspeitando. - Claro, no mesmo dia que nós viemos é mera coincidência, mas vou ser honesta com você, Êmina: Há algo estranho.

- Olha, Rosie, por um momento até odiei admitir, mas depois de alguns minutos de reflexão... - confessou a caçadora, suspirando e assentindo positivamente - ... eu sabia que nossa diversão não seria do jeito livre, leve e solto.

- Então realmente sente que nem tudo é o que está parecendo ser? - perguntou Rosie, olhando-a.

- Estou tentando lidar com tudo isso da forma mais natural possível, mas sim, você está certa, ela foi muito parcial. - declarou Êmina, séria, visualizando a bancada dos membros do Conselho. - A última vez que vi minha mãe antes de ir para o Colégio dos Caçadores ela estava furiosa comigo pela decisão que tomei e disse que eu só teria uma nova oportunidade de voltar para casa quando finalmente minha consciência se tornasse um peso que me faria pensar com clareza. - baixou um pouco cabeça, aparentando tristeza. - O sonho dela era que eu me tornasse uma alquimista relevante a ponto de ser futuramente nomeada vice-presidente, substituindo-a, ela sonhou com um legado...

- Melhor pararmos de falar e só esperar. - recomendou Rosie, tocando na mão direita da amiga em consolo - Ficar remoendo desavenças só vai estragar o clima. Sua mãe parecia mesmo orgulhosa de você, redimida de todas as coisas que ela falou para fazer você desistir do seu sonho. Ela quer ver você sorrindo quando ela estiver compartilhando a conquista dela. Mesmo que não seja sangue do mesmo sangue.

Êmina se recompôs, fazendo que sim com a cabeça, assumindo a total desnecessidade para recordar a tensa divergência de opiniões do passado. No entanto, ainda assim restava a dúvida sobre o modo como a mãe explanou a respeito dos avanços na pesquisa altamente promissora.

- É... você tem razão. - aquiesceu ela para Rosie - Vamos aproveitar essa noite.

Uma salva de palmas foi dada pela multidão que se levantara quando Ophelia subia no palco com um vestido roxo que ia até seus pés. Rosie encorajou Êmina a aplaudir, pegando-a pelo braço direito e ambas o fizeram.

A vice-presidente se encaminhou ao palanque com um pequeno papel dobrado várias vezes. Tocou no microfone já ajustado há minutos, desdobrando o papel depressa.

- Primeiramente, boa noite. - disse ela, bem disposta, olhando para toda a plateia, os cabelos castanhos deslumbrantes. - Bem, como podem ver, não tive tempo de decorar todo o discurso então vou precisar trapacear. - falara, arrancando algumas risadas do público.

- Ela parece até ter seu senso de humor. - comentou Rosie, notando a semelhança.

- Somos parecidas em muitos aspectos. - respondeu Êmina, um pouco ansiosa para ouvir o discurso.

Abrira todo o papel, pronta para ler o texto.

 - Em nome de toda a comunidade alquimista, que tem se esforçado e lutado por durante várias décadas exigindo o reconhecimento justo de sua importância científica, eu, Ophelia Flower, atual vice-presidente da Associação dos Alquimistas, desejo compartilhar com todos vocês os primeiros vestígios de uma conquista outrora considerada utópica. Os diagramas e equações que vocês podem ver atrás de mim - apontou com o polegar direito para os cavaletes com as anotações transcritas em folhas quadradas grandes. - significam uma sintetização material baseada em uma combinação de metais raros, fundidos e energizados em um círculo de transmutação com algumas propriedades modificadas. Além do metais fusionados, restou um ingrediente essencial para completar o processo e torna-lo efetivo. Eu testei inúmeros elementos, como água, sal e até venenos de serpentes. Mas diante das falhas, eu sabia, eu sentia que ainda não havia tentado algo. E decidir arriscar. Uma coisa me dizia que eu estava perto. - fez uma pausa, andando devagar pelo palco, olhando para a elite de membros da AA.  - Testei com meu próprio sangue.

Ouviram-se alguns cochichos abafados, poucos deles não escapando aos ouvidos de Ophelia que não permitiu a postura instabilizar.

- Uma pedra filosofal inconclusiva testada com sangue humano me soa drástico. - disse Êmina, estreitando os olhos para sua mãe. - Quase que como uma tentativa de desespero. Fico mais curiosa ainda sobre os resultados.

- Sim, é verdade, apenas uma gota do meu sangue, graças à energia sinérgica da transmutação foi o suficiente para tornar a pedra 50% eficaz. - revelou Ophelia, demonstrando exultação no semblante.

- E quais foram exatamente os resultados do primeiro teste? - perguntou um dos membros, aparentemente cético, um homem de meia idade calvo, rosto fino, usando óculos de armação pequena e redonda e terno preto.

- Ela disse pedra?! - indagou outro, um senhor acima do peso caucasiano e rosto meio avermelhado, dirigindo-se ao companheiro. - Isto é inconcebível. Não consigo imaginar transformar um reles delírio em uma prova factual com resultados comprovados em poucos anos. A menos que - olhou para Ophelia com suspeita - um sacrifício maior tenha sido feito.

- O sucesso dos meus testes provaram que a lenda estava errada. - disparou Ophelia, assumindo um tom sério. - Até agora seu uso permite somente a cicatrização instantânea de ferimentos.

- E onde estão as provas? Você as trouxe? - perguntou o membro com as maçãs do rosto avermelhadas, encarando-a com severidade.

Ophelia engoliu a saliva, mas não se abatera.

- Eu disse que estava com pouco tempo, não é?

- Lamento, senhorita Flower - disse uma membra, levantando-se, uma mulher ruiva de 40 e poucos anos de cabelo curto meio chanel, rosto um pouco flácido e olhos apertados -, mas não levamos a sério desculpas como essa. Falta de tempo não justifica fracassos.

- Verdade, como se apenas falar surtisse algum efeito impactante. - disse o conselheiro Geller, o homem acima do peso do grupo, também se levantando.

- Nossas ressalvas não podem ser contestadas, senhorita Flower. - disse o membro de óculos, Sebastian, levantando-se de sua cadeira. - Meros diagramas, projetos e equações não são o suficiente, o que nos faz pensar que possui um entendimento muito abaixo do esperado sobre a dimensão dessa descoberta e acabou supervalorizando a si mesma alimentando uma utopia, o último degrau da escada da alquimia que muito provavelmente não existe.

- Não podem estar falando sério, meus testes são confiáveis, dediquei esses anos fora da cidade somente à essa ideia. - defendeu-se Ophelia, consternada com o posicionamento dos conselheiros. Os cochichos pareciam aumentar e algumas pessoas levantavam-se para deixarem o local. Ophelia percebera e sua expressão tornou-se mais desesperada, voltando-se rapidamente aos membros. - Por favor, preciso que reconsiderem. Por um momento achei que...

- Achou que nos contentaríamos com simples anotações? - disse a mulher ruiva, Clair, duvidosa.

- Afinal, por que estamos aqui ouvindo essas baboseiras? - perguntou Geller, impaciente, falando aos seus companheiros. - Esses anos de projeto e só o que essa "pedra" - fez aspas com os dedos - faz é curar feridinhas? Com 50% de eficácia?! Que exagero! Se afirma com tanta certeza então porque simplesmente não a trouxe para cá e chamou algum voluntário?

- Eu esperava exibi-la quando enfim estivesse terminada. - retrucou Ophelia, soando ríspida.

- Termina-la em quanto tempo? Cinco, dez, quinze anos? - perguntou ele, desafiador. - Uma pedra filosofal autêntica levaria décadas, talvez séculos para se aperfeiçoar, se é que um dia alcançaria o estágio definitivo!

- Eu não tenho obrigação alguma de provar mais do que minhas limitações permitem. Ainda estou aprendendo e quero continuar! - determinou Ophelia, encarando-os com fervorosidade.

- Você não é uma aprendiz, Ophelia, é uma sonhadora. - disse Clair, balançando a cabeça devagar e negativamente. - Não esperava que nos fizesse passar por esse vexame, além da perda de tempo.

- Tem razão. Adiei uma reunião em família pra isso?! Sinceramente... - disse Geller, prestes a sair da bancada.

Rosie, nervosa, olhara para Êmina como que querendo desperta-la de um transe.

- Êmina... - tocara-a no ombro - Melhor irmos embora. Você não merece assistir isso.

Com os olhos marejados, a alquimista levantou-se e andara em direção à saída a passos largos. Rosie, esperando ampara-la, seguiu-a no mesmo ritmo, resolvendo não olhar nem mais por um minuto para aquele palco onde via-se uma vice-presidente bombardeada por uma enxurrada de negativas carregadas de ceticismo.

Ophelia assistia seu público ir embora em grupos, transtornada e em lágrimas, recuando vagarosamente enquanto um sentimento de humilhação pública corroía-lhe por dentro.

                                                                                               ***

Rosie esforçava-se para alcançar Êmina pelo corredor curvo de paredes cinzas nas quais se expunham obras de autores em representação de suas perspectivas com relação à alquimia para fins de aprendizagem. A caçadora enxugava algumas lágrimas, tentando recompor a tranquilidade.

- Êmina, me espera... - disse Rosie, caminhando em passos apressados. - Sei como está sendo péssimo, mas você precisa se acalmar, por favor.

- Era eu quem devia estar lá, Rosie. - disse Êmina, parando e virando-se para a amiga. - Em cima daquele palco, sendo humilhada, diminuída e arrasada por um bando de casca-grossas... não ela. - declarou, comovida e aturdida. - Ninguém merece passar por isso. E aí está a verdadeira razão pela qual eu rejeitei o legado que minha mãe de criação tanto sonhou pra mim. A nova diretriz que a Associação tomou nos últimos tempos, desde os meus 13 anos, é uma das mais infames e severas da história, sempre exigem demais e nunca movem um dedo para fazer algo produtivo acontecer.

- A quem você acha que ela vai recorrer depois disso? - perguntou Rosie, desconfiada.

- Não faço ideia. - respondeu Êmina, passando uma mão no rosto e virando-se para um lado. - Só sinto que... ela está escondendo algumas surpresas. Mas me recuso a ficar xeretando o que não me diz respeito.

- Você é uma caçadora, não? Investigar também faz parte do trabalho. - reforçou Rosie, apoiando-a.

- É, você me pegou. - disse ela, sorrindo fracamente. - A quem quero enganar? Curiosa devia ser meu nome do meio. Minha mãe volta de supetão, anunciando uma descoberta revolucionária cujos resultados não agradam aos especialistas por falta de provas concretas e simplesmente dá a entender que com tão pouco progresso não esperava uma reação tão desfavorável. Ela não é tão estúpida... - afirmou, imergindo em pensamentos. - Josie e Andrew já eram associados à ela pouco tempo antes de chegarmos, creio que uns 10 dias.

- E provavelmente vão ter mais trabalho cuidando do reembolso. - salientou Rosie, a expressão de desconforto por se sentir mal com aquele furdúncio.

- Pois é, vão estar atolados de serviços... - disse Êmina, pensativa, com um polegar nos lábios. - Meu pai está fora da cidade, se eu enviar uma carta ela vai descobrir...

Um moderado barulho de estilhaçar de vidros cortara o raciocínio da alquimista repentinamente. As duas olharam, alarmadas, para o além do corredor.

- O que terá sido isso? - perguntou Rosie, sentindo uma atração dominadora querer arrasta-la até o ponto onde o objeto quebrou-se. - Eu vou na frente.

- Não vai não. - disse Êmina, impedindo-a de passar com o braço esquerdo, o olhar implorante sinalizando que o necessário era deixar que ela assumisse por sua conta. - Você reclamava que o Hector tentava te proteger quase o tempo todo, então acho melhor você não querer bancar a heroína hoje, não na minha cidade. - falara, com certo humor. Rosie dera uma risadinha. - Você deve ir para o lado de fora, seja lá quem for ou o quê for, talvez haja uma chance de encurrala-lo.

- Toma cuidado. - recomendou Rosie, logo andando na direção em que vieram, quase correndo.

                                                                                              ***

Êmina espiou cuidadosamente pela brecha da porta o interior do gabinete do presidente. Detectou ínfimos cacos de vidro espalhados diante da janela, sobre o carpete vermelho, o que a motivou de imediato a adentrar com urgência. "Essa é a primeira e a última vez que entro na sala do presidente!".

Esquadrinhou o recinto com os olhos, em busca de mais evidências, dando alguns passos vagarosos.

"Minha mãe é a organizadora dessa conferência... e, até onde eu sei, ela é extremamente rígida com segurança, não deixa nada passar. Nenhum penetra, por mais esperto que seja, escapa da direção que ela impõe à segurança, ainda mais quanto a um evento onde ela revela um projeto que envolve a pedra filosofal. Rosie tinha razão o tempo todo... ", pensou ela, imergindo em teorias, logo sua visão batendo de frente com o cofre. Andou até ele, embasbacada.

- Caramba... - disse ela, baixinho, para si mesma, tocando na pequena porta metálica do cofre. Percebeu algo estranho... um afrouxamento na porta logo ao primeiro toque - Ele conseguiu abrir... - disse, puxando a maçaneta e reparando colocado no chão. Não surpreendeu-se com o vazio de dentro. - O que quer que tenha estado reservado nesse cofre... certamente é valioso demais a ponto do presidente guardar em sua própria sala, afinal, ele mora na Associação. - fechou o cofre, correndo para sair dali o mais rápido possível, mas tratando de fechar a porta com o mesmo cuidado com que abrira-a.

Uma nova e mais desesperadora curiosidade a atormentara a partir daquele instante. Era a hora de usar da sua influência para solucionar um problema.

                                                                                               ***

Enquanto Êmina tentava recorrer a algum membro de elite da AA, Rosie descia os degraus da escada de concreto em frente à estrutura, segurando as partes baixas do seu vestido carmesim.

Em meio às luzes dos postes, avizinhava-se a figura de um homem de estatura alta, troncudo, barba por fazer e de cabelo preto curto e meio "espetado" em algumas partes. Olhou diretamente para Rosie em um misto de expectativa e anseio, acelerando sua andança o que por conseguinte a fez parar a poucos degraus antes que pudesse pisar no chão. Sua observância suspeitosa não pareceu fazê-lo desistir.

- Eu posso ajudar? - perguntou Rosie, a voz retraída.

- Com certeza. - respondeu o homem, aproximando-se cada vez mais, seus olhos verdes parecendo estarem brilhando. Suas vestes assemelhavam-se as de um caçador: colete de couro por cima da camisa, cinto apertado, calças sociais e botas marrom. - Muito prazer, sou Julian...  atual esposo de Ophelia Flower. Preciso que...

- Você é o pai da Êmina!? - disse Rosie, um tanto espantada. - Mas porque você não...

- Não, espere, só ouça-me, por favor. - pediu ele, educadamente, retirando uma folha de papel do bolso. - Não há tempo para explicações. Pelo menos não hoje. - falara, entregando-a à jovem que, relutante, aceitou. - Abra, leia e mostre à Êmina, e somente á ela, quando estiverem sozinhas.

- Espera aí. - disse Rosie, aparentando impaciência, fechando os olhos por uns segundos. - Eu quero entender... Como você sabe que Êmina e eu temos uma ligação?

- A pergunta óbvia seria: "Por que eu devo confiar em você?". Na verdade, não posso responder, talvez eu deva temer a mim mesmo pelas escolhas que fiz. - disse ele, tranquilo. - Só quero que faça esse favor, estará ajudando a capturar o verdadeiro responsável. Conto com vocês. - declarou, logo andando para a direção à sua esquerda, indo embora.

- Espera aí! - pediu Rosie, elevando o tom. Julian parou, porém sem se virar - Que verdadeiro responsável? Nós duas ouvimos um barulho e Êmina foi verificar. Se você tem alguma informação, se sabe mais sobre isso, então por que não fala exatamente agora? Do que está fugindo?

- Não é uma fuga. - retrucou Julian, ainda de costas. - É um ato corajoso. Estou me divorciando não só de um pacto, mas de uma relação que perdurou mais do que deveria e menos do que eu gostaria.

- Tudo bem, se quer manter no mistério, vou parar de questionar. - decretou Rosie, segurando a folha.

- É melhor assim. Mas me prometa. - pediu Julian, o tom sério. - Ophelia não sabe que voltei. Portanto, prefiro que sejam discretas e mantenham-se alertas. O resto deixarei que descubram por si mesmas. Até mais ver. - dissera, definitivamente caminhando para se afastar daquela área.

De fato, Rosie extraiu uma má impressão do pai adotivo da sua melhor amiga em vista de tantos segredos ocultados. Ele estaria sendo coagido a dizer menos do que queria? Trabalhando para alguém com intenções de sabotar a pesquisa de Ophelia e arruinar a sua tão ansiada candidatura à presidência da Associação?

Fosse o que fosse que estivesse escrito naquele papel certamente tinha conexão intensa com a suposta invasão ao prédio da Associação, embora os indícios de divórcio em nada pareciam apontar Julian como um suspeito primário. "A julgar pela aparência, não me é do tipo vingativo. Mas isso não basta, preciso encontrar Êmina rápido.", pensou ela, tomando a iniciativa de retornar ao local, novamente subindo os degraus, mais depressa.

Entretanto, um farfalhar desajeitado lhe chamou a atenção ao bosque que ficava logo em frente à parte lateral esquerda da estrutura. Virou o rosto diretamente ao bem arborizado lugar, a expressão de desconfiança pulsando na face. Pulando alguns degraus em descida, Rosie correra para certificar-se do que realmente estaria perambulando numa floresta pequena no meio da noite.

A corrida fez seus pés começarem a ficar ardentes em um incômodo causado pelo sapato apertado que estava usando, evidentemente inoportuno à uma situação como aquela.

Por conta disso, não avançou os quatro metros. Parada em meio às árvores banhadas pelo luar sombrio, ela logo detectou um vulto percorrer pelas folhagens prendedoras, mas sua intuição a orientou a hesitar. Viu um ser humanoide, ombros e costas curvadas, pálido e coluna vertebral saliente. Encarou com espanto contido, mas soube que a melhor opção foi permanecer estagnada com base na suspeita de que a coisa não sentiu a perseguição ou é desprovida de percepção aguçada.

O coração da jovem voltou a descompassar subitamente quando sentira uma mão tocar em seu ombro esquerdo com rapidez.

Rosie lançou um grito rápido ao se virar e quase partir para se defender. O alívio viera instantâneo ao dar-se conta de quem se tratava.

- Isso não tem graça... - disse Rosie, esboçando um fraco sorriso com a mão no peito.

- É, eu sei, me desculpa. - disse Êmina, desconcertada. - O que você estava fazendo aqui? Saí e parecia que você tinha virado fumaça.

- Eu... - disse Rosie, cortando a fala ao olhar para a direção onde o ser estranho se encaminhou - Vi alguém, aparentemente correndo, estava fugindo...

- Você viu o invasor? - perguntou a caçadora, sua voz soando mais alta até mesmo para ela.

- Shhh... - chiou Rosie, olhando de esguelha para a direção com o dedo indicador na frente dos lábios. - Nem deveríamos estar aqui agora, pode estar à espreita. - olhou para Êmina - Alguém realmente invadiu?

- Veio da sala do presidente. A porta escancarada, cacos de vidro espalhados no chão... - inclinou-se levemente para falar - Um cofre aberto.

- O que tinha dentro? - perguntou Rosie, preocupada.

A alquimista revirou os olhos.

- Ai, Rosie, até parece que não aprendeu nada na sua temporada de caça com o Hector. Se eu disse que o cofre está aberto, você acha que o que estava nele continuou lá?

- Deve ser a aflição. - disse Rosie, suspirando. -  Além do mais, nos 5 dias que se passaram ele nem se deu ao trabalho de me ensinar algumas técnicas investigativas.

- Você também não pediu. - retrucou Êmina, sorrindo tortamente. - Não entendo. Achei que ser caçadora passava longe de ser sua profissão alternativa.

- Eu nunca disse que quero me tornar uma caçadora. - declarou Rosie, sorrindo fracamente. - Apenas jurei a mim mesma que... depois que resgatássemos Charlie e derrotássemos Abamanu eu finalmente estaria livre para seguir meu caminho.

- Eu até conversaria mais a respeito, mas estamos sem tempo. - disse Êmina, respirando fundo. - Vamos nos concentrar nesse caso. Conseguiu alguma pista, por menor que seja?

- Um cara supostamente nu, careca, magro e pálido correndo pela floresta... - disse Rosie, logo tratando de retirar o papel que Julian lhe dera do decote de seu vestido. - E isto. - entregou á Êmina. - Não vai acreditar em quem me deu.

- Ai caramba... - disse a alquimista, dando uma olhada no conteúdo, a expressão de preocupação. Ergueu a cabeça, fitando Rosie por alguns segundos. - Reconheceria essa grafia num piscar de olhos. - fez uma pausa, novamente visualizando a folha. - Meu pai está na cidade. E falou com você... Mas é estranho. Isso... isso aqui é uma carta que ele escreveu para minha mãe há anos.

- Ele disse que a solução desse caso só depende de nós duas. - revelou Rosie.

- Rosie... vamos para a pensão. - decidiu Êmina, dobrando a carta.

- Você não vai voltar para ver como está sua mãe? - perguntou Rosie, estranhando.

- Ela é uma das pessoas mais fortes que já conheci. Você em primeiro lugar, é claro. - disse ela, apressando-se. - Olha, só quero dormir. Não tenho cabeça para ler essa carta inteira ainda hoje.

- Tudo bem, afinal ele disse que deveríamos lê-la quando estivéssemos a sós. - disse Rosie, dando início à caminhada de volta. - E esta floresta não é o local mais adequado no momento.

Ambas enveredaram pelo caminho de volta, pretendendo avançarem direto para a pensão.

Ás escondidas, o ser esquelético e corcunda observava-as irem por detrás de uma árvore.

                                                                                      ***

Pensão Flower; 07h25. 

- Prontinho. - disse Êmina, terminando de transcrever a carta em uma outra folha e a mão direita que segurava o lápis tremulando em nervosismo. A alquimista suspirou pesada e longamente, encostando suas costas na cadeira de madeira, por alguns segundos olhando pela janela do quarto para onde a mesa onde escrevera estava diante. Pôs as duas mãos juntas na frente dos lábios carnudos. "Tudo está se encaixando. Ele voltou convenientemente para me avisar. Será que ele já sabia que a mamãe voltaria ontem? Estão em pé de guerra, não é nenhuma novidade, mas soa estranho demais estarem na mesma cidade, porque eu conheço muito bem como termina cada briga que eles começam, então, por sorte, eu devo dar graças por não ter presenciado a que causou a última separação. Oh... droga... o que eu faço?", pensava ela, deixando as dúvidas assaltarem-lhe a calma.

Rosie entrara rápido no quarto após voltar de um restaurante.

- Bem, acabei de reservar uma mesa no restaurante mais próximo. Não sabia que estabeleciam um limite de tempo, então é melhor corrermos se quiser tomar café da manhã hoje. - disse ela, aproximando-se da amiga. Vislumbrou os dois papéis na mesa. - O que está fazendo? - perguntou, seus olhos focando no semblante pálido da caçadora. - Êmina, o que foi? Que cara é essa?

- Você tem um isqueiro aí? - perguntou Êmina, levantando-se rápido e pegando a folha da carta, pegando Rosie desprevenida.

A jovem a olhara com estranheza.

- Ahn... Eu acho que sim. - disse, tateando os bolsos dos cintos e abrindo um deles aleatoriamente - Conheço essa cara, você não me engana. Cara de quem quer contar algo que descobriu e de tão surpreendente não sabe por onde começar. - decifrou, achando o objeto e entregando-o.

- Acertou em cheio. - respondeu Êmina, recebendo o isqueiro, logo acendendo-o.

- Por que vai queimar a carta? - perguntou Rosie, curiosa e surpresa.

- Para que a mamãe não a recupere. - disse a alquimista, depositando sobre a mesa  o papel pouco à pouco sendo consumido pela chama a partir da ponta inferior esquerda. Pegara o outro, mostrando para Rosie - Olha aqui. Este é o texto que transcrevi da carta original. A mensagem do meu pai para minha mãe depois da separação. Eu pensei em lê-la pra você, mas você já tinha saído depois que acordei. E pelo que aconteceu ontem à noite, deduzi que a mamãe viria até aqui para pedir consolo ou perguntar porque eu não me juntei à ela depois da conferência e descobriria a carta. - fez uma pausa, dando alguns passos e ficando de costas para Rosie - Você leu um pouco ontem, deve ter percebido as letras maiúsculas em negrito depois de cada frase.

- Sim, eu vi. - confirmou Rosie, assentindo positivamente. - Aonde você quer chegar? O que isso significa?

- Acontece que... - disse ela, virando-se para a amiga - ... honestamente, eu sempre tive um pé atrás com relação à índole dela. Ela sempre foi tão... cheia de si, confiante demais, que isso me fazia ver algo ruim e eu sempre afastava esse pensamento... porque ela era a mãe que me acolheu em seu lar e devia muito à ela em retribuição. Aliás, eu sinto que ainda devo. Mas depois disso - mostrou a folha -, já não tenho tantas dúvidas quanto a essa suspeita. - fez uma pausa, suspirando - Meu pai usou um truque que lembro de ele ter me mostrado quando criança. As letras maiúsculas em negrito formam, com exceção de nomes próprios no meio de uma frase, uma mensagem oculta.

A revelação fizera Rosie empertigar-se e aguçar sua atenção ao máximo, o olhar de interesse.

Êmina prosseguiu:

- Está sendo difícil de engolir isso, mas... parece ser verdade, tenho de lidar. Na verdade, estou começando a achar que... - ficara pensativa em poucos segundos - ... que ela mereceu todo aquele escrutínio dos membros do Conselho. - seu tom assumira severidade - Ela é uma farsa.

                                                                                         ***

"Sinto saudades desde aquele terrível dia em que nosso elo se quebrantou, que até cheguei a pensar que seria para nuncas mais. Uma vez covarde, sempre covarde, eu captei a mensagem perfeitamente, mas ainda sinto raiva quando acredita que, em qualquer discussão, detém a voz da razão, achando que tem o direito de lançar um ultimato e bater a porta como se estivesse fechando uma ferida na sua vida. A ferida. no caso, sou eu. Meses cuidando da nossa linda filha não serviram de nada? 


Apenas desejo uma resposta honesta, quero fazer você se permitir dar uma chance de recomeçarmos. Eu estou pronto para o que der e vier, não importa mais o quanto lutemos mas sim como devemos lutar. Eu quero apoia-la, satisfazê-la das melhores forma que estiverem ao meu alcance. Sabe muito bem o quanto tentei e fiz o melhor que pude. Talvez deva repensar nas palavras afiadas que disparou naquela noite e encarar a situação como um todo, com um toque de lucidez. A verdade é só uma, eu preciso de você e você de mim. Com toda a certeza nada nesse mundo pode mudar isso. 

Relembro, todos os dias, você, aos berros, reclamando sobre o que eu disse da Jo: Insubstituível. Além do mais, se pretender mandar uma resposta, por favor, não jogue na minha cara novamente que exagerei. Na verdade, não é obrigada a responder, posso conviver com esse peso sozinho, mas chegará uma hora em que isso vai me consumir aos poucos. De todas as vezes em que recordei do nosso passado, a mais torturante foi antes de escrever esta carta. O meu coração sangra por essa decisão, Ophelia. Haverá um dia em que finalmente você veja nossa pequena como o elo que nos une? O que me dá mais raiva é você não ter percebido o óbvio. 

Mas não encare isso como um sermão. Uma vez só na sua vida aqueça seu coração congelado pela sua mágoa. Certamente fará toda a diferença se tentar. Uma vez mais: Lute por Êmina, não por mim. O motivo que fortaleceu nossa relação foi ela ter entrado em nossas vidas. Se não for por mim, então que seja por ela."


"SUA MÃE ESTÁ CRIANDO HOMÚNCULOS"

                                                                                               ***

- O quê!? Homúnculos?! - indagou Rosie, evidenciando perplexidade. - Já ouvi histórias sobre isso, até agora não passava de pura lenda urbana...

- Ah, Rosie, abra os seus olhos. - disse Êmina, soando aborrecida. - Vivemos num universo onde existem deuses psicopatas, genocidas e sedentos por poder. Por que não homúnculos? Isso anda de mãos dadas com a lenda da pedra filosofal, então é plenamente óbvio que minha mãe está praticando um ato que vai contra os princípios da Associação.

- Sim, mas como seu pai obteve essa informação? - perguntou Rosie, partilhando da dúvida.

- Somos duas perdidas, então. - disse ela, andando de um lado para o outro lentamente, os braços cruzados e a cabeça fervilhando em teorias - Devem estar se encontrando em segredo. Se comunicando por cartas. Usando porta-vozes. Há várias possibilidades.

- Só há um jeito de descobrimos. - propôs Rosie, aproximando-se da amiga - Vamos ter de encontra-lo, mesmo expostas ao perigo.

- E se ele tiver já saído da cidade hoje cedo temendo que não fosse dar certo ou que... - cortou a fala, mordendo os lábios, os olhos marejando e a emoção tornando-se mais incontrolável

Rosie prestou-se a tranquiliza-la tocando-a nos ombros.

- Fique calma, vamos tratar de resolver isso ainda hoje. Estou com você nessa luta, ela não é só sua.

Três batidas na porta quebraram a atmosfera de forma brusca.

- Quem é? - perguntou Rosie, pondo-se próxima à porta, intencionando tocar na maçaneta.

- Gerente do restaurante. - respondeu uma voz ligeiramente grave - É a garota que veio agora há pouco? Um dos inquilinos me avisou que você é amiga da herdeira dos Flower e isso automaticamente as torna nossas clientes especiais. Todo o café da manhã que quiserem é por conta da casa. A mesa está reservada.

Um silêncio desconfortável permeou por alguns segundos. Parecia uma entonação de voz pouco característica para um gerente. Uma pressa na fala implicava em esforço preguiçoso.

Êmina sinalizou com o rosto uma instrução necessária à Rosie, balançando a cabeça negativamente.

- Rosie, não abre. - disse ela, o tom quase sussurrante - Roubaram o cofre do presidente da Associação dos Alquimistas na mesma noite da conferência em que a minha mãe postiça anunciou um projeto aparentemente inacabado sobre a pedra filosofal. Considerando as pistas que temos, não podemos confiar em ninguém.

- Talvez o risco valha a pena. - retrucou Rosie, girando a maçaneta. Olhou para trás e de relance para a amiga - Não dá pra ter certeza se não arriscarmos. - abrira a porta devagar, olhando para a figura alta e esguia de um homem de cabelo castanho partido de lado sendo curto e social, rosto robusto caucasiano com barba por fazer e vestes típicas de um caçador de aluguel. A boa aparência, no entanto, não fisgara o interesse súbito da jovem em vista da alta desconfiança. - O que quer?

- Não ouviu o que eu disse? - perguntou ele, franzindo o cenho. - São nossas clientes isentas e especiais.

- Desculpe, mas... - olhou rápido para trás em direção à Êmina -... nós decidimos comer no quarto de uma amiga daqui da pensão, ela nos ofereceu parte da comida. E, por falar nisso, já deveríamos estar lá há algum tempo, então se nos der licença...

- Deixa eu adivinhar. O nome dela é Josie? - indagou ele, dando um passo adiante que deixara Rosie em estado de profundo alerta. Êmina, por outro lado, recuara discretamente, tensa. - Que engraçado - disse ele, sorrindo tortamente para Rosie - Porque foi exatamente ela que me avisou que a ilustre herdeira dos Flower estava aqui... antes de eu cortar sua garganta! - dissera, sacando velozmente um punhal afiado do cinto e tentando golpear Rosie com movimentos bem ritmados.

A jovem desviava com maestria de cada tentativa de corta-la. Desferiu um cruzado de direita contra o homem, logo pegando o braço esquerdo dele que segurava a adaga, tentando torce-lo com toda a força. Segurou o mais firme que podia, enquanto o opressor forçava-se para fazer a lâmina encostar no rosto da jovem.

- Isso não é jeito de tratar uma serventia educada. - ironizou ele, lutando contra a força do braço de Rosie que impedia-o de rasgar sua pele.

- Até parece que um gerente de restaurante se veste assim. - redarguiu Rosie, trincando os dentes em demonstração de força.

- Seu desgraçado... Você matou a Josie! - vociferou Êmina, colérica.

- Êmina, fuja! - pediu Rosie, não aguentando mais, seu rosto ficando vermelho devido ao esforço - Rápido! Vá!

- Ah, dane-se, não tenho o dia todo. - disse ele, logo desferindo uma forte cotovelada do braço direito contra o rosto de Rosie. Em seguida, chutou-a na barriga, derrubando-a certeiramente. - Fique onde está! - falou, dirigindo-se à Êmina com rispidez. - Quero que assista a morte da sua amiga... - voltou-se para Rosie, passando o punhal para a mão direita, prestes a golpeia-la.

No mesmo instante, a jovem surpreendera ao fingir estar com dor e logo pegando-o desprevenido ao sacar uma adaga e desferindo um corte horizonte no antebraço esquerdo dele, o que o fez, acidentalmente, largar sua lâmina. Grunhindo em raiva, ele tentou ignorar o incômodo do corte, passando a concentrar-se em atacar Rosie com seus punhos. Rosie defendeu-se com o braço esquerdo, logo chutando-o e socando-o até fazê-lo encostar no guarda-roupa.

Rosie afastou o punhal ao chuta-lo para longe, o som do deslizar da lâmina soando ínfimo.

Ele a agarrara pelo pescoço, logo em seguida percebendo que Êmina já tratara de escapar. Rosie usou esta desatenção com sabedoria e não perdeu nenhum segundo ao bater sua testa contra a dele, logo chutando-o na barriga e pegando-o pelos ombros para joga-lo contra a outra parede.

As costas do robusto homem impactaram-se, deixando algumas rachaduras. Sentiu que demorou um pouco para se dar conta da tamanha força de sua oponente.

Rosie pulou sobre a cama e andara até ele, pegando-o pela gola rulê da camisa branca.

- Quem enviou você e com qual propósito? - quis saber ela, o tom ríspido.

- Vai se ferrar. - disse ele, sacando uma faca pequena, logo lançando um corte contra o espartilho da jovem para distrai-la e afastou-a empurrando sua cabeça violentamente e fazendo-a cair no chão.

Tentara um golpe fatal com a mini-faca, que fosse rápido e preciso, mas a perna direita de Rosie fora mais veloz com um chute certeiro e intenso contra a face do bandido.

Rosie levantou-se depressa e, por fim, dera um giro rápido seguido um novo chute, este, desta vez, atingindo o nariz do misterioso matador e nocauteando-o instantaneamente para o alívio da jovem

Encarando o assassino contratado caindo no chão com o rosto e braço ensanguentados, Rosie afastava alguns fios de cabelo na sua face, ofegando bastante. Virou-se para o guarda-roupa, objetivando encontrar algo que pudesse imobiliza-lo, torcendo para que, ao menos, houvesse uma corda.

                                                                                            ***

Mansão Flower

A antiga residência da família Flower mantivera-se intocada por vários anos. Abandonada por Josefine Flower, a mãe biológica de Êmina, a mansão permaneceu sob o poder dos avós logo após o conturbado rompimento entre ela e Julian em decorrência de um suposto caso de traição envolvendo Jo e outro homem de identidade desconhecida - o qual Êmina insistia em se tratar de seu verdadeiro pai. Com os planos para um noivado reduzidos à cinzas, Julian assumira sua traição ao revelar seu relacionamento com Ophelia, causando sua saída voluntária da casa e o fim definitivo do elo que fora construído ao lado da filha do então - e falecido - presidente da AA.

Josefine McGinnis morrera em um incêndio numa propriedade mais simples, depois de tanto tempo recebendo visitas esporádicas de Julian quando um curioso acordo de reconciliação limitada foi estabelecido - o qual significava o fim do romance, mas a permanência da amizade por ambos terem cometido o mesmo pecado e, sendo assim, como somente amigos, lutavam por uma distante redenção e por uma resistência árdua contra eventuais recaídas. Prometeram jamais sentirem o mesmo um pelo outro novamente. Jo: Por sentir-se intensamente amargurada pela traição ainda que ciente dos efeitos devastadores. Julian: Por estar comprometido com Ophelia, uma aspirante a professora de alquimia para crianças de 8 à 12 anos.

A porta principal estava aberta quando Julian aproximava-se.

Ophelia o esperava na sala de estar decorada com papéis de parede cor vinho com detalhes em dourados e mobílias de couro e madeira marrom escuro.

O homem a fitara com enojo.

- É bom que seja importante. - disse Julian, esperando que ela se virasse.

- O que poderia ser mais importante, à essa altura do campeonato, do que a fase final do nosso perspicaz plano? - questionou Ophelia, dissimulada, virando-se.

- O seu plano, pra começar. - retrucou Julian, enfático e duro no tom. - Isso já passou completamente dos limites. Já tem gente envolvida demais nessa história.

- Aceitou vir para carinhosamente pedir que eu pare? - perguntou Ophelia, arqueando uma sobrancelha - Vai ter que se esforçar mais, amor.

- Vamos logo, diga de uma vez o que pretende fazer. - exigiu Julian, aborrecido.

- Não andou verificando a caixa do correio ultimamente não é? Pois bem... Devo dizer que você nada mais foi que o primeiro convidado da lista, meu convidado especial. Tinha um lugar reservado na primeira fileira. Sua presença aliviaria toda a dor que eu senti naquele momento.

- O que aconteceu? - perguntou Julian, a expressão intrigada.

- Fui humilhada publicamente por uma bancada de jurados exigentes... - disse ela, dando de ombros sem saber como prosseguir para descrever o forte aperto que passara - Eu tentei convence-los dizendo que fiz o melhor que pude. Sou a vice-presidente, dei minhas razões, mas se recusaram a me compreender. Isso é... indesculpável. Passível de punição.

Julian, desconfortando-se, andou uns passos vagarosos pela sala, pensativo.

- Tem que me ajudar a destruí-los - idealizou Ophelia, fitando-o com carência na face ao mesmo tempo em que o rancor transbordava na voz e no coração -, tenho a fórmula perfeita.

- Ah, não, não, não. - explodiu Julian, erguendo de leve sua mão direita em sinal de "pare" - Não me venha com essa sua chantagem emocional, não vai funcionar... Não desta vez. - a olhou firmemente - Sabe porque eu não apareci lá? Temi que fosse me passar a perna. Me descartar como lixo. - aproximou-se dela - Quer saber de uma coisa? Pra mim chega. - falou, desafiador - Prefere criar monstros a promover causas pelas quais valham a pena lutar! Que futuro você vê nisso?

- O nosso futuro! Novamente juntos, como uma família. É só o que eu quero. - defendeu-se Ophelia, exasperada.

- Você quer vingança, sangue derramado. - rebateu Julian, o olhar enfurecido. - E principalmente poder.

- Eles não merecem ser chamados de Conselheiros. Lá estão eles, há anos se gabando do que não tem a mínima competência, enquanto eu, uma promissora alquimista, é rebaixada e apedrejada por que mostrou uma versão teórica de seu projeto revolucionário.

- Então sua birra é apenas por causa da rejeição? - perguntou Julian, franzindo o cenho.

- Quero tira-los do poder pelo que são, não só pelo que me fizeram passar. - determinou ela, convicta - Além do mais - esboçou um sorriso sacana -, consegui uma preciosidade de milhões. A cereja do bolo direto do cofre do presidente.

A expressão de Julian converteu-se de raiva para assombro.

- O artefato... vo... você não...

- Sim, Julian. - assentiu Ophelia, tranquila. - A minha serpente trocará de pele hoje à noite. E já que sua posição contrária se tornou tão óbvia... Não há nada que você possa fazer.

                                                                                         ***

Um forte tapa no rosto foi o método mais eficiente julgado por Rosie para acordar seu prisioneiro.

O assassino contratado para dar fim à Êmina, amarrado na única cadeira do quarto, subitamente acordou, logo em seguida sentindo uma ardência na bochecha direita. Fez cara de dor, aos poucos abrindo os olhos e gemendo. Rosie o observou com um sorriso fechado que parecia denotar certa satisfação ao vê-lo sob sua custódia.

- Você... é uma garota muito malvada... - disse o homem, logo formando um sorriso ao passo em que despertava - Muito embora saiba como dominar uma boa briga.

- Vamos direto ao que interessa. - disse Rosie, cruzando os braços, parada bem diante dele

- O que vai ser? Tortura? Não dá certo... já tentei. - disse ele, a face debochada.

- Quero que me fale quem está por trás disso. - exigiu Rosie, severa no tom. - Quem, afinal, pôs a cabeça da Êmina à prêmio?

- O plano era matar vocês duas, pra começo de conversa. - revelou ele, arqueando as sobrancelhas. - Posso dar uma condição se eu tiver que responder rápido?

- Não, mas posso esfaqueá-lo no peito num segundo se quiser ficar enrolando. - disse ela, aproximando-se. Inclinou-se levemente para ele, intimidadora - E, acredite - estreitou os olhos -, quando me enfureço de verdade as coisas não terminam nada bem.

Um sorriso de canto de boca foi quase inevitável para o assassino ao estudar a capacidade da jovem em lidar com interrogatórios.

- Aposto que teve um treinamento com alguém bem experiente.

- Essa não é primeira vez que conduzo um interrogatório. Então, vamos logo. Me dê um nome. - pediu ela, a expressão séria.

Após segundos de hesitação, o assassino deu suspiros que pareciam indicar uma fraca resistência ante à pressão incutida por Rosie. Passou a odiar ter de se render ao poder de ameaça de uma jovem que enganaria qualquer desavisado com sua aparência e modo de se vestir.

- Ophelia Flower. - disparou ele, o tom sério. - Ela tem orquestrado um plano macabro... Coisa surreal. - afirmou, arqueando sobrancelhas.

                                                                                      ***

- Pra mim já chega! Estou fora! - decidiu Julian, apontando o indicador para o rosto de Ophelia - O que pensa em fazer caso eu vá até o Conselho Superior de Alquimia e a denuncie? Sou ex-cúmplice, tenho acesso à provas substanciais.

- Eu diria que não mais. - retrucou Ophelia, virando o rosto, desdenhosa - Pode ser um excelente partido, mas nunca foi muito esperto.

- Não posso permitir que use criaturas vivas para terminar essa sua loucura. - disse Julian, sentindo o sangue ferver em ódio pela malevolência daquela ambiciosa mulher a quem lhe jurou uma vida próspera - É desumano... - falou, balançando a cabeça negativamente - Vai contra os princípios da alquimia, suas atitudes estão se contradizendo contra a ciência que você tanto se dedica.

- E que outra escolha tenho? - perguntou ela, aborrecendo-se. - Estou aberta a sugestões, mas não posso esperar muito vindo de você.

- Pode escolher perseverar mais nos estudos. - disse Julian, intencionando um aconselhamento que, no fundo, sabia que era improvável de convence-la. - Esqueça a vingança, Ophelia. Só nos trará infelicidade e sofrimento. Não quero que seja do meu jeito... Mas do jeito que for o mais correto possível, se quiser que voltemos a ser uma família.

A vice-presidente da AA grunhira raivosamente e se afastou ao andar alguns passos numa direção.

- Eu odeio quando você incorpora o pacifista que se acha sensato. - reclamou ela - Não preciso de você para terminar o que comecei. E vou terminar, custe o que custar. - salientou, fuzilando-o com os olhos.

Julian aproximou-se em largos passos e a agarrou pelo braço esquerdo.

- Escute aqui: Tentei ser flexível com você, mas vejo que é impossível, você é uma víbora. - acusou ele, apertando o braço da alquimista,

- Me largue... - disse ela, encarando-o furiosamente - Como eu disse... Vai ter que se esforçar mais se quiser me impedir. Ah... eu já tinha quase me esquecido. Você tem uma forte tendência a desistir na hora H, por isso nem estou preocupada. - aproximou um pouco o seu rosto ao dele - Você é fraco, Julian. Como esposo, como pai... e como homem. Só vai ficar... e assistir tudo desmoronar a sua volta. - dissera, o tom de deboche.

Como impulso, Julian erguera o punho esquerdo fechado.

- Isso. Bata. - disse ela, instigando sua raiva - Ainda sim continuará sendo fraco. E covarde também.

O pai adotivo de Êmina a soltara com rudeza, recuando alguns passos ao fita-la com ojeriza.

- Lamento por Êmina. - disse ele, desapontado. - Por isso vou me juntar à ela.

- E vou capturar mais quatro Elementais e criar uma pedra filosofal forte o bastante para aprimorar meu filho. E você sabe muito bem porque. - disse ela, mantendo sua postura auto-confiante e soberba.

Julian, consumido pelo estresse carregado, fora embora, saindo por onde entrara.

- Se juntar à Êmina? - falou Ophelia, em tom baixo para si mesma, olhando-o sair - Não por muito tempo.

                                                                                         ***

"Então Julian tinha razão o tempo todo. A mensagem na carta era mesmo um aviso... Eu fiz mal em obriga-la a fugir? Ela devia ter ficado como ele mandou, o que me pareceu um alerta subtendido", pensou Rosie, imersivamente reflexiva quanto ao cerco perigoso no qual ela envolveu-se ao lado de Êmina. De repente, ligou a existência de capangas ao roubo na sala do presidente.

- O que sabe sobre a invasão à sala do presidente da Associação? - perguntou ela, voltando seus olhos sérios ao assassino.

- Ei, vamos por partes. - frisou ele, franzindo o cenho - Primeiro que eu não estava sabendo de roubo nenhum. E segundo: A chefia apenas nos encarregou de dar cabo na garota.

- A própria filha que criou com tanta dedicação?! - disse Rosie, sentindo-se revoltada - Que tipo de mãe com uma carreira tão promissora iria recorrer a meios tão malignos? Não faz sentido.

- Do tipo que é capaz de tudo para eliminar qualquer obstáculo, não importando se é ou não parte da famíla. É uma disputa de egos. - atestou ele, firme. - E tem mais uma coisa.

- Diga. - pediu Rosie, rígida no tom de voz.

- Depois que matássemos a garota - dissera ele, aparentando desconforto com os nós nos pulsos -, seria a vez do papai coruja. Aliás, não matando-o, mas sequestrando ele, para só no mais tardar ela decidir se vive ou morre.

- Por que sequestra-lo depois de matar Êmina? - questionou Rosie, incisiva.

- Quando nós revemos os detalhes do plano ontem à tarde, lembro de ela ter mencionado uma acompanhante de sua filha, no caso você claro. Pediu que não a subestimasse, pois só pela primeira impressão já tinha uma noção básica do seu talento... E que talento, viu? - disse ele, sorrindo sacanamente.

- O quê mais? - indagou Rosie, o tom ríspido e impaciente.

- Ela sabia que você faria de tudo para proteger a herdeira, então me recomendou um disfarce. - revelou ele, olhando-a com expectativa em ansiedade pela reação da garota.

- Você veio sozinho não foi? - perguntou Rosie, desconfiando.

- Quem disse que vim sozinho? - indagou o assassino, a expressão de satisfação.

- Espera, então o que você quis dizer para Êmina ficar onde estava era realmente...

- Aí está, você matou a charada. - dissera ele, dando uma risadinha zombeteira em seguida - O que é uma pena, já que eu mesmo fui responsabilizado de mata-la. Você cometeu um grande erro, garota...

- Ah, então foi isso, né? - indagou Rosie, agarrando a gola da camisa do assassino com cólera na face - Essa maldito plano também incluía me matar, você contava que eu mandaria Êmima fugir, então por isso resolveu ficar e me enfrentar, não ia arriscar pular da janela e sair perseguindo ela porque eu também era um alvo e deixaria a sua missão original ao encargo dos seus comparsas!

- Há apenas um jeito de alteramos as coisas e ficarmos bem. - disse ele, insinuante na expressão.

- Defina "bem". - disse Rosie, fervorosa, soltando a gola amassada

- Você me desamarra e arranjo um modo de falsificar sua morte. - sugeriu ele, fitando-a com tranquilidade. - E então? Temos um acordo?

- Não antes de ouvir os meus termos. - disse Rosie, erguendo de leve o indicador direito. - Me prometa que depois de sair daqui e mostrar as provas da minha falsa morte, vai se desligar do plano da Ophelia e fugir do país.

- Por que eu fugiria? - perguntou ele, incrédulo.

- Para sobreviver. - disparou Rosie, lacônica, as mãos na cintura - Talvez os seguidores dela o cacem como ordem final depois que a trama maluca de vingança ir por água abaixo.

- Confia tanto assim que vai entrar, lutar e sair sem nenhum arranhão? Ela alimenta um monstro numa jaula.

- Sim, eu sei, o homúnculo. - disse ela, assentindo positivamente, a paciência atingindo o limite - Sei também que muito provavelmente foi ele quem roubou o objeto que estava guardado no cofre do presidente. Só queria saber qual e porque, mas como você só é um empregado que não pode saber demais, só me resta uma pergunta antes de chuta-lo daqui: Para onde planejavam levar Julian?

- Subterrâneo da mansão Flower. A chefia mandou construírem salas secretas para emergências. Satisfeita?

- Ótimo. - disse Rosie, convencendo-se - Agora sou eu quem faço a pergunta: Nós temos um acordo?

O assassino, por alguns segundos, limitou-se a esboçar um sorriso enigmático, o que Rosie, por um instante, compreendeu como um suposto flerte.

- Você quem manda. - disse ele, contentando-se pela liberdade oferecida ao concordar com a condição de desvinculamento imediato.

Rosie, permanecendo sisuda, retirou de seu cinto uma adaga de lâmina menor, pronta para desamarra-lo. "Por que será que estou sentindo que vou me arrepender?"

                                                                                   ***

Croydon

A porta do quarto de Alexia fora aberta em um vagaroso ritmo. A mão na maçaneta era limpa e feminina. Uma oportunidade abraçada com unhas e dentes como nunca antes ela pensaria obter. A emoção proporcionada só desestabilizava sua discrição em seguir de forma equilibrada até aquele criado-mudo de madeira pintada de azul claro, mais especificamente uma das gavetas.

Eleonor, em receio, preferira manter a porta escancarada, se concentrando em qual gaveta vasculhar primeiramente, sua mão esquerda aos poucos se afastando da maçaneta. Afastou uma mecha do cabelo castanho liso e avançou mais à vontade.

Estacou em hesitação logo ao erguer a mão direita para abrir uma gaveta, a expressão de incômodo. "Vamos lá, Eleonor. Não há o que temer. Uma bruxa moralmente ambivalente como você deveria ouvir mais o que seu coração diz, embora se mantenha esforçada em aprender a se perdoar. Só que isso é diferente... Ela é minha aprendiz. O que eu faria se fosse o inverso? Como me sentiria? Deveria escutar o lado mais gritante da minha consciência e dar meia volta? Não... Não é essa a voz que quero seguir, não agora que consegui essa chance! Que Alexia me desculpe... Mas pela primeira vez, em muitos anos, vou fazer o que o diabinho no meu ombro manda.", pensou ela, conflitando-se consigo mesma em uma guerra de decisões que em boa parte fazia pensar em desistir.

Tocara o puxador enferrujado da gaveta e abrira-a com cuidado.

"Conhecendo bem Alexia, ela apelou para o velho truque...", pensava a bruxa, nem um pouco convencida com os lápis e livretos guardados, logo retirando-os até deixar vazio. "... do clássico fundo falso.". Percebeu a saliência evidente na ponta inferior esquerda do fundo que parecia estar um pouco inclinado e logo removera-o. "Garota esperta".

Engoliu a saliva subitamente ao deparar-se com o objeto outrora oculto. "Um diário.", pensou ela, em seguida pegando o médio caderno de arame espiral duplo e capa cinza. Ao abrir, leu os dizeres na primeira página: "Anotações proféticas. Você, que ousou em retirar esse caderno de seu aposento, tenha consciência do que lerá a seguir. Se não quiser viver os próximos anos de sua vida com medo do que vem depois, sugiro que o feche e jure nunca mais toca-lo outra vez. O que vai escolher? O segredo ou a sua sanidade mental? ".

Não deu outra. Seus dedos, por instinto de curiosidade, já virara para a página seguinte. "1941: O imenso gigante de fogo está faminto e arrasta tudo o que estiver ao alcance. 1945: Duas bombas nucleares devastam duas cidades no Japão. 1947: A bandeira vermelho, azul e branco é levantada e sagrada com glória após seus apoiantes acordarem do pesadelo. 1972: Homem de branco e sem rosto vendo um pontinho azul em um vazio negro. 1999: Apagão mundial. 2001: Pássaros metálicos derrubam duas torres ceifando inúmeras vidas e causando o prenúncio da guerra mortal. 2004: A onda varredora. 2014: Vírus propagado, manchas negras e sangue. 2017: A nova peste traja-se de preto. 2023: O homem de metal furioso que profere um ultimato terrível. 2031: Cogumelos flamejantes brotam de várias partes do mundo sem deixar espaço para ninguém. 2035: Nós somos apenas vermes rastejantes, moribundos e carentes. 2040: O eclipse solar da nova guerra. 2048: A rocha gigante dos céus esmaga tudo e a todos. 2061: Transformação turbulenta. 2076: Novos habitantes. 2089: O céu sangra e a escravidão começa. 2094: Ele vem vindo... 2112: Tentáculos no céu. 2118: As bestas do céu e da terra em confronto. 2123: A morte do sol. 2126: A transmutação dos mundos e do universo...

"Chega!", pensou Eleonor, visivelmente perplexa, largando de repente o diário sobre o criado-mudo.

- Eleonor?! - chamou a vidente, sua voz tornando-se próxima no corredor.

Alarmada, a bruxa, velozmente, tratara de guardar o caderno pessoal da aprendiz na gaveta, logo recolocando o fundo falso desajeitadamente e pondo de volta os livretos e, por fim, fechando a gaveta com certo barulho.

Eleonor virou-se rápido em exatos três segundos antes da vidente chegar ao quarto. Tentou ser rápida o bastante para disfarçar a completa estupefação pelo conteúdo que lera. "Sorte que profetas não leem mentes...".

- O que está fazendo no meu quarto? - perguntou Alexia, a expressão tornando-se severa, entrando. - Estávamos na biblioteca, me desculpa por ter dormido enquanto você falava...

- Não, Alexia, está tudo bem, sou eu quem devo desculpas. - disse a bruxa, erguendo de leve a mão esquerda e fechando os olhos por uns segundos - Não devia ter entrado no seu quarto sem permissão.

- O que veio xeretar? - indagou Alexia, cruzando os braços, desconfiante

"Também não precisa ser indelicada.", pensou Eleonor, forçando tranquilidade.

- Eu... Eu apenas vim - forçou um sorriso - procurar um livro seu, estou afim de refinar um pouco o meu prestígio literário. - fez uma pausa, olhando para a gaveta - Dei uma olhada em alguns... mas não fiquei tão interessada quanto esperava.

- Tem certeza? - perguntou a vidente, estreitando os olhos - Dormi só por uns 20 minutos e é impossível para uma mulher com um gosto tão limitado por leitura não ter gostado de nenhum deles em metade desse tempo só por meros vislumbres e folheadas. Primeiras impressões enganam, sabia?

- É, estou sabendo. - disse a bruxa, dando uma risadinha meio nervosa - Mas não, nenhum deles prendeu minha atenção. E pra sua informação, minha leitura costuma ser rápida e dinâmica. - falou, andando para sair do quarto.

- Devia dar uma segunda chance. Tenho um que praticamente mudou minha visão de mundo. - recomendou Alexia, acreditando no propósito forçado da bruxa.

- Livros não mudam pessoas. - disse Eleonor, atravessando a soleira da porta e virando-se para a vidente - Pessoas mudam pessoas.

- Pessoas mudam o mundo. - retrucou Alexia, sorrindo fechada e levemente. - Talvez, um dia, quem sabe, para melhor.

"Eu não teria tanta certeza.", pensou Eleonor, assentindo positivamente com um fechado sorriso, falsamente concordando com a aprendiz, logo indo embora.

Uma expressão séria e suspeitosa formou-se na face de Alexia após detectar um misto de lividez e continência na postura da bruxa.

                                                                                         ***

Waytehaal - à alguns quilômetros ao norte do parque

"Que vontade louca de voltar só para saber se ela está bem!", pensou Êmina, a expressão de preocupação e cansaço ao mesmo tempo em que corria pela floresta desviando de árvores e pulando sobre galhos e raízes grossas sem tropeçar. "Mas por que toda essa aflição irracional? É a Rosie... Já enfrentou coisas piores, é claro que ela deu um jeito de se sobressair ilesa.".

Seu principal objetivo naquele instante consistia em chamar a atenção do Conselho Alquimista com as pistas que possuía em mãos. Sorte que aproveitou a distração oferecida por Rosie durante o confronto para pegar a carta transcrita e fugir despercebidamente. A floresta, por sinal, lhe era o atalho mais curto ainda que um ambiente propício para emboscadas.

Resolveu parar de correr a fim de reaver o fôlego, inclinando a coluna para frente e apoiando as mãos nos joelhos em ofegações rápidas. Gotas de suor pingavam brilhantes pela luz do sol que atravessava as copas altas das árvores.

- Êmina?! - ressoou uma voz masculina e alarmada.

O tom era inconfundível de modo a fazê-la empertigar-se como se um alarme soasse estridentemente.

- Pai?! - disse ela, um pouco confusa na expressão. Ambos correram para se aproximarem.

- Como se sente? - perguntou Julian, tocando-a nos ombros.

- Um pouco cansada. - disse ela, arfando de leve e dando um fraco sorriso - Olha, é ótimo ver você, depois de tantos anos, mas estamos numa situação de vida ou morte. Eu ia diretamente ao prédio da Associação...

- E eu ia até a pensão ver você e aquela sua amiga. - disse Julian, interrompendo-a - Aconteceu alguma coisa grave?

- A mamãe enviou um assassino disfarçado de caçador e ele invadiu nosso quarto, atacou a Rosie, disse ter matado uma das alunas da escolinha, daí eu fugi e os deixei que Rosie cuidasse de acabar com ele...

- Espera, vá devagar. - pediu Julian, impaciente - Você iria até a Associação para mostrar a carta e denunciar Ophelia?

- Tecnicamente, sua carta não existe mais. - disparou Êmina, a fala mantendo-se rápida - Eu a transcrevi depois de decifrar a mensagem oculta e queimei a original para que não caísse nas mãos dela. Agora me diz: Por que voltou?

Um vestígio de relutância no pai não escapou aos olhos da caçadora.

- Sei que nem a hora e o lugar são apropriados pra isso... - disse ele, tocando-a e afastando-se junto à ela para um ponto menos indiscreto. - Mas ouça: Sua mãe e eu fizemos um pacto.

- Como é que é? - indagou Êmina, estremecida.

- Escute: É algo de que vou me arrepender pelo resto da minha vida e não me orgulho nem um pouco. Aquela foi a última vez que confiei a minha boa vontade à ela, jurei isso a mim mesmo. Em troca da ajuda-la a garantir uma candidatura segura para a presidência, ela... - pausara, baixando um pouco a cabeça aparentando desânimo - ... Nós... voltaríamos a ser uma família de novo. - falou, comovido.

A revelação pegara Êmina com a mesma facilidade de uma aranha que captura sua presa encurralada na teia.

- Isso é verdade? - perguntou ela, um tanto cética.

Julian fizera que sim com a cabeça.

- Mas não se engane. Ela é egoísta e maquiavélica. Sinto muito que tenha que descobrir assim.

- Não, estou bem. Aliás, eu já... até suspeitava que ela não tivesse boas intenções desde o início. Por isso que sempre preferia aproveitar meu tempo livre mais com você. Sua confiança nela... tornava mais fácil acreditar que ela tinha um coração puro.

- O coração dela sempre foi de pura maldade. - salientou Julian, convicto. - E agora que nos reunimos, podemos detê-la. Se tivermos que lutar, vamos lutar.

- Sim, mas e quanto ao roubo na sala do presidente? - quis saber Êmina, olhando de esguelha rapidamente para um ponto, em suspicácia. - O que havia lá de tão valioso? Tem a ver com ela?

- O homúnculo foi hipnotizado e ordenado a roubar a principal relíquia da Associação. - disse Julian, sucinto - O ouroboros.

- O quê?! Não brinca. - disse a caçadora, espantada. - Isso é sério? Sempre pensei que o ouroboros tinha uma base factual apenas simbólica. Então o presidente guardava uma pequena estátua de uma serpente engolindo a própria cauda num cofre? Isso sim que eu chamo de revelação bombástica.

- Eu, você e Ophelia somos os únicos que sabem disso, por ora. - disse Julian, notando duas presenças suspeitas que avizinhavam-se de um canto.

- É realmente uma pena para vocês. - declarou um homem de porte robusto, careca, de pele parda e um cicatriz no olho, vestindo um longo sobretudo preto por baixo de vestes da mesma cor. - Porque agora são cinco. - dissera, sorrindo cinicamente.

O outro - aparentando ser mais jovem, caucasiano com cabelos lisos castanhos bem penteados, rosto quadrado e estonteantes olhos verdes - surgira de um emaranhado de folhas, trajando as mesmas vestes do parceiro, batendo sua mão esquerda numa árvore.

Uma transmutação na forma de uma massa terrosa e "cilíndrica" partida do solo golpeara Julian no queixo de forma brutal, fazendo-o pairar no ar por milésimos e cair de costas no chão com forte impacto. Alardeada, Êmina se viu disposta a lutar.

- Não! - gritou ela - Pai! - virou-se rapidamente para os malfeitores, posicionando-se para uma luta justa. - Andem, o que estão esperando? Se querem mata-lo vão ter que passar por mim primeiro! "Rosie seria ótimo você dar uma passadinha por aqui. Dois contra um não vale!", pensou ela, uma preocupação com a amiga reacendendo-se no peito.

- Hahaha. - rira o careca, debochado, olhando-a de baixo à cima e chegando perto - O que foi? Não trouxe seu giz ou sua lasca de carvão?

- Ei, Jay. - chamou o outro, olhando para Êmina de relance com escárnio - Sabe quem adora fazer rabiscos? Crianças - apontou para a caçadora de mão aberta, logo desatando a rir junto ao parceiro.

- Idiotas... - retrucou Êmina, pouco ligando para a chacota, mantendo sua posição - Transmutação sem círculo. Grande novidade.

- Você quer correr? Pode ir. Nós só queremos o papai. - disse Jay, apontando para Julian, ainda caído, com os olhos.

- Toque nele e eu juro que...

- Vai fazer o quê? - indagou o mais jovem, desafiador. - Está em desvantagem, mocinha.

- Achei que vieram para me matar. - relembrou Êmina, franzindo o cenho, não gostando nem um pouco do quanto aquilo soava suspeito - Qual é a jogada? - perguntou, olhando para ambos.

- Mudança de última hora. - revelou Jay, estralando os dedos em aquecimento.

- Mas para dizer que não somos generosos, nós te damos algumas opções: Pode escolher fugir, mas vai entregar seu pai de bandeja à gente. - disse o rapaz, erguendo de leve o indicador direito enquanto explicava - Pode escolher lutar com um de nós, mas vai ser morta e seu pai vai ser pego. - deu um sorriso infame - Pode escolher lutar com nós dois e morrer mais rápido, seu pai pode até escapar mas não será por muito tempo. Ou pode escolher a opção mais recomendada, que é nos entregar seu pai gentilmente e sem choramingo e sair correndo.

- Por que diabos ela o quer? - perguntou Êmina, o tom ríspido. Julian levantava-se com esforço, tocando no queixo machucado.

- Não importa. Ele é necessário. - respondeu Jay, aborrecendo-se pela demora da execução daquele plano que, em primeira análise, se daria de modo rápido e sem deixar rastros significativos. - Mas respondendo sua outra pergunta... Sim, fomos mandados para mata-la. Ela é uma mãe muito cuidadosa. - ironizara, para o total desprazer da caçadora.

Causando uma brusca - e ligeiramente conveniente - interrupção, Julian, reerguido, avançara contra Jay para lhe desferir um cruzado de direita. No entanto, o assassino segurara seu punho com um excelente reflexo, logo depois aplicando uma forte joelhada direita contra a barriga de Julian que expeliu um pouco de saliva devido ao golpe, logo, por fim, sendo apagado com um soco na têmpora esquerda.

Êmina decidiu avançar, embora desarmada, sentindo uma centelha de fúria, porém fora parada rapidamente pelo parceiro jovial de Jay que pôs suas mãos sobre o solo ao realizar sua alquimia. A caçadora, em um segundo, viu seu corpo ser envolvido por raízes emergidas do solo que a prendiam como serpentes, fazendo seus pés saírem do chão.

- Não! - exclamou ela, frustrada, desconfortada pelo aperto provocado pelas resistentes raízes. Uma delas enroscou em seu pescoço, desesperando-a. - O que vão fazer com ele? - indagou, o tom choroso, ao ver Julian ser carregado por Jay.

- Põe ela pra dormir! - ordenou Jay, andando mais rápido ao carregar o pai da caçadora sobre seu ombro direito.

- Com prazer. - respondeu ele, sorrindo sacanamente, e socando o rosto de Êmina com precisão suficiente para um nocaute.

Sacudiu um pouco a mão direita em sinal de dor enquanto recuava dali para alcançar Jay.

Sozinha na floresta, Êmina ficara sem assistência e à mercê do ataque de outros capangas enquanto mantinha-se presa, desacordada e com filetes de sangue despontando do hematoma próximo à boca após ser covardemente violentada.

                                                                                             ***

As pálpebras pesavam durante o lento abrir de uma visão enturvada. De repente, um odor indescritível perpassou o olfato de Julian com um efeito similar ao de um tapa dado com a única finalidade de fazer despertar. Sobressaltado, piscou várias vezes, esquadrinhando com os olhos o ambiente fechado no qual havia sido colocado como prisioneiro. "Isso é loucura... Estou preso numa jaula... Mas que lugar é esse, afinal?".

Sentiu-se estúpido por não ter percebido pouco depois de acordar ao não sentir os pés no chão graças às firmes amarras que o prendiam por cima. Olhou para o chão e depois para os braços levantados com os pulsos imobilizados. "Só pode ser brincadeira... Ela não faria isso, não me torturaria gratuitamente só por mera represália pela minha saída do plano. A menos que..."

O som de passos aproximando-se cortara seu pensamento. Temeu ser um dos seus captores em vez de sua ex-mulher obcecada em pôr em prática um ardiloso plano de vingança. Moveu um pouco os pulsos para ao menos ter uma noção da firmeza das algemas de ferro preto e apostou no desgaste do mesmo para favorecer um não tão esperançoso movimento emergencial de libertação. Não havia força suficiente. "Ah, droga. Desgraçada". Voltou sua visão para a porta por onde quem quer que estivesse vindo entraria, sem esperar por mais nada.

"Aí está você... "

Ophelia adentrara esbanjando toda a sua postura altiva diante do seu mais novo prisioneiro, realçada por um tranquilo sorriso fechado.

- O que está achando? Confortável? - perguntou ela, irônica, chegando perto da jaula.

- Quando eu penso que você não pode mais me surpreender... - disse Julian, disfarçando sua cólera. Relanceou as grades de ferro ao seu redor, balançando a cabeça em negação - O que significa tudo isso? Fora o odor fétido....

- Meu sinal de que não se trata mais de "nós". - disse Ophelia, categórica. - Eu disse que não pararia. Você saiu, provavelmente duvidando de minhas capacidades e se encontrou com Êmina para mantê-la informada. Onde está a carta?

- Achei que seus capangas tivessem ouvido toda a conversa. - disse Julian, olhando-a sério, visivelmente incomodado pelas algemas - Já tem tudo o que quer. De que vai servir um mísero papel... quando você já me tem por inteiro e subjugado às suas vontades?

- Fico feliz que reconheça. - retrucou ela, levantando uma sobrancelha, a expressão debochada. - O que preservamos sobre família morreu junto com meu amor por você, Julian. Tudo o que construímos em família está completamente definhado.

- Por que você quis assim. - redarguiu Julian, fuzilando-a com os olhos.

- Eu quis? - indagou, franzindo o cenho com um sorriso cínico - Não... Nosso compromisso defendia a liberdade de um concordar com os propósitos do outro, ainda mais quando se trata de reatar laços familiares. Esse é o meu objetivo de vida, Julian. - assumira um tom sisudo - Trilhar uma estrada de sangue para alcançar um bem maior. Você quebrou o juramento. E está arcando com as consequências.

- O que planeja fazer comigo, Ophelia? Isso é insanidade! - reclamou Julian, esbaforido.

- Nunca me senti mais lúcida e sã nesta vida. - disse ela, com convicção estampada. - O indivíduo que já esteve nessa jaula era apenas um teste primário. As preliminares estão quase no fim.

- O que vai fazer? - perguntou Julian, sentindo um cansaço acomete-lo. - Por que roubar o ouroboros?

- Se lhe satisfaz saber, ele nada mais é que a chave para o aprimoramento que selará a condição ideal do meu filho. - revelou ela, dando as costas para Julian, mas mantendo-se parada - E considerando o significado desse poderoso artefato...

Um lampejo arrepiante inquietara o pai adotivo de Êmina.

- Você é louca! Irá usar um homúnculo tornado imortal para assassinar os membros do Conselho?!

- E de quebra fazer uma limpeza naquele lugar tão mal frequentado. - disparou ela, virando-se para ele. - Mas não será ele a cumprir essa tarefa. - falou, aproximando-se um pouco mais - Compreende agora a verdadeira razão pela qual foi trazido até aqui, Julian? - inclinou para falara mais perto - Você é o meu teste beta. Mas antes de começarmos, quero primeiro trabalhar as habilidades físicas dele com uma das visitas que estou esperando.

- O que quer dizer? Quem vai vir? Quem você vai matar? - perguntou Julian, exasperando ao ponto de canalizar sua fúria para quebrar aquelas algemas

- Nossa querida filha tende a me causar muitos problemas. - disse ela, dando de ombros. - Com sua enferrujada inclinação para alquimia, graças ao tempo jogado no lixo em uma escola estúpida e sem o menor charme, nem mesmo a sua heroína, Rosie Campbell, será capaz de se manter viva ou protege-la. - declarou, finalmente virando as costas para sair da sala.

- Ophelia... volte já aqui... - exigia Julian, o tom rude e autoritário - Êmina tocará seu coração amargurado e a fará redescobrir o que nos unia. Isso eu lhe garanto, pode acreditar!

Ela parara próxima à porta e o visualizou por cima do ombro.

- Veja só... Temos algo comum. - disse ela, não medindo a ironia no tom - Somos sonhadores.

Desalentado, Julian suspirou pesadamente com os olhos fechados enquanto Ophelia fechava a porta.

Quaisquer chances de uma reconciliação segura resvalaram-se à nulidade. E Julian reconhecera seu arrependimento penoso com relação ao seu envolvimento imprudente com uma ambiciosa mulher que não media seus desejos nem seus esforços para ser alçada a algum patamar que lhe conferisse determinado tipo de respeito. Não era o amor de uma família, mas de si mesma que a motivava a perseguir seus sonhos, independentemente do quão sujos fossem os meios utilizados. Afinal, era tudo por um bem maior. "O bem maior de Ophelia é somente o seu ego venenoso", pensou Julian, cabisbaixo.

Mal sabia ele que por uma brecha de uma porta na parede lateral à sua direita olhos atentos estavam observando-o.

"Ótimo. Hora de sair das sombras.", pensou Êmina, pronta para tentar salvar seu pai do destino terrível ao qual foi condenado.

                                                                                              ***

A entrada de Rosie havia ocorrido de forma bastante sorrateira na imensa residência dos Flower.

A jovem, em passos lentos, explorava a semi-escura área que apresentava o alçapão em direção ao subterrâneo no qual continha uma série de corredores e salas, além de um depósito de automóveis colecionados pelo avô falecido de Julian, todos eles utilizados pelo ascendente.

- Vejo que o passeio está a entediando. - dissera uma voz feminina logo reconhecida por Rosie.

A jovem virou-se sobressaltada, o instinto de alerta pulsando.

- Nada contra se vestir de modo extravagante, mas esse capuz faz meus olhos doerem.- comentou Ophelia, saindo de uma passagem secreta aparentemente como meio alternativo de acesso ao bunker.

- Pra ser honesta, eu não ando com essa capa e capuz por exibição - disse Rosie, tratando de deixar claro -, mas por uma promessa. Tem um valor sentimental.

- É bom saber que a melhor amiga de minha amada filha preza pela lealdade. - disse ela, aproximando-se com arrogância na postura.

- Amada? - indagou Rosie, franzindo o cenho - Você mandou que a matassem! - vociferou ela.

- Shhh... - chiou Ophelia, baixinho, pedindo silêncio - Meça seu tom se não quiser deixa-lo irritado.

- Do que você está falando? - perguntou Rosie, severa.

- Eu a desafio a derrotar meu filho se quiser chegar até lá embaixo. - propôs Ophelia, a face confiante.

- Filho? Se refere... - Rosie balançava a cabeça em negação por achar absurdo - ... ao homúnculo? -fez uma pausa, recuando dois passos - Escuta aqui... Eu sei que Êmina está em algum lugar dessa casa e muito provavelmente no andar de baixo. Pelo vislumbre que tive do seu monstro ontem à noite, posso presumir que ele não tem muita chances.

- O julgou cedo demais, querida. - disse Ophelia, olhando de soslaio para a sua direita - Ele cresceu. Em todos os aspectos, para o meu orgulho. Existe uma constante na alquimia... caso Êmina não lhe tenha contado... que estabelece um conceito universal de que para se obter algo deve-se sacrificar um bem de valor equivalente.

Ligando os pontos, Rosie arriscou perguntar.

- Criar um homúnculo... exige algum sacrifício? - a olhou com suspicácia - Você, por acaso, abriu mão de alguma coisa tão valiosa a ponto de satisfazer um desejo maligno?

- Se desejar ter algo de volta e que você tanto amou é maligno... - disse Ophelia, deixando a frase no ar. Um vulto aproximava-se lentamente. Ao ganhar forma sob a luz alaranjada da lamparina à óleo, mostrou-se como um ser humanoide desnudo de pele cinzenta clara, porte atlético e, sendo o detalhe mais assombroso, com apenas um olho no centro da testa e sem boca.

Rosie encarou-o com estranheza pura, sendo assaltada por uma péssima sensação.

- Assim como a própria magia, a alquimia cobra seu preço. - disse Ophelia, olhando para seu homúnculo estagnado como um boneco. - Abdiquei de minha alma por um amor renovado. Considere-se privilegiada por ser a primeira e a última pessoa a saber disso.

- Vo... Você está falando sério? - disse Rosie, estranhando e ansiando por mergulhar naquele alçapão de uma vez - Sacrificou a própria alma... para isso? - questionou, apontando para o monstro com os olhos.

- Não é como dizem? Os fins justificam os meios. - defendeu-se Ophelia.

- Tem ideia de que causou todo esse mal por conta desse preço? - disse Rosie, sentindo-se consternada com o auto-controle infame da vice-presidente da AA.

- Eu agi conscientemente desde o início, Rosie. - disse Ophelia, sem se abalar - Depois de uma separação insuportável, tudo o que eu mais queria era experimentar novamente o verdadeiro amor de uma mãe.

- Mas e Êmina? - indagou Rosie, soando ríspida.

- Êmina não era boa o bastante para suprir essa falta, para saciar essa vontade. - revelou Ophelia, firme no tom. - Aliás, ela tornou-se um empecilho à minha conquista, ao lado do próprio pai. Imagino que meu subordinado tenha colaborado à base de ameaças fortes.

- Talvez o ser ao seu lado não seja o verdadeiro monstro dessa história. - disse Rosie, enojada. - Êmina ficará bem decepcionada quando souber que tinha um meio-irmão cujo corpo foi usado para dar origem a uma aberração.

- Ele é tudo, menos uma aberração. - retrucou Ophelia, elevando o tom - Pode fugir pelo alçapão se quiser, não importa, afinal será perseguida incansavelmente, ele fará dos seus esforços para achar Êmina completamente falhos. Neste exato momento, ela pode estar tentando um jeito de libertar Julian. Então, se me der licença, tenho de avisar ao meus súditos...

- Fala dos dois idiotas que apaguei e amarrei no teto do armário de ponta à cabeça? Pois é... - disse Rosie, arqueando uma sobrancelha em sinal de auto-confiança.

Ophelia a fitou em silêncio com seriedade por poucos segundos. Em seguida, tornou a se dirigir ao seu assecla mais efetivo.

- Mate-a. - ordenou ela, lacônica, logo saindo por uma porta.

Acatando a ordem, o homúnculo dera passos seguros em direção à Rosie a fim de ataca-la.

Sem perder mais nenhum tempo, Rosie virou-se e abrira a porta do alçapão, logo descendo a escada com bastante pressa. Fechara a porta antes que o predador pusesse um pé para dentro, ainda que tivesse plena ciência de que ele a perseguiria sem nenhuma dificuldade. Portanto, tal movimento, além de desesperado, obviamente era ineficaz.

Após descer os degraus da escada, saiu em disparada pelo primeiro corredor do bunker um pouco mais escuro que os posteriores.

                                                                                       ***

Julian arregalara os olhos em um misto confuso de estranhamento e felicidade.

- É um delírio? - se perguntou, piscando várias vezes - É você mesmo?

Êmina se pusera diante das grades frontais da jaula, procurando a fechadura.

- Bem, para a alegria do senhor... Não está delirando e sou bem real. - disse ela, enfática. Encontrara a fechadura - Ótimo... Roubei um molho de chaves que estava no escritório. - disse ela, retirando o conjunto de chaves - Talvez uma delas seja a cópia da chave original. - selecionara uma aleatoriamente e inserira-a.

- Êmina... Por favor, vá embora, salve-se. - pediu Julian, desesperançoso, suando profusamente - Ophelia tem capangas que são... - engoliu a saliva - ... alquimistas profissionais. Não sei como escapou ou avançou sem ser vista, mas... se chegarmos a bater de frente com eles de novo, não vamos ter a mesma sorte de antes.

- Fica tranquilo. - aconselhou Êmina, tentando outra chave. - Estou aqui desde o fim da tarde, me mantive escondida no escritório na maior parte do tempo. O soco daquele desgraçado foi tão forte que conseguiu me apagar por horas.

- Bateram em você? - indagou Julian, deixando uma raiva brotar - Covardes. Vão se arrepender...

- Guarde essa fúria para quando encararmos a chefia. - disse a caçadora, tentando a penúltima chave. - Mas que droga...

- Olha, é melhor você ir. - insistiu Julian, olhando-a - Essas algemas estão me matando... Na verdade, toda essa jaula é feita do único material imune à alquimia.

Empertigando-a, a jovem expressou preocupação.

- Oh, essa não... - bateu de leve com seu indicador esquerdo numa grade - Me parece uma combinação de metais raros. Um hibridismo alquímico desse tipo chega a ser insano. Ela transmutou essa jaula... para prender o homúnculo. - deduziu ela, imersa em pensamentos. - A pedra filosofal talvez esteja dentro dele e lhe dá habilidades.

- E eu serei o próximo. - disparou Julian, sem rodeios.

Êmina fez cara de que não entendeu.

- Como é?

- Ophelia pretende me usar como bucha de canhão para finalizar sua vingança contra o Conselho. - revelou ele, aguentando a pressão das algemas o máximo que podia. - Me matar para depois utilizar meu corpo para realizar uma transmutação humana e reanima-lo como uma nova criatura.

- Uma transmutação humana. - compreendeu Êmina, estarrecida - O maior tabu de toda a alquimia.

- Exatamente. Ela precisa ser detida, filha. - disse Julian, tentando transmitir força de vontade - Só você pode ser capaz de fazê-lo. Portanto, vá. Por favor. Tenho certeza que sua amiga Rosie também veio, mas Ophelia, creio eu, pode estar a mantendo ocupada com o homúnculo, portanto concentre-se em para-la.

Constatando que absolutamente nenhuma das chaves funcionava, a caçadora, desconfortável, fitou o pai estando dividida entre aceitar o pedido e permanecer tentando achar um modo de liberta-lo.

                                                                                     ***

Croydon

Eleonor voltava da cozinha com um certo entusiasmo por ter finalmente preparado um cardápio com mais esforço do que em ocasiões anteriores onde seus dotes culinários provaram-se inferiores aos de sua aprendiz e, consequentemente, teve de se admitir que havia algo importante a ser absorvido em um aprendizado necessário com a vidente. Uma das razões pelas quais se orgulhava em tê-la.

Os preparativos para a refeição poderiam parecer estranho, como que para amenizar o clima desconfortável no flagra de horas atrás, apagar qualquer indício de desconfiança e fortalecer os laços.

- Alexia, o jantar está pronto. Não vai acreditar, mas arrisquei aquele prato que você ado...

Um susto cortara subitamente a sua frase logo quando dobrou para a sala de estar, parando no caminho ao fitar a cena com espanto e lividez instantâneos.

Sua aprendiz estava imobilizada contra à parede com a boca aberta em arfares desesperados e olhar agoniante. A mão cruel que a mantinha daquela forma estava esticada e pertencia a uma bela mulher caucasiana e de cabelo preto estilo chanel, usando uma gargantilha e um vestido negro que ia até seus joelhos - sob ele estavam botas de couro da mesma cor, o que lhe conferia um ar meio gótico.

- Oh, que pena, parece que ela perdeu a fome. - disse ela, zombeteira, sorrindo com canalhice. - O que foi? Não vai dizer "Há quanto tempo"?

- Cassandra!? Como você...

- Alto lá... traidora. - acusou ela, tomando seriedade - Nenhum passo adiante. Ou o próximo suspiro que sua protegidinha aqui der pode ser o último. A menos que você diga as três palavras mágicas que talvez farão você se sentir menos culpada por envolver uma inocente alma nos seus problemas.

- Já chega! - vociferou Eleonor, desesperando-se - É isso que você tanto quer, então aceito. Eu me rendo! Mas por favor deixe Alexia fora disso, eu imploro!

- Implora? - indagou ela, dando uma risadinha irônica - Diz isso na frente dela para livra-la, estou curiosa pra ver como será entre mim e você quando eu coloca-la de joelhos sendo obrigada a lamber o próprio sangue empoçado no chão.

A bruxa perseguida fechara os olhos por um segundo, procurando manter-se estável.

- Solte ela, por favor. E nem vou perguntar como conseguiu chegar à mim...

- Ah, mas eu faço questão de explicar. - declarou Cassandra, libertando Alexia de seu controle telecinético ao baixar o braço esquerdo. A vidente caíra no chão, com ofegações intercaladas com tosse. - Sabe aquela sua velha amiga... Yvette? Pois é... Foi bom conhece-la pela primeira e última vez.

- Sua maldita... - disse Eleonor, encarando-a com fúria e elucidando amargor na voz - Sabia... Sabia que havia alguma coisa suspeita no dia em que fui na loja...

- Mas tem que concordar que minha atuação foi convincente. - provocou ela, aproximando-se com altivez - Ela só era uma dentro de uma lista bem longa. - falou, arqueando as sobrancelhas. - Ela já estava morta há dias e acabei sendo obrigada a tomar conta daquele pardieiro. Você foi minha primeira cliente desde o dia em que a matei. Eu mal pude conter minha empolgação, mas fiz o possível e funcionou.

- Espera aí. Como sabia que eu ia recorrer à Yvette? - perguntou Eleonor, confusa.

- Não sabia. Pura coincidência. - disse Cassandra, dando de ombros e sorrindo - Tudo bem, sendo honesta... Diria que aquela loja era um dos pontos de encontro que nós deduzimos aonde você pediria por ajuda com o objetivo de driblar nossas ações. E finalmente estou com a faca e o queijo na mão, pronta para leva-la feito um cão surrado.

- Não conte com isso. - retrucou Eleonor - Não vou deixar que me leve de volta para novamente olhar nos olhos daquela serpente peçonhenta que vocês ainda chamam de mestra. Jamais vou perdoa-la por Yvette... - relanceou Alexia ainda meio debilitada.

- Você realmente acreditou que comprando uma Ônix seria possível se manter fora do nosso campo de visão? - questionou Cassandra, mantendo-se com postura ameaçadora - Essa sua atitude até fez mudar um pouco o plano. Em vez de mata-la de uma vez, preferimos que fosse trazida gravemente ferida, só depois é que usaríamos uma Ônix para drenar sua magia à força e, por último, você seria jogada num esgoto após ser esfaqueada, ou, talvez, decapitada...

- Ultimun confractus! - dissera Alexia, levantando-se de repente, com a mão direita aberta e o braço esticado em direção à fervorosa rival de sua amiga. Instantaneamente, Cassandra tivera seu cada osso de seu pescoço fragmentando em uma quebra violenta que a fez quase girar a cabeça em 360º. Por fim, a bruxa caíra desfalecida e com os olhos abertos.

Eleonor petrificou-se de espanto, ficando boquiaberta com o que testemunhou.

- Alexia... - a bruxa mal conseguia expressar uma reação - ... Vo-Você... Quando aprendeu... Desde quando...

- Não precisa ficar assustada. Eu tive que me preparar para algumas... contingências. - justificou a vidente, um tanto arrasada. - Jamais imaginei que um dia pudesse cometer um assassinato para salvar a vida de alguém... Talvez eu me odeie por isso por um bom tempo... Ou quem sabe esse sentimento ambíguo e confuso passe como se nem tivesse existido e eu me acostume. Nesse caso, eu prefiro me odiar por ter feito a coisa certa, pela razão certa mas do jeito errado.

A vidente andara em direção ao seu quarto, ignorando o cadáver de Cassandra largado ao chão.

Eleonor derramara uma lágrima pelo estado da aprendiz, enquanto questionava no que poderia estar tornando-a com o uso da magia. "Ela se viu forçada a estudar magia ofensiva para tentar me proteger e agora está com medo de que isso venha a confundir sua mente a ponto de nem mais se reconhecer no espelho. Ela sabia que Cassandra poderia me atacar de surpresa a qualquer momento, então não houve escolha. Acho que devo tomar uma iniciativa... devo proibi-la de utilizar qualquer tipo de magia, ainda que seja para me salvar, mas... sinto medo da decisão que ela pode tomar para afastar essa sensação estranha.", pensou a bruxa, mantendo-se de pé no meio da sala de estar, rendida à um ácido sentimento de impotência.

                                                                                            ***

Um dos pontos mais prováveis de subtrair a verdadeira chave seria em dos depósitos, nada mais que salas pequenas que serviam de abrigo para diversos objetos pertencentes ao ancestral proprietário da mansão. Êmina, arriscando e confiando na aposta de Julian, enveredou-se para um deles, sem querer deixando a porta entreaberta ao entrar depressa.

O ar de decepção predominou em sua face por vários segundos ao visualizar o recinto.

"Tá de brincadeira comigo, não é? Não tem absolutamente nada aqui! Que dirá nos outros..."

Mal se virou para sair e estacou no mesmo instante com a desagradável aparição de Ophelia, quase que dando uma impressão fantasmagórica.

Lívida, a caçadora recuou poucos passos, procurando manter o foco da missão.

- Surpresa em me ver? - indagou Ophelia, entrando na sala.

- O que você faz aqui? Onde está Rosie? - perguntou ela, usando um tom petulante.

- Se divertindo com o meu filho em um jogo de gato e rato. - disparou ela, dissimulada - O meu verdadeiro e único filho. - declarou, com ênfase intensa.

- Do que você está falando? - perguntou Êmina, franzindo o cenho - Papai uma vez me disse que era infértil... que pelo destino ter lhe negado a capacidade de gerar uma vida você se sentiu obrigada a cuidar da prole do homem que você amava como se tivesse saído do seu ventre. - falou, em comoção.

- Então permita-me refrescar sua memória. - disse a vice-presidente da AA, aproximando-se - Wallace. Esse nome lhe soa familiar?

Êmina podia jurar não saber definitivamente nada do ponto em que ela almejava chegar.

- Não lembro de ninguém com esse nome que eu tenha conhecido. - disse a alquimista, parecendo estar incerta pelo entendimento de sua mãe adotiva, algo que a fez insistir um pouco mais.

- Talvez não exatamente do nome... - disse Ophelia, fitando-a com expectativa contida - ... mas sei que existem fragmentos dessas memórias que com o tempo vão sendo ofuscados até não restar mais nada. Vamos lá, você consegue.

- Pode parar. - disse Êmina, furiosa, apontando para Ophelia com o indicador direito em sinal de barreira - Não vou cair nesse seu incentivo falso. Não vou deixa-la me manipular. - fez uma pausa, ficando pensativa - Me forçando a lembrar do passado só para que eu tenha certeza do seu filho que você transformou em homúnculo. - ergueu o olhar marejado e desapontado para ela. - Seja lá quem for Wallace... está morto tanto nesse mundo quanto na minha memória.

- Wallace foi minha primeira cria, fruto do meu relacionamento anterior ao de Julian. - revelou Ophelia, andando alguns passos pela sala ao explicar - Quando me separei e me comprometi a Julian, depois que ele se separou da sua verdadeira mãe, tive que travar batalhas consecutivas no tribunal pela guarda da criança. Infeliz e injustamente, o desgraçado levou a melhor. Mas havia uma condição judicial de que eu teria o direito de vê-lo aos fins de semana. Com o tempo, ele se afeiçoou à Julian, eu diria que o via como um segundo pai. - disse ela, virando-se para Êmina, tentando passar uma impressão emocionada. - Tentei proibir Julian de leva-lo até a casa de Josefine nos fins de tarde, às escondidas enquanto eu trabalhava. Nesta época, você tinha uns 3 ou 4 anos.

- Espera... Como assim o papai levava o garoto até a casa onde eu vivi até os meus 4 anos? - perguntou Êmina, pondo uma mão na cabeça e sentindo-se confusa.

- Deve se lembrar vagamente de um garoto de oito anos brincando de casinha com você durante o pôr do sol. - disse Ophelia, cruzando os braços enquanto andava devagar - E obviamente a vaguidade dessas lembranças foi por minha causa. Vocês dois tiveram uma relação de quase irmãos muito curta.

A jovem sentira suas pernas bambearem de perturbação. No fundo de seu subconsciente, imagens borradas, alaranjadas e enevoadas de um garoto com roupas comuns rindo alegremente ao seu lado em meio à vários brinquedos espalhados pelo chão.

- Tem razão... Foi só você... me dar essas dicas que... tudo ficou mais claro. - disse Êmina, convencida, mas certamente mantendo o repúdio pela mão de criação. - Como você pôde?

- Depende do que você está me acusando. - disparou Ophelia, sem medo.

- Reanimou o corpo de seu filho com uma transmutação humana e o usou como artifício para o seu plano maligno. - disse a caçadora, revoltada. - Esqueci de mais alguma coisa? indagou, arqueando as sobrancelhas. - Ou será que não há mais nada que a grande Ophelia Flower possa revelar para sujar mais a sua ficha?

- Na verdade, tem sim. - falara ela, séria. - Você tinha que saber em algum momento e vai ser agora. Sua mãe biológica... segundo o seu pai, ela foi morreu carbonizada pelo incêndio na casa para a qual ela se mudou depois da separação. Afinal, ele, alguma vez, contou o que ocasionou o incêndio?

A pergunta pegara Êmina completamente desprevenida. "O estranho é que nunca me perguntei e ele nunca me disse nada, sempre foi tão vago!"

- Apenas eu e somente eu, Êmina, - disse Ophelia, sem nenhum resquício de comoção na face - Você sabe muito bem como lido com obstáculos.

- Não... - dizia Êmina, balançando a cabeça em negação enquanto sua expressão tornava-se pálida em tremendo horror - Não teve coragem...

- Ah, aí está algo que jamais me faltou. -  disse ela, sorrindo tortamente - Só uma pena que as consequências também sobraram para meu querido Wallace.

- Não... Não... - exasperou-se Êmina, recuando vários passos, as mãos trêmulas - Tudo faz sentido agora. Você já tinha tudo em mente. Matar seu próprio filho... matar minha mãe... - uma lágrima derramara de seu olho esquerdo - Queimou a casa para que a ligação entre eu e Wallace se desfizesse pra sempre. Matou minha mãe por puro ciúme. E só vitimou Wallace como parte do seu plano para dar um golpe na Associação... - fechou os olhos, deixando mais lágrimas escorrerem pelo seu branco rosto - Você é um monstro. - acusou, com a voz chorosa.

- Matar três coelhos numa só cajadada nunca foi tão fácil. - disse Ophelia, destilando toda a sua audácia - Por sorte, foi salva pelo mordomo.

- É, não fico surpresa por também ter me incluída na lista negra. - disse Êmina, enxugando o rosto. Ao tirar as mãos diante da face, encarou Ophelia com um ar embargado de cólera que fervilhava seu sangue - Julian ter me levado para a casa de vocês deve ter a deixado muito zangada. - sacara uma faca do seu bolso - Enquanto ele me via como o orgulho da família... você me enxergava como uma intrusa.

- Honestamente... - disse Ophelia, pouco se intimidando com a ira da jovem caçadora - ... não tiro a sua razão. - confessou, sem se importar.

Em rápido impulso, Êmina avançara contra ela com a faca em riste.

Movimentando-se, Ophelia segurara o braço da alquimista com força, sem precisar dar nenhum passo.

- O meu capanga que sua amiga poupou me disse que ela é extremamente habilidosa com lâminas. - disse ela, zombando da filha pela expressão - Você só é boa mesmo em rabiscar círculos.

- É melhor tomar cuidado. - alertou Êmina, forçando seu braço agarrado - Muito do que ela demonstrou contra o seu capacho foi ensinado por mim. - disse ela, logo chutando-a fortemente na perna e libertando seu braço. Em um movimento bastante eficaz e veloz, conseguiu derruba-la fazendo a dar um grunhido doloroso, colocar-se por detrás dela e segurar seu queixo com a mão esquerda e aproximando a adaga à garganta com a outra. - E agora? Quem é a criança?

- Minha perna está doendo... Pare! - gritou Ophelia, apertando os olhos e trincando os dentes.

- Vou quebra-la se fizer um movimento brusco. - ameaçou Êmina, rígida no tom - Ou cortar sua garganta. Agora me fala de uma vez: Como você conseguiu a pedra filosofal?

- A questão... não é como, mas com quem. - disse Ophelia, detestando estar naquela condição - Encare a realidade, filha. É misericordiosa demais, e isso a torna fraca.

- Não... me chame... de filha. - retrucou a caçadora, aproximando-se mais a faca à tireoide da alquimista profissional - Você não passa de uma fraude. A falta de provas foi proposital, só quis dar um motivo extra para odiar o Conselho e recorrer ao presidente. Se não conseguisse a ordem de banimento, usaria meu pai transformado em homúnculo para fazer o serviço sujo.

- Você quer a resposta para o mistério ou continuar me rebaixando? - questionou Ophelia, impaciente.

- Tudo bem. Quem lhe forneceu a pedra?

- Fui influenciada por colegas frequentadores de reuniões secretas e me recomendaram a ajuda de uma garota chamada Dora para obter a pedra filosofal de modo fácil e sem custo. Mas não foi bem assim. - disse Ophelia, a voz pressionada. - Ela me forçou a vender minha alma para me ofertar a pedra. Fiz a transmutação com o corpo de Wallace que havia sido 20% carbonizado e que preservei numa cápsula criogênica. Com o preço que paguei, restava fixar a alma de Wallace e assim o fiz. Em troca de minha alma, a dele retornou ao seu corpo original e modificado. Mas Dora me orientou que a ligação entre corpo e alma estabelecida por meio de uma transmutação humana não garantia um tempo otimizado até a realização do meu plano. Em outras palavras, uma rejeição colapsaria a conexão, destruindo o corpo e a alma vagaria sem rumo. Inserir a pedra foi o método mais eficiente para prolongar o período da conexão em anos o que a ausência dela conferia apenas em dias.

- Então a pedra filosofal não passa de uma bateria para o seu brinquedo. - constatou Êmina.

- E se ainda não estiver satisfeita - disse Ophelia, prestes a complementar -, saiba que é preciso do sangue de quatro Elementais misturado com o sangue de um humano morto para se criar uma pedra 50% mais operativa.

- Conseguiu matar Elementais? São extremamente raros, não tem como você ou os seus capangas terem os capturado em tão pouco tempo. Vocês nem são caçadores, só isso já basta pra refutar essa balela. - disse Êmina, profundamente incrédula.

- Pois é... Dora me ajudou muito a lidar com certas limitações. - declarou Ophelia, recordando-se do prestativo apoio oferecido pela misteriosa aliada. - E sobre o ouroboros... Potencializa o poder da pedra. Ou seja, torna meu filho renascido uma criatura indestrutível e imortal. Sua amiga que se cuide.

A fim de neutraliza-la efetivamente, Êmina retirou algemas do bolso de sua calça preta apertada e prendera os pulsos de sua mãe postiça. Inconformada com o ato, Ophelia se viu no direito de reclamar da "injustiça" cometida pela sua filha adotiva.

- Por que está fazendo isso? Precisa de mim para destrancar a jaula e libertar Julian.

- Em primeiro lugar: Não vou ser nem louca de pedir sua ajuda. - redarguiu Êmina, terminando de fechar as algemas. - E em segundo lugar: Não precisa, eu já encontrei. - disse, erguendo de leve com as duas chaves que retirara do bolso traseiro da calça de Ophelia, tilintando-as ao balança-las. Ela se levantou para enfim se direcionar à sala de confinamento. - O seu sonho de disputar as próximas eleições já era.

- Êmina... Por favor, você não vai deixar sua mãe aqui sozinha e algemada para apodrecer.

- Não se preocupe, vai apodrecer em outro lugar bem pior. - disparara ela, olhando-a com puro desprezo. - E você não é minha mãe. Só a vadia que destruiu minha família.

A jovem saíra em passos tranquilos, girando as chaves com o indicador e assoviando baixinho.

- Nããããoooo!! - vociferou Ophelia, enfurecida e deitada no chão, logo debulhando-se em dramático pranto ao sentir os primeiros indícios de sua evidente derrota.

                                                                                          ***

As maçanetas da porta dupla de entrada para o depósito de automóveis encontravam-se em estado de oxidação avançado demais para que qualquer barra de ferro ou tábua servisse de tranca. Vendo suas opções esgotarem, Rosie adentrou depressa no amplo espaço com carros de vários modelos e marcas organizados nas laterais e esquadrinhou o ambiente com seus olhos rápidos em visível desespero. Os carros à sua direita tinham suas dianteiras voltadas para ela e atrás deles haviam janelas altas quadriculadas. Outras também se encontravam na esquerda e próximas à porta.

"Vamos, Rosie... Alguma passagem secreta, deve haver... ", pensava ela, procurando afastar-se da entrada e visualizando cada ponto minuciosamente em passos largos. "É detectar um modo de escapar daqui com vida ou enfrentar esse monstro com meu último e improvável recurso.".

Assustou-se de leve ao escutar a porta bater, o que naturalmente a fez virar para trás.

- Cacete. - disse ela, em tom baixo ao fitar o homúnculo encaminhar-se até ela de forma ameaçadora.

Por outro lado, seria tolice fingir que não existia um aquietado sentimento de comprovação quanto às habilidades e capacidades daquele ciclope sem abertura bocal.

Encarou o olhar sibilante e frio do ser, não teimando em demorar nenhum segundo a mais ao sacar duas adagas médias de seu cinto e lança-las contra ele. As lâminas avançaram no ar verticalmente e penetraram no peitoral avantajado do homúnculo.

Rosie, tensa, aguardou uma reação. No entanto, o oponente removera as adagas com as duas mãos tranquilamente, jogando-as no chão em seguida.

"É tudo ou nada. É agora ou nunca!", pensou ela, expressando bravura ao encara-lo, preparando-se ao respirar fundo. Esticara o braço direito com a palma da mão aberta, mantendo os olhos fechados e procurando concentrar-se unicamente no poder inestimável que corria pelas suas veias. "Mesmo ele não sendo mais humano, seu corpo cadavérico pode ser tão vulnerável ao fogo quanto o de um vivo".

Os passos do homúnculo tornavam-se cada vez mais hostis à medida que os segundos corriam e o trunfo de Rosie mal expressava uma reação significativa.

Ela apertou os olhos e mordeu o lábio inferior, vasculhando em seu âmago toda a nata daquele poder. "Não pode ser. Porque não funciona? Será a pedra filosofal? Ela estaria... dentro dele e inibindo a ação do meu poder? Não, impossível... Quando Êmina falhou em decompor a armadura de Abamanu, ele deixou bem claro que a alquimia dos humanos é extremamente fraca comparada a dos deuses. Mas aqui é diferente! É a energia bruta de uma divindade. Como isso pode..."

Um agarro forte em seu pescoço cortou seu raciocínio abruptamente. A jovem sentiu seus pés serem tirados do chão e a passagem de ar ser interrompida. Os dedos da mão direita do homúnculo apertavam seu pescoço com clara intenção de estrangulamento instantâneo.

Arriscou chuta-lo na canela esquerda, o que reduziu a força do aperto. O chutou mais uma vez e mais forte. Depois novamente. E de novo. De novo. De novo.

Até que, enfim, ele a largara, fazendo-a aproveitar a chance de toca-lo, de preferência dela na cabeça... e quebrar seu pescoço. O estralo dos ossos ressoou mais alto do que ele esperava.

Caindo desfalecido, o homúnculo perdera suas forças. Aparentemente. Com um pé atrás, Rosie foi afastando-se lentamente, olhando-o desconfiada e respirando ofegantemente.

"Fácil demais pra ser verdade".

Foi só virar as costas para novamente sentir a presença da criatura que reerguera-se como se nenhum dano tivesse sofrido.

- Já devia imaginar. - disse ela, séria, logo virando-se. O homúnculo a pegara pelos braços, permitindo uma luminosidade azulada ativar-se por baixo de suas mãos. Veias dos seus ante-braços ficavam em relevo, tornando visíveis pequenos filetes luminosos da mesma cor passando por elas.

"Mas o que é isso? Sinto como se toda a minha força de vida estivesse sendo drenada...", pensou Rosie, tentando intensamente desvencilhar-se, produzindo grunhidos apertados. O ser a olhava sem piscar nem por um segundo. "Ah não! Tudo bem, não custa tentar... Um, dois, três...".

De forma incrivelmente brusca, Rosie desprendeu-se daquelas mãos obstinadas e implacáveis e o pegara pelos ante-braços, cujas veias desapareceram. Porém, o efeito esperado permaneceu adormecido. "Mas que merda! Por que diabos não está funcionando?". O olhou nervosamente.

Como retribuição, o homúnculo a golpeou com um forte tapa dado pela parte superior de sua mão esquerda que a fez ser arremessada em direção ao para-brisa de um dos carros que, efetivamente, rachou-se no mesmo instante. Deslizando pelo capô e caindo, a jovem esfregou sua mão no rosto onde sentia sangue escorrendo. Reergueu-se e avançou contra o homúnculo, tentando golpeia-lo com chutes e socos. Para o seu azar, as defesas do corpo do adversário eram praticamente imbatíveis, de modo a não obriga-lo a se mover muito para barrar as investidas. Segurou um soco desferido com certa força pela jovem, apertando-o sem muito esforço para quebrar os ossos.

"Devolva minha mão, seu desgraçado!", pensou Rosie, sentindo a torturante dor do aperto, trincando os dentes em suportação.

Parecia que o homúnculo tinha plena noção de que incutir dor em um ponto de menor alcance não ajudaria muito no acatamento da ordem. Portanto, um lançamento precipitado foi a única saída clara. E assim o fez, ao usar o punho fechado de Rosie para arremessa-la brutalmente contra uma das janelas quadriculadas do lado direito.

O corpo da jovem impactou-se contra os quadrados de vidro que estilhaçaram aos montes e alguns pedaços da madeira da janela caíram sobre ela. Por sorte, não havia indício de um súbito desmaio, apenas algumas escoriações nos braços e rosto.

O homúnculo, objetivando um fim rápido para o serviço, pegara uma barra de um barril metálico repleto de ferramentas para consertos automotivos e andara em direção à janela destruída onde havia um espaço entre dois carros que ofereciam passagem. Tocou na barra, deslizando sua mão - com a mesma luminosidade azul - para a ponta da mesma enquanto transmutava-a em uma afiada lança.

De supetão, ouviu-se o barulho da porta abrindo-se.

Êmina e Julian chegaram alardeados para salvarem Rosie da ameaça imparável da cria corrompida e nascida da ambição tóxica de Ophelia.

- Caramba... - disse Êmina, espantada com a aparência da criatura - Então foi pra isso que ela sacrificou seu bem mais precioso que a permitia amar alguém? - se perguntou, balançando a cabeça em negação, aturdida.

- Wallace... - disse Julian, fitando-o comovido - Sei como deve estar gritando por ajuda aí dentro. Merecia um descanso, não essa tortura!

Era totalmente compreensível vê-lo fitando sua segunda figura paterna completamente estagnado segurando uma arma pontiaguda. Ainda que a troca de olhares fosse desproporcional, Julian sentia-se tocado por uma ânsia incontrolável que o fazia enxergar um único vestígio de humanidade por detrás daquele corpo cinzento e gélido. Enxergar uma imagem transparente de seu enteado ainda na tenra idade projetada na figura bizarra e desagradável que a prática proibida da alquimia o transformou.

- Se lembra de mim? - perguntou Julian, dando uns passos adiante, em uma tentativa improvável de reaproximar-se emotivamente e resgatar os sentimentos que ambos nutriam entre si - Sou eu. Julian. Ou papai número dois, como você chamava. - disse ele, sorrindo fracamente por um segundo.

O ser permanecia a observa-lo imóvel. Êmina olhou para seu pai adotivo com receio mediante ao plano impulsivo. "Vai com calma, não é assim tão fácil... Se é que é possível".

- Sua mãe, pelo visto, pôs uma coleira em você. Mas... eu estou aqui para liberta-lo desse sofrimento.

Aparentemente, a ideia começava a surtir efeito. A começar por largar a lança no chão ignorando completamente, a partir dali, a missão a qual fora incumbido.

Ainda restava algo do antigo Wallace no monstro sanguinário e abominável. Daquele único olho estático brotara uma lágrima... aos poucos escorrendo pelo rosto acinzentado e sem vida.

O primeiro passo em direção ao revival de uma amizade interrompida ocorreu de forma literal. Mais dois passos reavivaram as esperanças do padastro.

- Isso... Pode vir, não há nada a temer. - disse Julian, de braços quase abertos para acolhe-lo.

- Pai... - dizia Êmina, hesitante.

- Está tudo bem... - disse Julian, disfarçadamente em tom baixo. - Isso, filho, chegue mais perto. - incitou ele, aumentando sua expectativa.

Ao ganhar proximidade, o homúnculo estacou, ficando a encarar seu padastro por vários segundos.

"Nem tente abraça-lo.", pensou Êmina, preocupada.

- Quer me tocar? - perguntou Julian, vendo-o erguer sua mão direita e direciona-la até sua cabeça. Sentiu o gelado dos dedos de Wallace em sua têmpora direita, algo que fez Êmina contorcer-se interiormente em aflição. De repente, um som cavernoso de respiração profunda ecoou pela mente de Julian, causando estranheza no mesmo.

- Por que fizeram isso comigo? - perguntou a voz angustiada de um menino em telepatia. A saudosa voz do pequeno Wallace. - Queria ter continuado morto em vez de ver você desse jeito. Com ela. Sem mim. Você me quis de volta... Mas você e a mamãe falharam. Preferem ela do que a mim. Por que? Por que tem que ser assim?

- Não... Wallace... Ouça, isso não é verdade... - disse Julian, atordoando-se. - Êmina é a sua irmãzinha. Costumava chama-la assim. Ainda lembra?

- Antes eu os amava... Agora odeio... Odeio todos vocês! - disse Wallace, gritando na mente desesperada de Julian.

O homúnculo desferira um brutal gancho de direita contra seu padastro ao aproveitar da vantagem que a fragilidade emocional do ex-marido de sua mãe lhe dava.

- Pai! - gritou Êmina ao ver Julian chocando-se contra uma parede próxima à porta. Virou-se para o homúnculo, discretamente retirando do bolso dois objetos convenientes. - Muito bem, hora de acabarmos com isso de uma vez por todas. - pusera as luvas alquímicas decompositoras e avançara contra o homúnculo, rapidamente desviando de seus golpes e tocando-o nos braços com as duas mãos de uma só vez. A pupila de seu olho central movimentava-se veloz como que sinalizando apreensão - Ter só um olho deve ter suas desvantagens. - disse a caçadora, imobilizando-o com as metálicas luvas. - Nunca mais vai ferir alguém. - sua expressão suavizou-se - Descanse em paz... irmãozinho.

Com ativação dos círculos alquímicos, raios elétricos azuis dispararam do tronco e do olho da criatura diretamente para cima, representando o processo de decomposição instantânea do corpo transmutado.

Julian, tentando levantar-se, protegia os olhos com uma mão devido à intensa claridade, impressionando-se com a coragem da jovem. Pedaços do teto caíam de Êmina e as lâmpadas fluorescentes queimavam liberando várias faíscas contra o chão

O corpo do homúnculo iniciava um apodrecimento rugoso, de baixo para cima, que lembrava uma petrificação.

Com seus cabelos esvoaçando, Êmina já conseguia certificar-se do enfraquecimento acelerado do corpo. Inesperadamente, o corpo apodrecido do homúnculo explodira em uma densa nuvem de fumaça cinzenta escura, finalizando, assim, a decomposição, livrando a alma do pequeno Wallace.

As luvas alquímicas metálicas caíram no chão como se houvessem acabado de serem forjadas, exibindo uma coloração alaranjada devido ao intenso calor em brasa gerado pela decomposição.

Um tilintar de um objeto pequeno caindo fora ouvido pela jovem enquanto ela tossia em meio à fumaça que tentava dissipar com o abanar de uma mão.

Julian apontou para algo brilhante no chão.

- Veja. - disse ele, chegando perto.

O objeto nada mais era que uma esfera transparente do tamanho de uma bola de tênis. Êmina a apanhara e estudara-a, não tendo dúvidas de sua natureza.

- A pedra filosofal. O que mantinha a alma fixa ao corpo.

- Êmina... - disse uma voz entrecortada e conhecida.

Ambos se viraram em simultâneo e surpreenderam-se, porém aliviados.

- Rosie! - disse Êmina, correndo na direção da amiga que andava meio trôpega - Achávamos que estava escondida. Você está bem?

- Considerando que fui arremessada como um frisbee... - disse a jovem, pondo a mão direita na cabeça ao sentir um latejo atormenta-la, expressando incômodo na face - ... Eu diria que os últimos cinco dias me deixaram um pouco fora de forma. - disse ela, sem perder o senso de humor apesar da dor.

Êmina afagara o ombro da amiga, sorrindo em satisfação com um olhar condescendente. Julian se aproximara.

- E quanto à Ophelia? - perguntou Rosie, curiosa, olhando para o ex-companheiro da perversa mulher.

- Antes de virmos, nós a amordaçamos - contou Julian - e a colocamos na jaula para ela sentir na pele o quanto é agradável ser tratada como um animal selvagem. - olhou para Êmina, com um nítido sentimento de missão cumprida. - Não teria conseguido sem ela. - a tocou no ombro - Rosie, você é uma garota de muita sorte... por ter Êmina Flower como sua grande companheira de aventuras. - sorrira abertamente para as duas.

A caçadora demonstrou enrubescimento, pouco à vontade em meio aos elogios.

- Bem... Melhor os dois pararem, senão meu rosto ficará da cor do capuz da Rosie. - dissera ela, dando uma risadinha bem humorada.

Contagiado, Julian também rira, pondo-se no meio das duas guerreiras enquanto saíam do depósito.

                                                                                           ***

Caminhando lado à lado pela pequena trilha de cascalho no jardim em frente à mansão Flower, Rosie e Julian contemplavam o céu noturno enfeitado de inúmeras estrelas.

- Então usa o capuz em honra à memória do seu pai. Que gesto nobre. - comentou Julian, andando de braços cruzados em meio ao florido jardim. De uma coisa ele depreendeu certeza absoluta - Você tem todos os elementos necessários para inspirar a Êmina. Percebo só pelo jeito como interagem, parecem mais que amigas. - disse, olhando-a.

- Não sei bem ao certo. - disse Rosie, abaixando um pouco cabeça - Digo... Sobre inspiração. Mas agora não estou muito afim de falar a meu respeito. É mesmo verdade que você e Ophelia... eram casados?

Suspirando longamente, Julian cessou a andança.

- Sim. - confirmou ele, virando-se para Rosie, o semblante franco - É verdade.

- E... Êmina, por acaso, sabe disso? - perguntou Rosie, a curiosidade aflorando.

- Honestamente... - disse Julian, olhando para a sua esquerda, a direção onde a alquimista foi para contactar a polícia - ... Não. - respondeu, voltando-se à Rosie. - Pouco tempo depois dela ter se despedido para trilhar a estrada dos seus sonhos, batalhei com Ophelia em relação à anulação dos papéis. Eu esperava que essa tempestade não fosse mais longa que meu relacionamento com Josefine.

- Mas Josefine, a mãe biológica de Êmina, não tinha traído o próprio marido com você? - perguntou Rosie, um tanto intrigada - Bom, é que a ideia de traição me faz entender que, basicamente, você e ela não tiveram tanto tempo para aprofundarem a relação, pois a Êmina me falou que você tinha a dito que o verdadeiro pai dela não passava de um cara com problemas psicológicos, com sinais de psicose. Se era tão possessivo assim, como ele não chegou até você, sei lá... Tentando mata-lo ou querendo tirar satisfações na base da violência? - questionou ela, rapidamente, em seguida, se desculpando - Ah, desculpa, é que estou sendo muito intransigente, essa minha veia investigativa...

- Não, está tudo bem. - disse Julian, sorrindo, acalmando-a - Tem todo o direito de se sentir desconfiada. A verdade é que nunca tive a oportunidade conhecer esse homem. Mas Josefine e eu tivemos uma relação duradoura. Secreta e cheia de restrições... mas deliciosamente duradoura. - afirmou ele, recordando-se, com saudosismo, dos momentos jubilosos que experienciou ao lado da única mulher que de fato havia amado genuinamente - Ophelia pagará caro pelo que fez. A começar pela candidatura anulada para as eleições presidenciais da Associação, além do afastamento definitivo. Fez bem em não ter matado os lacaios, farei bom uso deles como emissores de provas.

- Obrigada. - disse Rosie, sorrindo fracamente, a cabeça meio baixa, olhando para a grama - Afinal de contas, nenhum deles eram bons de briga tanto quanto eram bons em fazer alquimia.

- Ora, veja só, parece que ficaram mais íntimos. - disse Êmina, aproximando-se dos dois com um sorriso fechado. Sua postura esbanjava realização.

- E então? O que a polícia disse? - perguntou Julian.

- Eu dei a localização do laboratório secreto dela, garantiram que vão investigar dentro de poucos dias. - informou a jovem, assentindo positivamente com segurança - Já estão trazendo uma unidade pra cá, me passei por uma detetive particular chamada Melissa Branston que tinha uma apuração fiável dos fatos. - fez uma pausa, estranhando - O que tem de errado?

- Não precisava se arriscar assim- repreendeu Julian -, ainda mais usando uma alcunha federal.

- Então é melhor Rosie e eu voltarmos para a pensão antes que me peguem. - retrucou Êmina, completamente despreocupada, não levando a provável consequência do ato nem um pouco a sério.

- Não se lembra do que eu disse antes de embarcarmos? - perguntou Rosie - As coisas aconteceram tão rápido que talvez você não tenha percebido que já estamos no fim do segundo dia.

A expressão da caçadora entristecera um pouco ao finalmente recordar-se do aviso.

- Ah, sim... Tinha me esquecido que ficaríamos juntas só por um fim de semana.

- Pois é. - disse Rosie, assentindo - Marquei de encontrar o Hector perto da fábrica de plástico, alguns quilômetros do início da cidade, às dez.

- Vou deixa-las a sós. - disse Julian, visualizando um distante barulho de sirenes policiais e luzes azuis banhando a fachada da mansão. Voltou-se à Êmina - Direi que não sou seu ajudante. - falou, apontando para ela enquanto ia na direção de onde as viaturas estavam.

- Não é necessário. Sabe que eu trabalho melhor sozinha. - disse ela, claramente em tom brincalhão.

- É sério? - indagou Rosie, levantando uma sobrancelha com um sorriso sacana.

A caçadora desatou a rir.

- Brincadeirinha.

Sorrindo de volta, Rosie respirou fundo a fim de preparar-se para ser forte em não derramar lágrimas proporcionadas pela chatice da despedida.

- Bem... Eu sugiro que você me informe logo o dia e a hora que vai bater lá na nossa porta pra apaziguar toda essa... - faltavam-se palavras - ... essa sensação odiosa.

- Sabe, Rosie... - disse Êmina, aproximando-se da jovem encapuzada - Tenha certeza de que nunca vai me ouvir dizer que não aprendi nada com você. Você...de alguma forma, é a minha inspiração que fortifica meu lado caçador. E, acredite, é um sinal positivo.

- Um sinal? Pra quê? - indagou Rosie, estreitando os olhos.

- De que tem todas as características de uma verdadeira legionária. - afirmou ela, sentindo-se orgulhosa dos talentos habilidosos da amiga. Retirou do bolso um objeto circular prateado semelhante a um broche e a entregou como que representando sua gratidão puramente sincera. - Tome. É a minha licença de caçadora. Tá, eu sei, é contra o regulamento, mas... estou oferecendo para que isto sirva de lembrança quando resolver abraçar sua vida de exterminadora de monstros.

- Então quer dizer que... - disse Rosie, o coração descompassando ao surpreender-se com a decisão de Êmina.

- Sim. - confirmou ela, interrompendo-a, enxugando uma lágrima - Eu quero ficar. Voltar a respirar o ar da minha terra natal com mais calma. Ser prisioneira naquela fábrica por dois anos jogados no lixo fez acender uma nostalgia tão intensa em mim que eu chorava, sem saber se era dia ou noite, com saudades dos abraços dos meus pais, dos amigos que eu tinha deixado para trás... Tudo isso só fortaleceu essa vontade de experimentar todos esses prazeres de novo. E agora eu finalmente obtive essa chance. Acho que você entende...

- Não, eu entendo perfeitamente. - disse Rosie, com veemência na fala, tocando nas mãos da amiga ao receber a licença - Você merece ficar. Sentir de volta a sua antiga vida. Abrace o seu pai, os seus amigos, a sua vontade de viver... e, quem sabe, você seja uma inspiração aos alquimistas iniciantes que valha a pena ser valorizada.

- Eu vou tentar. Por você. - disse Êmina, visivelmente emocionada, não contendo as lágrimas - Olha, não é que não queira ajudar no resgate do Charlie, enfim, você entende... Mas saiba que vou estar aqui, torcendo por vocês. Não há guerra que não possa ser vencida, nem tormenta que dure pra sempre. - fez uma pausa - E vê se manda lembranças para aquele idiota do Lester, diga que vou sentir saudades de tirar sarro da cara dele e das nossas briguinhas infantis.

Rosie dera uma risada rápida com um largo sorriso, olhando para o broche cinzento com as iniciais E. F.

- Pode deixar. - disse ela, segurando o objeto firmemente e recuando alguns passos.

- Ah, e pensa bem sobre a tal proposta divina. - alertou Êmina, exibindo pouca confiança na ideia - Sinceramente, tem cheiro de encrenca no ar. - fez uma pausa, enxugando o rosto - Vou ficar por aqui, meio escondida, mas vou dormir cedo... tenho um funeral para ir amanhã.

Rosie assentira, rendida ao brotar das lágrimas.

- Eu queria estar acompanhando vocês.

- Eu também. - respondeu Êmina, direta. - Se cuida, Rosie. Diga ao Hector que mandei um abraço.

- Está bem. - disse ela, o nó na garganta reagindo com um aperto tão forte quanto o do coração. - Isso não é um adeus. Diria que... um "Até logo". - afirmou, sorrindo rapidamente, as lágrimas ainda rolando pela sua branca face.

- Pode crer. - disse Êmina, a face chorosa mas com um sorriso condescendente, assentindo completamente acometida pela sensação tão detestável e irrefreável. Ergueu levemente a mão direita e balançou-a em ritmo lento de um lado para o outro ao ver a grande aliada partir rumo à luta que não poderia travar ainda que a vontade insistisse. No entanto, a ciência de haver coisas pendentes a dar importância mantinha-se clara como água para ambas, um entendimento mútuo que, sem dúvidas, só intensificou o significado daquela amizade que aparentemente iniciara há tão pouco tempo e fora interrompida por uma tragédia, mas que sobreviveu para tornar-se mais sólida em virtude de uma dívida de gratidão.

A partida foi sentida de forma satisfatória.

Êmina sorriu ao observar o vermelho daquele capuz ser iluminado pelo luar, respirando aliviada como se houvesse cumprido uma missão de sua vida, cujo resultado faria perdurar em seu coração.

                                                                                      ***

As ruas posteriores à linha demarcatória do fim da cidade possuíam uma iluminação precária em boa parte, especialmente nas vielas. Rosie caminhava próxima ao prédio da fábrica, não tardando a avistar a figura de um homem com sobretudo marrom escuro parado no meio da estrada ladeada pela própria estrutura onde se fabricavam objetos de plásticos e por uma vegetação média.

Ela sorriu um pouco timidamente ao se aproximar.

- Tem certeza que a bagagem foi desnecessária? - perguntou Hector, sorrindo levemente para ela, andando alguns passos adiante.

- Talvez nem tanto. O vestido que usei numa festa onde a mãe da Êmina se apresentou caiu tão bem que acho que me frustrei um pouco em não ter trazido uma mala. - disse Rosie, bem humorada.

Hector apurou sua audição, franzindo o cenho.

- Como disse? A mãe de Êmina esteve lá com vocês?

- Não só esteve, como também armou um plano diabólico que incluía matar a mim, Êmina, os membros do Conselho Alquimista e qualquer um disposto a arruinar a sua vida bandida. - explicou Rosie, enfática - Em linhas gerais, ela é só mais uma escrava da própria sede de poder que a levou a matar a mãe biológica de Êmina, que nem tão acidentalmente matou o filho, e depois usou o seu corpo para transforma-lo em um homúnculo e manipula-lo para agir conforme seus interesses. Resolvemos tudo sem muitas dificuldades. É, foi um fim de semana... divertido. Nada fora da curva.

O caçador a fitou em uma mistura de estranheza e suspicácia.

- Nossa... Fico realmente impressionado com o quanto perdi. - disse ele, soando meio desapontado. - Como se sente?

- Olha, estou bem. Vamos logo, porque o fabricante dessas botas deve odiar pés e quer destruí-los. - disse ela, apressando o passo, puxando de leve o caçador pelo braço.

- Ao menos, Êmina avisou quando irá voltar? - perguntou Hector, pondo-se ao lado da jovem.

- É mais "se" do que "quando", na verdade. - respondeu ela, ainda abatida pelo efeito da despedida, erguendo o capuz sobre a cabeça.

- O quê? - indagou Hector, olhando-a desconfiado. - Mas eu pensei que...

- Nós pensamos errado. - retrucou Rosie, interrompendo-o - Ela resolveu ficar para resgatar a alegria de conviver em família, o que inclui os amigos conterrâneos. Uma decisão que compreendi e não me arrependo de ter concordado. - olhou para o parceiro -  Não sei quanto á você...

- Tudo bem, eu a entendo perfeitamente, Rosie. - declarou Hector, aparentando flexibilidade na postura - Mas... por outro lado, isso evidencia que a Legião caminha para o seu fim iminente. Mestre Vannoy ficaria decepcionado.

- Ela me deu a sua licença como lembrança. - disse Rosie, recordando-se do momento. - Mas está errado sobre ser o fim. Ainda tem à mim... ao Lester, ao Áker... à Alexia, até mesmo à minha avó.

Hector retesara os músculos, olhando para um lado meio sem estar à vontade.

- Quero visita-la amanhã mesmo. - propôs Rosie, decisiva - O que acha?

- Ahn... - o caçador tentava vasculhar palavras para soar honesto e natural - ... talvez seja melhor nos concentrarmos no nosso próximo passo, Charlie precisa ser resgatado o quanto antes. O fim dos miméticos me faz crer numa aceleração ao plano de expansão imperial. Como eu disse antes: Acharmos uma maneira segura e eficaz de exorcizarmos Mollock de Abamanu. Áker esteve incomunicável nos últimos cinco dias, só deve estar rastreando Sekhmet para descobrir sua próxima investida, talvez suspeitando dessa trégua e...

Ao olhar para sua esquerda, o caçador sentiu que Rosie desaparecera como um fantasma.

Até, dois segundos depois, olhar para trás ao ouvir gemidos de dor.

A jovem havia estacado no caminho e estava praticamente de joelhos com a mão direita na cabeça com a face de olhos fechados e apertados e dentes trincados.

- Rosie! - disse Hector, correndo para ajuda-la - O que houve? O que você tem?

- Já chega... Eu... - sua voz estava entrecortada enquanto recompunha-se - Já voltei a si. - disse, reabrindo os olhos e mantendo-se pensativa por alguns segundo em uma expressão de espanto que intrigara o caçador.

- Está ardendo em febre. - disse Hector, tocando o rosto da jovem, preocupado. - Que tipo de dor foi essa? Muito intensa? Precisa ir à emergência...

- Não, Hector, já disse que estou bem, acabou. - recusou-se ela, elevando o tom, sem olha-lo - Eu agora lembro...

- Do quê? - indagou Hector, curioso, ajudando-a a levantar.

- Por onde eu estive enquanto estava desaparecida. - declarou ela, visivelmente abismada - Depois que Abamanu roubou minhas lembranças... Agora lembro de tudo... - sua face ganhara um tom de aflição maior após um evento lhe chamar atenção - Eu matei um homem. - voltou-se para o caçador - Hector, eu matei uma pessoa! Não passei de uma marionete para aquele monstro maldito!

O caçador a amparava, mas aos poucos desviava o olhar para o nada ao se lembrar do que Adam, Lester e Êmina lhe disseram a respeito da companhia desagradável que perseguia e ludibriava a jovem em mundos desconhecidos.

                                                                                       ***

5 dias depois

Ophelia Flower recebera a condenação julgada pelo tribunal de Waytehaal pelas seguintes atrocidades: incêndio criminoso, duplo homicídio doloso, mandante de homicídio, formação de quadrilha, profanação de cadáver e, por último e não menos importante... transmutação humana.

A determinação da sentença fora de 28 anos e 4 meses em regime fechado.

O caso adquiriu repercussão de tal forma a considerar o famoso tabu como um crime imperdoável a partir do fim do julgamento - este contou com as presenças indispensáveis de Êmina e Julian, testemunhas cujo peso das palavras e provas conspiravam a favor de uma pena severa.

Aquela era somente mais uma noite em que a ex-vice-presidente da Associação dos Alquimistas lamentava sua condição deplorável ruminando o passado em picos de tristeza e ódio. Uma efervescência no âmago pedia para libertar-se. Ela quis afastar o significado daquilo. Em vão.

Sabia que o sentimento era inconfundível e atrevidamente tentador.

Riscou mais forte a ponta da lasca de carvão na parede formando uma linha vertical ao lado de mais outras quatro. Depois riscou horizontalmente sobre elas.

Seu rosto sério iluminado pela luz sombria do astro prateado que entrava pela pequena janela gradeada em cima da beliche virou-se para as grades frontais depois que passos foram ouvidos.

Tratava-se de um policial, cujo rosto mal dava para se ver na semi-escuridão.

- Noite de sorte, madame. Enfim uma alma bondosa veio para visita-la. - disse ele, a voz soando amigável demais ao ser dirigida logo à pessoa com a maior ficha criminal da cidade.

- Visitas? - indagou ela, confusa, levantando-se do banquinho - Pensei que estava proibida até segunda ordem.

- Mudança repentina, senhora. - falou o policial afastando-se.

- Mas, espera... porque...

- Aqui está ela. - disse ele, trazendo a visitante - Cinco minutos.

- O.K. - respondeu a garota misteriosa, trajando vestes negras e um grande capuz que ocultava metade de seu rosto.

- Não pode ser... - disse Ophelia, mal acreditando - Dora... O que está fazendo aqui?

- Vim recompensa-la. - disse Dora, firme no tom.

- Me recompensar?! - indagou Ophelia, franzindo a testa e balançando de leve a cabeça em negação - Mas pelo quê, afinal? Se ainda não percebeu, estou numa droga de cela! Eu fracassei!

- Acalme-se, por favor. - pediu Dora, mantendo a voz tranquila. - Ao invés de puni-la, preferi manter nosso acordo de lealdade porque sei que não falhou por descuido, mas por ter subestimado seus empecilhos. Honestamente, você é talentosa demais para ser chutada feito um cão vira-lata. Não digo isso por piedade, mas por compreensão.

A cabeça de Ophelia girava, tentando achar uma resposta urgente.

- Bom... Já que ainda deposita alguma fé em mim... Me diga o que tem a oferecer. Já não tenho mais nada a perder mesmo.

- Serei breve. - disse ela, retirando algo da manga de sua roupa. Mostrara um frasco pequeno e cilíndrico com um fluido vermelho e o passara pela grade - Vai fazê-la se sentir melhor. De um jeito único e inesquecível.

- O que é isso? - perguntou Ophelia, pegando o frasco e o estudando. - Sangue? - voltou-se para Dora - De um elemental, de um mago... ou seu?

- Sangue de uma hidra. - disse ela, o interesse em ajuda-la mostrando-se explícito - Uma entre as 7 mais poderosas fontes de imortalidade. Corte uma cabeça... e duas nascem no lugar.

- Não posso aceitar, me desculpe...

- Você deve. - retrucou Dora, enfática - Fortaleça-se com esta essência e sairá daqui da mesma forma que entrou.

- Desolada? - indagou Ophelia, descrente - Arruinada? Humilhada? Perdida?

- Olhe, por mais que eu me sensibilize por sua condição, não quero sair daqui com meu ombro encharcado de lágrimas. Não estou com pena de você, Ophelia. Estou orgulhosa. - disse Dora, aparentando sinceridade - Mas só vim para agracia-la com aquilo que pode torna-la como eu, seremos iguais.

- Dora, eu agradeço, mas passar a desconhecer o temor pela morte não vai aliviar meu sofrimento. A alma de meu filho está vagueando sem rumo.

- E pode ter certeza que graças à mim ele estará em um lugar muito melhor. - disse Dora, prometendo resgatar a alma de Wallace custe o que custar. - Tenho que ir agora.

- Isso é estranho demais. Por acaso está fugindo? - questionou Ophelia, fitando-a com desconfiança.

- Gostaria de dizer não. - afirmou ela, o tom baixo - Mas se quer a verdade... Não só vim por vontade própria, mas fui ordenada a convence-la. Eles odeiam desperdícios. Nas sombras observaram seu potencial.

- Então por que diabos está fugindo? - insistiu Ophelia.

- Não posso dizer. Têm olhos e ouvidos por todo o país. Se eu fosse você não arriscaria falar demais com nenhum dos policiais, aliás já é arriscado demais eu estar aqui falando com você. Mas estou calma pelo policial que me recebeu ter reagido bem à hipnose. Do contrário, eu estaria encrencada. Me desculpe por tê-la colocado nesse campo minado, mas esse é o destino daqueles cruzam com pessoas como eu. Se tornam melhores como nunca antes imaginavam. De um jeito ou de outro, você entenderá isso. - disse ela, recuando alguns passos para ir.

- Espere. - chamou Ophelia - Quando pretende me libertar?

- Assim que um deles apresentar justificativas bem plausíveis sobre as provas que te colocaram aí dentro. - garantiu Dora. - E acredite: Eles são os melhores. - por fim, virara as costas ao ir embora.

O presente que Ophelia segurava em suas mãos mudaria a sua vida à uma escala impensável.

Baixou os olhos para o frasco com o líquido vermelho escuro que segurava firmemente, refletindo seriamente quanto à proposta de uma aliança obscura... em todos os sentidos.


                                                                                  CONTINUA...



*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos. 



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