Capuz Vermelho #38: "Deixe queimar"


Reconhecidamente, era o mesmo bar/restaurante no qual Údon trabalhara para manter o disfarce. O primeiro a notar e focar sua atenção na pessoa que ali adentrava fora o barman - um homem aparentando estar na casa dos 30, caucasiano, cabelo preto em corte social e penteado para um lado, bigode pequeno do tipo "escovinha" e vestindo um colete preto por cima de uma camisa branca com mangas longas -, erguendo aos poucos sua coluna, deixando de organizar os pratos que ficavam guardados atrás do balcão apenas para observar, com nítida estranheza, a figura que caminhava a passos estonteantes e calmos, sentindo-se um tanto consternado com o ar soberbo exalado por ela.

O restante dos clientes davam constantes olhadelas preconceituosas. Alguns até disfarçavam, discretamente olhando para seus acompanhantes, mas visualizando de soslaio. Outros riam sem serem chamativos. Outros faziam comentários maldosos e questionadores como "Essa garota foi barrada de algum baile a fantasia e resolveu sair por aí para inventar sua própria moda?". E outros observavam fixamente, um tanto constrangidos, parecendo sentirem o mesmo tipo de aura superior que o barman constatou.

A jovem branca como a neve de cabelos loiros e vestimentas extravagantes tornara-se o centro das atenções em questão de segundos. Seu sorriso pouco indicava vergonha por estar sendo ridicularizada disfarçadamente pelas pessoas. Disparava, a cada passo, olhares altivos para cada um deles, de todos os lados, enaltecendo sua face e postura segura e inabalável de auto-confiança.

Só não sabiam que a garota perdera a liberdade. E que já não estava mais ali.

O bar-man desfez da "anestesia" que aquilo lhe causava e tratara de intervir ao se dar conta do quão estupefatos alguns de seus clientes estavam. Deu a volta no balcão, encaminhando-se com rapidez nos passos até a garota, sem largar o pano com o qual enxugava os pratos.

- Moça... Me desculpe, mas... - dizia ele, com as mãos juntas enroladas no pano, tendo a sensação estranha de que falar em repreensão poderia significar um erro do qual se arrependeria. Engoliu a saliva, olhando-a com certo temor. - Está envergonhando os clientes. Por gentileza, eu peço que se retire. - fez uma pausa, olhando de relance para as vestes da jovem, o olhar meio triste. - Suas roupas, elas... não são adequadas ao estabelecimento. Sinto muito.

Uma risada leve e veloz fora a reação da "garota" que o fitava com ar debochado.

- Então é assim que os mortais privilegiados desta parte do mundo se comportam? - perguntou Yuga, olhando para o resto da clientela com enojo. As pessoas retribuíam com expressões sérias e desconfiadas. - Ditando regras limitadoras para determinadas espécies. Patético. - voltou o olhar para o barman -  Vou dizer o propósito de minha vinda: Provar o quão vulnerável é esta forma de vida. Provar que meu poder ultrapassa qualquer um já visto. E, sobretudo, provar que estou num patamar que muitos como eu jamais alcançariam. - foi andando, intimidando o barman a cada passo.

- Por favor, moça. É claramente insana. Eu... - gaguejava ele, recuando tremulamente e suando em demasia. Alguns clientes levantavam-se apreensivos para se retirarem do local. - Eu... Eu conheço um excelente psiquiatra que vai saber como diagnostica-la perfeitamente.

- Não preciso ser examinado. - retrucou o deus solar, a expressão tornando-se séria e ameaçadora. - Só preciso... trazer luz aos seus corações.

- Do que está falando? Você... Você é louca! - bradou o barman, sem paciência e já no limite do medo.

Yuga fechara os olhos, sorrindo tranquilamente, emanando uma aura fortemente carregada de calor.

As luzes começaram a tremeluzir e piscar, ao passo em que as pessoas - várias perguntando-se o que realmente estava acontecendo - desconfortavam-se com a intensa onda de calor que acumulara-se em segundos no local. Homens afrouxavam suas gravatas, mulheres e crianças suavam abundantemente e sofriam com a falta de ar súbita.

Um agudo som reverberou seguido de um tremor de terra, causando histeria coletiva repentina. O barman gritava em dor enquanto via a pele de seus braços ganharem um aspecto avermelhado e cair como gotas de água, como se estivesse derretendo em meio à altíssima temperatura que o lugar adquirira. Seu rosto deformava-se em visível derretimento.

As luzes faiscaram até quebrarem-se à medida que o tremor aumentava. Os olhos e a boca de Rosyuga abriram-se brilhando uma intensa luz amarela após o mesmo urrar estridentemente, seus cabelos e a capa vermelha esvoaçando.

Com a grandiosidade e magnitude atingidas, a luz expandiu-se por todo o estabelecimento como uma enorme onda solar, quebrando as vidraças do restaurante, atravessando as aberturas e chamando a atenção de todos que passavam pelas proximidades, fazendo-os pararem para assistirem ao "espetáculo" estupefatos, horrorizados e boquiabertos com o fato surreal que presenciavam. Muitas delas cobriam seus rostos com os braços e encaravam a cena com olhos estreitados.

Dentro do bar, Yuga voltara a estabilidade, olhando com certa satisfação para a quantidade de corpos caídos no chão... completamente tostados - as órbitas dos olhos vazias - e fumaçando um odor forte. Focos de brasas e fogo viam-se nos cantos e entre os cadáveres.

Um pegajoso líquido meio rosado e meio alaranjado escorria e alcançou o pé direito do corpo de Rosie controlado pelo deus solar. Era a pele de todo o corpo do barman - provavelmente misturada com a de clientes de mesas próximas - liquefeita e fervente tal qual lava de vulcão.

- E então houve luz. - disse Yuga, encarando sua obra com um sorriso extremamente malévolo.

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CAPÍTULO 38: DEIXE QUEIMAR

Área florestal de Raizenbool 

Hector havia encerrado a ligação que prometeu retornar a Eleonor caso informações relevantes viessem ao conhecimento dos principais envolvidos. Ergueu o tristonho olhar para os demais companheiros, Lester e Údon, após devolver o fone ao gancho. A atmosfera soava esmagadora para todos.

Sentado no sofá, Lester "brincava" com os polegares com os as mãos juntas e os braços apoiados sobre os joelhos, encarando o nada com uma seriedade que lhe era atípica. Seu sentimento era de luto. Já Údon estava aparentemente calmo, sendo assim o menos atingido pelo impacto do ocorrido, pois já lhe fora absurdamente previsível que aquela chuva de incertezas e desespero prenunciaria uma tempestade ainda pior. Tentou transmitir um olhar de consolo à Hector.

Áker não retornara desde que escutara o chamado de Sekhmet, reacendendo a preocupação sufocante, principalmente em Hector, que andava de um lado para o outro vagarosamente, procurando descobrir uma forma de atrasar consequências extremas e processar toda a emergência do caso a fim de se adaptar completamente. Era presencial uma eminente desistência. Mas barrada por sentimentos ainda mais conflitantes. "Pense, Hector, pense! Pare de querer acreditar que isso significa o fim da linha. Que a promessa não passou de palavras jogadas ao vento em um juramento inútil".

Lester não se conteve, sendo torturado pelo silêncio do ambiente e a inércia.

- Que droga! - vociferou ele, batendo em um vaso de cerâmica posto numa mesinha próxima do sofá, fazendo-o voar até a parede e quebrar-se em vários pedaços. O caçador se levantou, exasperado, dirigindo-se a Hector. - Assim não dá, Hector. A gente não pode ficar, sentar e agir como se não pudéssemos fazer nada!

- Reagir a dor do seu aliado com raiva e impulsividade - disse Údon, palpitante - não vai ajuda-lo a reerguer sua motivação.

- Você fala como se Rosie já estivesse morta. - retrucou Lester, olhando-o estreitamente, com aborrecimento pulsante. - Nós queremos salva-la, porque acreditamos que isso não é o fim! - argumentou, erguendo de leve o indicador esquerdo, repreendendo o Arqueu.

- O que estou tentando dizer é que não deve simplesmente deixar tamanha raiva assumir o lugar da razão. - afirmou Údon, pedindo que a calma fosse restabelecida. - Mas... já era esperado. Já me justifiquei o suficiente para não ser apontado como cúmplice vitalício. - baixou os olhos para o chão, pensativo. - Não quero apenas a redenção. Mas sobreviver a tudo isso, de alguma forma.

- Ah, você quer sobreviver?! - disparou Lester, inflexivelmente, arqueando as sobrancelhas. - Pensa que só você deseja isso mais do que tudo? Olha, francamente, está bem estampado na sua cara que você quer sair de fininho e achar o modo mais fácil de escapar sem nenhum mísero arranhão, ainda que fique ciente que não vai ser um fugitivo pra sempre.

- Em nenhum momento, desde que os encontrei, estive cogitando fugir. Pare de falar tanta estupidez. - redarguiu Údon, o semblante irritadiço.

- Você não nos oferece nenhuma ajuda sequer para termos que lidar com uma bomba atômica ambulante e eu sou o estúpido? - perguntou Lester, esboçando um leve sorriso sarcástico, apontando o polegar para si mesmo rapidamente.

- Você que começou errando ao demonstrar uma raiva que não condiz com o certo a ser feito. - devolveu Údon, aproximando-se lentamente. - Veja seu amigo, Hector. - apontou para o caçador com os olhos -  Silencioso, reflexivo, paciente. Obviamente, está elaborando um plano. Por que não toma essa atitude como exemplo?

- Acho que esse trabalho deveria ser mais seu do que dele. - disse Lester, com uma veia de sua testa evidenciando-se decorrente do enfezamento. - É sua responsabilidade dar um jeito de consertar as merdas que você foi obrigado a fazer. Então é melhor pensar rápido num plano, você tem os culhões, não dá pra entender porque acha que não depende de você.

- Eu até pensaria, mas fui contaminado pela sua impaciência revoltante. - rebateu o escriba, logo virando-se de costas para Lester como quem desiste de discutir por esgotamento. - Se as poucas opções continuarem nebulosas, vai significar mais problemas.

- Não conte com isso. - disse Lester, olhando-o com certo desprezo, ao mesmo tempo em que se voltava para Hector. - Você é o líder original dessa equipe, Hector, sempre foi. Você viu aí, eu tentei, mas o barba cinza não quer colaborar. Acho que é melhor você investir mais pesado.

- Acho melhor os dois pararem com a discussão inútil. - determinou Hector, severo no tom e na face, andando para chegar mais perto. Olhou para o companheiro de caçada como quem dá um sermão numa criança. - Lester, está sendo duro demais com ele. - em seguida foi a vez do escriba. - E Údon, é realmente sua obrigação elaborar um plano para pararmos Yuga, a menos que prefira esperar até metade do mundo ser queimado em extinção. Nós confiamos em você.

- É a última coisa que eu esperava que você dissesse. - disparou Lester, discordante, levantando uma sobrancelha ao fitar o escriba que observava a floresta pela janela.

- O mínimo que podíamos dizer para provar que estamos no mesmo time. - justificou Hector, sucinto.

- E cadê o engomadinho? Foi o primeiro a fugir com as calças borradas? - perguntou Lester, lembrando-se de Áker e andando pela sala com as mãos na cintura. Údon virou-se bruscamente ao escutar a clara indireta, esperando fuzilar o caçador com os olhos, mas o mesmo já havia se virado.

Como um fantasma, Áker surgira diante de Lester em nanosegundos, assustando-o naturalmente.

- E falando no diabo... - disse ele, quase tremendo pelo súbito aparecimento e olhando-o dos pés a cabeça.

- Áker. - disse Hector, chegando mais perto do arauto. - Me diga que sua conversa com Sekhmet não foi um plano para distraí-lo.

- Ué, mas essa deusa maluca não estava querendo matar a Rosie? - questionou Lester, meio perdido. - Por que ela distrairia ele só para acelerar a possessão, coisa que ela não queria?

- Estávamos enganados sobre Sekhmet o tempo todo. Ela foi inteligente em esconder suas reais intenções. - dissera Áker, para o completo espanto de Hector. Interessado, Údon empertigou-se logo ao se aproximar. Áker prosseguira: - Todo esse tempo... ela só tentou salvar o império mesmo que o sacrifício de uma vida humana fosse necessário. Ela sabia da lenda e tomou a medida mais drástica possível para impedir que ela viesse a se tornar realidade.

- Então não foi por mera sede de poder... - disse Hector, concentrado em seus pensamentos, compreendendo.

- Seu plano não exatamente consistia em tomar para si a energia bruta. - revelou Áker, mantendo-se tranquilo embora o clima estando pesado. - Se possível, ela a destruiria, após matar Rosie. Mais do que o império, ela lutou para salvar Lorde Yuga de uma auto-destruição pela energia em seu nível máximo. A ambição doentia, desde o princípio, estava naquele em que menos pensamos.

Hector parecia sensibilizado ao ver um vestígio de desilusão na face de Áker.

- Isso não muda quase nada. - opinou Údon, franzindo o cenho. - Sekhmet ainda continua sendo uma assassina, sem compaixão ou piedade. - dissera, o olhar endurecido e sério. - E não se contenha. Ele não é mais seu imperador, não o chame mais de Lorde. - fez uma pausa, passando a assumir uma postura mais acolhedora. - Sei o quão difícil está sendo suportar tamanha decepção. Mas pode supera-la persistindo em lutar pelo o que é certo. Nunca pensei que diria isso... mas você está precisando e é do meu instinto encorajar meus aliados a seguirem fortes na batalha.

- Agora você entende, Údon? - indagou Hector, olhando-o. - Confiamos no que pode ter a nos oferecer. Portanto, não hesite, precisamos de uma artimanha, não importando o quão arriscada ela seja. É salvar uma vida... para pouparmos bilhões.

- Seria uma boa hora para ceder. - disse Lester, de braços cruzados, também atento ao que o escriba sugeriria.

Áker assentiu para Údon, confiante do que ele poderia ser capaz de fazer em prestação de auxílio.

Pigarreando e esfregando de leve as mãos, o escriba preparou-se para apresentar suas ideias.

- Vamos direto aos fatos primeiramente: No fim das contas, Yuga queria ser a própria fênix apoteótica, usufruindo de um poder ilimitado e expansivo. - disse ele, andando pela sala ao explicar. - Rosie Campbell é seu único e verdadeiro receptáculo, sem direito a transferir a energia bruta a nenhum outro mortal, porque obviamente é impossível. Em vez de ascender a uma forma beneficamente superior, entretanto, Yuga tornou-se o que de pior um deus pode se transformar: Um Demiurgo. - revelara, virando-se para os três. - Uma divindade que excede o seu poder máximo e se torna uma criatura inescrupulosa, capaz de até mesmo assassinar seus semelhantes. Tamanho poder distorce sua mente, impedindo que ele faça juízo de suas ações.

- Ou seja, uma máquina louca genocida. - disse Lester, fazendo uma curiosa definição.

- Yuga é incrivelmente um caso inédito na história. - declarou Údon, inteiramente convencido do imenso poder que o deus solar ganhara através do intensamente oscilante estado de humor de Rosie. O escriba suspirou com a boca. - Não temos a menor chance contra um Demiurgo. - olhou de modo inseguro para o trio. - Ma-mas não me interpretem mal, não quero desistir, ele ameaçou me matar se eu não cooperasse. Se era assim sem sua energia bruta, imaginem agora. Um movimento brusco e talvez nos aniquile num piscar de olhos. Precisaremos ser sorrateiros e bem discretos.

- Está bem. O que tem em mente? - perguntou Hector, deixando-se levar pela ansiedade. - Se não podemos atacar diretamente, deve existir um modo de investirmos pelos fundos.

Údon precisou de alguns segundos para realinhar sua estratégia repetidas vezes, andando devagar com um dedo no queixo inteiramente focado.

- Áker, você por acaso estava por dentro desse lance de insanidade divina? - questionou Lester, voltando-se para o arauto.

- Há certos mistérios que só cabiam aos Arqueus preservarem. - disse ele, vendo Údon terminar sua idealização - E é compreensível que essa informação jamais tenha vazado em nenhum panteão. Quem sabe o que aconteceria com uma horda de deuses de intenções obscuras tendo conhecimento disso?

- Então quer dizer que....

- Vocês, mortais, não estão seguros em lugar nenhum. - declarou Áker, interrompendo Lester, soando firmemente categórico - Eras de adoração pura e honesta nada mais significam quando um soberano perde o controle de si mesmo. Eu estou em guerra contra meu próprio imperador e forçado a aceitar que minha devoção não vale absolutamente mais nada. - fez uma pausa, olhando nervoso e apreensivo para os dois caçadores - Isso é como se meu propósito de vida perdera o valor a partir do momento em que ele se proclamou auto-suficiente. Já não me resta nenhum sentimento senão vergonha.

- Áker - disse Lester, mostrando-se surpreendentemente consolador, tocando-o no ombro -, a última coisa que nós queremos é que você se torture por causa disso. Olha, podemos não ser muito chegados, a gente se conheceu de supetão, mas... - sorriu fracamente para ele - ... o pouco que vi de você hoje foi o bastante para eu perceber que você merece um lugar na nossa equipe. Então considere isso um convite para se juntar à nós pra valer. Como um legionário. - olhou para Hector, depois voltou-se para o arauto - Como um amigo.

- Lester tem toda a razão. - aquiesceu Hector, assentindo positivamente - Não queremos que pense em lutar essa batalha sozinho. Porque não vale a pena se esforçar pacificamente com inimigos que não podem ser convencidos com palavras. Falo por experiência própria. - afirmou, olhando-o sério.

Uma centelha de compreensão invadia o âmago do sentinela solar. Escolher entre ir à luta sozinho e desvanecer-se do império passara a ser seu mais tortuoso dilema. Mas tinha plena ciência de qual lado pendia mais na balança. Os fitou confiante de uma decisão que agarrara como se fosse sua própria vida.

- Eu só... tenho a agradecer. - disse Áker, mantendo-se seguro - Será uma honra fazer parte disto. Por Rosie.

- Por Rosie. - disse Lester, erguendo de leve o punho esquerdo fechado.

- Por Rosie. - disse Hector, determinado.

- É, não há mesmo um outro jeito. - disse Údon, finalmente decidido, virando-se para os três.

- O quê? O que foi? Não vai me dizer que pensou demais e acabou sujando as calças? - perguntou Lester, ávido por respostas.

O Arqueu fechou os olhos por um segundo, pronto para falar, ignorando as ironias do caçador.

- Melhore sua interpretação, rapaz. - disse Údon, logo voltando suas pupilas à Áker e Hector - Quis dizer que existe somente uma maneira, proporcionalmente arriscada em relação às outras que descartei. - assentiu com positividade - No mais, pode funcionar.

- Se pode funcionar, então vá direto ao X da questão. - exigiu Lester, no limite da impaciência - "Pode", à essa altura do campeonato, já é bem animador.

- Então lá vai: Vocês, caçadores, devem ter ouvido falar ou já tiveram que lidar com... exorcismos, de demônios, djinns ou outros espíritos malignos. Não é?

- Ahn... Não. - respondeu Hector, olhando com suspicácia contida - Nunca tivemos oportunidades. Está sugerindo que...

- Isso! - empolgou-se Údon, apontando para ele com o indicador direito. - Acreditariam em mim se eu dissesse que é completamente possível exorcizar receptáculos possuídos por entidades maiores?

- Mas tinha acabado de nos dizer que Lor... - Áker cortou a frase, percebendo - ... que Yuga havia se transformado em uma coisa diferente, superior e maléfica. Um Demiurgo, como você disse. Como esse processo funcionará se vamos estar diante de uma força que nenhum outro igual à mim ou maior do que eu testemunhou antes? Para cada opção há um porém. Se quiser que acreditemos que isso dará certo, precisamos de uma garan...

- Acalme-se, mensageiro, está muito afobado. - pediu Údon, incomodando-se com o estado do arauto - Me deixe terminar. - pigarreou - Com eu estava dizendo... É possível separar deus e mortal. O fato de ser um Demiurgo não dificulta o plano, que por si só já é difícil, nem diminui as nossas chances, mas também não garante que vá funcionar como o esperado.

- Ah, qual é!? - reclamou Lester, dando as costas e andando uns passos com as mãos na cintura, esbaforido.

- Você se contentou com o "Pode funcionar", então ao menos confie nas minhas ideias e deposite uma fé nas probabilidades. - recomendou Údon, desaprovando o comportamento do caçador - Nós temos que tentar.

- E depois do exorcismo, o que acontece? - perguntou Hector.

- Yuga é mandado de volta ao palácio, selo o corpo de Rosie Campbell com um sigilo, dreno a energia divina, arranjo um jeito de conserva-la, ninguém se fere, voltamos para casa e assamos uns marshmallows.

- Não sei o que é pior. - disse Lester, encostado na parede, de braços cruzados - As incertezas desse plano ou essa sua tentativa de querer fazer parecer fácil.

- Estou me esforçando, acredite. - retrucou Údon, estreitando os olhos em uma face meio zangada.

- Não, espera aí, Údon. - disse Hector, dando alguns passos até o arqueu - Fazê-lo retornar ao palácio, à morada dos deuses, não minimiza os riscos. Se nunca foi testado, como saberemos se a possessão pode ou não ocorrer novamente?

- Eu avisei sobre os poréns. - disse Áker, olhando para o caçador, em seguida para Údon como quem questiona os limites de alguém - Além de não termos ideia se o exorcismo é definitivo, existe a possibilidade do exército de sentinelas ser massacrado em seu próprio lar.

- Então seria uma ótima hora para mostrar quem é o novo chefe. - sugestionou Údon, arqueando as sobrancelhas. A ideia pareceu deveras absurda até mesmo para Lester que o encarou balançando a cabeça em negação, completamente desesperançoso quanto ao auxílio.

- Quer que Áker assuma a liderança? - indagou Hector, franzindo o cenho. - Não nestas condições.

- Hector está certo. - concordou Áker, aproximando-se, emanando aborrecimento - Levando em consideração o quanto Sekhmet manchou minha imagem, seria imprudente e ligeiramente suicida me atrever a reunir meus irmãos, incitando uma conspiração a favor de uma rebelião contra o imperador que se rendeu à sede insana por poder. - fez uma pausa, ficando pouco centímetros diante do arqueu - Tem ideia das implicações disso? Posso ser morto antes de emitir uma única palavra. Devia esperar isso de Mihos, não de mim. Você, Hector e Lester são os únicos seres do universo que confiam em mim. Tenho meu orgulho próprio, mas prefiro usa-lo para lutar pela humanidade. E você? Não tem um propósito à parte da sua sobrevivência pelo qual lutar?

Um longo suspiro de Údon não o ajudara a reaver a calma. No entanto, parecia ter ficado claro para o arqueu que suas ideias transmitiam desespero ante as nuances da situação e que era necessário equilibrar os pensamentos na medida do possível.

- Desculpe, Áker. - disse ele, irredutível - Posso ter sido um pouco precipitado, mas... ainda podemos tentar. Sei que ainda lhe resta os poucos apoiadores, portanto eu peço, encarecidamente, que os avise.

- Prepara-los para a morte? - perguntou Áker, olhando-o com dúvida.

- Praticamente todo o exército será liquidado depois de concluída a primeira parte do plano. - disse Údon, seguro de si - Sei que um Demiurgo à solta é um perigo extremo para todos... Mas se queremos mantê-lo longe deste mundo permanentemente, devemos nos preparar psicologicamente aos sacrifícios que cada escolha feita irá gerar. O que detesto, Áker, é ver você estar aparentemente dividido sobre o que vale a pena salvar. - o encarava fixamente, com seriedade - É melhor que revise suas prioridades. O que vai restar de um império inativo e à beira do declínio com um rei caído em perdição disposto a causar destruição a tudo o que vê? Não estava pedindo que se rebelasse para morrer pelo império. Mas fui falho nesse pensamento, me perdoe. Eu tenho certeza que reconhece o vínculo que você formou com os mortais. Se quer lutar pela humanidade, já trilhou metade do caminho. Faça como eu. Se preste a largar o passado e construir um novo futuro. Aprendendo com os mortais. - olhara para Hector e Lester. - E, talvez, ensina-los.

Hector demonstrara uma expressão de concordância explícita.

- Áker. - disse o caçador, voltando-se para o arauto - A proteção de Rosie é um juramento que pertence a nós dois. Somos iguais por termos extrapolado e irmos além de nossas obrigações. Agora temos a chance de ir até o fim. - virou-se para Údon - Presume que o efeito do exorcismo seja temporário?

- É a hipótese que me aparenta ser mais plausível. - respondeu Údon, assentindo - O alto escalão não vai segura-lo por muito tempo, mas até eles perderem o controle, vamos estar preparados para o contra-ataque.

- Tempo o bastante para resgatarmos Charlie? - perguntou Hector.

- Sim. Ele será de suma importância para a próxima fase do plano onde mataremos dois coelhos numa só cajadada. - declarou o arqueu, socando a palma da mão esquerda de leve. - A previsão é que haja um encontro entre eles após a marca do exorcismo se esvair da essência e ele, obviamente, vai recorrer a uma casca aleatória e vai estar desesperado como nunca antes imaginou. Quando estiverem frente à frente... - sorriu de forma enigmática - ... e quando o sangue ferver... já será tarde demais.

- Tá, tudo bem, podemos nos concentrar na primeira parte? - questionou Lester, se reaproximando.

- Precisamos de um local para prende-lo. - disse Údon, esfregando as mãos em sinal de preparação.

- Prende-lo com o quê? - indagou Hector, franzindo o cenho sem entender - Quando fui atacado, ativei o sigilo que Áker gravou embaixo do tapete e ele não esboçou numa reação, ao ponto de ultrapassa-lo como se não fosse nada.

- Só existe uma coisa supostamente capaz de neutralizar um Demiurgo. - afirmou Údon , o que para Lester significava mais um sinal que denunciava a falta de conhecimento do arqueu. - E antes que você me venha com sermões - apontou para o caçador estrategista - ... A opção mais viável é o sigilo de Onúris. De gravação restrita à divindades de primeiro escalão... e à Arqueus.

- Onúris?! - indagou Áker - O progenitor de Sekhmet possuía um sigilo de contingência?

- Não exatamente. - respondeu Údon, balançando de leve a cabeça ao negar - Estava inclusa uma linha que funcionava como motor para uma função que seria desbloqueada caso as outras duas fossem acionadas antes. Mas isso sobrecarregaria o sigilo à níveis críticos.

- E que função seria essa? - perguntou Hector.

- O aprisionado teria permissão de absorver a energia do sigilo. Inteiramente. - informou ele, olhando para cada um dos aliados. - E demiurgos são como esponjas ambulantes de qualquer tipo de energia. Se excluir a linha, o sigilo se tornará disfuncional. As duas primeiras funções são fixas. Imobilizar e torturar. Retirando a terceira, não existe plano.

Lester contorcera-se internamente ao se ver refém das dúvidas, piscando várias vezes com o cenho franzido.

- Espera aí, deixa eu ver se o reles mortal aqui entendeu. Se essa armadilha funciona se cada linha estiver no seu devido lugar, então significa que o deus pirado vai tirar uma casquinha disso e se fortalecer enquanto estiver preso. Onde é que está vantagem nesse seu plano tão perspicaz? - questionou, fitando-o com incredulidade.

- Um momento, Lester. - disse Hector, permanecendo a olhar para Údon com reflexão - Acho que sei o que Údon está querendo nos fazer entender. - fez uma pausa - Afinal de contas, é justo estarmos abertos a riscos que podem custar nossas vidas. O sigilo é inútil sem a tal linha. Mas seu aumento de poder será temporário pois temos o exorcismo como nossa carta coringa.

- Mas não entendi porque ele absorveria a energia do sigilo se já detém a própria energia purificada pelo corpo de Rosie. - salientou Áker. - Presumo que ele seja sua própria fonte.

- Demiurgos podem absorver de toda e qualquer fonte justamente por saberem converter, mas a sobrecarga é o único meio efetivo para mata-lo, o que obviamente não iremos esperar acontecer. - disse Údon, olhando para Áker - A base do plano é engana-lo da pior forma. Vamos lhe dar uma falsa sensação de superioridade e uma falsa impressão de desinformados. Vai ser necessário um local isolado para realizar o exorcismo.

Hector não pestanejara antes de citar o lugar ideal.

- A cabana em Kéup. - disse o caçador, a fala rápida - Está abandonada desde a noite em que fomos às Ruínas Cinzas.

- Excelente. - disse Údon, arregaçando as mangas em preparação - Mas para garantir a total eficácia da armadilha... devemos primeiro estar em um lugar que pode ser escolhido aleatoriamente. Uma grande mansão, por exemplo. Aliás, de preferência.

Os dois caçadores estranharam a aparente mudança repentina.

- Pra quê? - indagou Lester - Podemos pega-lo na cabana, sem problemas.

- Achei que tivessem entendido a razão de ser um local isolado. - repreendeu Údon, a expressão séria. - Chamarmos sua atenção imediatamente no ponto do exorcismo seria de tremenda idiotice. Por isso preciso que o contato seja feito num ponto específico do primeiro local onde marcarei com sigilos teleportadores que podem ser ligados ao de Onúris.

- Ótimo, mas quem vai fazer todo o lance do chamado psíquico enquanto você espalha as ratoeiras? - perguntou Lester, mantendo-se visivelmente descrente no andamento do perigoso plano.

- Áker pode cuidar disso. - sugeriu Údon, voltando-se para o arauto com um sorriso fechado.

- E se ele não acreditar em nenhuma palavra do que eu disser e acabar se encaminhando até aqui e destruir absolutamente tudo? - teorizou Áker, apreensivo.

- É melhor que torça para que ainda haja nele algum resquício de respeito pelo seu segundo em comando. - alertou o arqueu, não soando muito tranquilizador aos ouvidos do arauto. - Estão prontos? - voltou seu olhos para Hector - Você está pronto? Imagino como foi difícil encarar sua protegida naquele estado.

- Não vou desistir. - determinou Hector, cerrando um punho ao encarar o arqueu - Nem ouse dizer que a perdi para sempre. - fez uma pausa, visualizando seus companheiros - Traremos Rosie de volta, sã e salva. Custe o que custar.

- "Custe o que custar" - imitou Údon - Tome cuidado com as palavras, rapaz. Pode não gostar do que vai encontrar. - avisara, elevando nos outros uma ácida sensação de inquietude.

 Mas na lógica seria ver para crer. Arriscar para crer, acima de tudo.

                                                                                            ***

Masmorras do Palácio de Abamanu 


No subterrâneo do palácio havia uma espécie de sala oculta, somente podendo ser acessada por ninguém menos que seu criador. Tal sala encontrava-se alguns metros de distância da cela onde Charlie mantinha-se cativo, com o propósito de criação para servir como ponto de reuniões com os coletores.

A regra consistia que apenas o deus lunar, sendo o anfitrião, teria a liberdade de deslacrar a rocha quadrada marcada com o mesmo sigilo de tranca gravado na cela onde Êmina estava presa na extinta fábrica tóxica em Liverpool.

O símbolo iluminou-se com sua cor azulada claro, fazendo a "porta" abrir-se vagarosamente, deslizando pelo lado esquerdo.

O deus lunar adentrou um tanto afobado, deparando-se com dois de seus sócios que surgiram repentinamente no recinto.

- Não é uma cara de boas notícias. - disse um coletor, disfarçado de um homem caucasiano, careca e trajando um terno preto.

Abamanu apoiara suas mãos cobertas pelas manoplas da sua armadura sobre a mesa de pedra, fitando o nada. "Tenho tentado me concentrar somente no meu escriba, mas essa... energia é... E continua irradiando sem interrupções. O dia que eu tanto temi... pode estar mais próximo do que pensei.", pensou ele, erguendo um pouco mais a cabeça ao finalmente dar atenção aos presentes na sala.

- Como está indo o plano? - perguntou o deus lunar.

O coletor de terno e gravata insistiu em reparar na expressão do imperador.

- Você não parece estar em boas condições para...

- Como estou me sentindo agora não é importante! - vociferou Abamanu para ambos - Apenas me digam qual o status do plano!

- Se isso for algum tipo de ordem, pode esquecer. - retrucou o segundo coletor, este disfarçado como um rapaz jovem de porte atlético, rosto robusto, cabelo liso e curto e vestindo um longo sobretudo preto por baixo de vestes da mesma cor. Ele se aproximou - Perdeu a fé em si mesmo a ponto de nos tratar como seus meros lacaios. Se tentar nos rebaixar novamente, pegaremos o mago do tempo à força.

- Vai mesmo incitar um conflito quando nós estamos a um passo daquele objetivo? - questionou o coletor de terno, encarando com desaprovação, logo em seguida voltando-se para Abamanu - Se o alegra saber, nós definimos as localizações, conhecidas também como casas de leilão.

- Sem um trabalho meio sujo antes, é claro. - disse o outro, complementando.

- Em breve começará a divulgação. - falara o de terno, pondo as mãos para trás.

- E quanto ao julgamento de Chronos? - perguntou Abamanu, erguendo mais a coluna ao acalmar-se.

- Especula-se que a sentença já está para ser determinada. - disse o coletor de sobretudo - Como conhece nosso modus operandi... - esboçou um sorriso malévolo - Enfim, nossa furtividade deu um salto incrível em meio à toda a tensão, e com as vistas miradas em Chronos nada nem ninguém interceptou nossos movimentos.

O deus lunar suspirara, mas o que se entendia não era alívio.

- A coleta já está quase terminando. - informou o de terno, não tirando os olhos do imperador - Porque é isso que fazemos. - sorriu com canalhice  - Tomamos de volta aquilo que é nosso. E o que não é nosso... também. - desviou o olhar para o companheiro.

- Então está tudo nos conformes. - disse Abamanu, virando as costas para se retirar.

- Por que a pressa? - perguntou o de sobretudo, estranhando.

- Até porque não nos contou o que anda o perturbando tanto. - disse o de terno, partilhando da dúvida. - Dividir para conquistar. Lembra?

- Não sentiram essa emanação? - perguntou Abamanu, fitando-os por cima do ombro. - A mortal que tentei obrigar a agir conforme meus intentos... sofreu uma lavagem cerebral que a forçou a recorrer à meu pior inimigo.

- A garota... chamada Rosie Campbell? - indagou o de terno - Ela realmente se entregou? Quanta coragem.

- Quer que detenhamos Yuga antes que cause estragos até chegar à você? - perguntou o de sobretudo.

A tentativa de adivinhação soou como uma verdadeira piada.

A gargalhada escarniante soltada pelo deus lunar os fez sentirem-se um tanto inferiores.

- Eu quero acreditar que não ouvi o que acabaram de dizer. - falou ele, ainda dando risadinhas infames. Voltou novamente seus sibilantes olhos amarelos para os aliados - Sofrerão uma morte rápida antes que tentem, seus palermas. Portanto, sugiro que foquem em seus deveres e não interfiram em nada do que Yuga estiver fazendo. Essa emanação tão poderosa quase não me fez reconhecê-lo. Rosie Campbell não foi nada mais que um mero objeto. Ela é o trunfo de sua vitória. - fez uma pausa, andando para sair - Não vai estar convencido disso por muito tempo se depender de mim. - a porta fechara com um baque estrondoso.

- O que acha de fazermos uma visitinha ao mago do tempo para inteira-lo das novidades? - sugestionou o de sobretudo, olhando para o companheiro com empolgação contida. - Tudo bem, assumo sem a menor culpa: Não ia resistir em fazer uns cortes no rosto dele, só como aperitivo. Você também não?

- Não, melhor deixarmos como está. - disse o de terno, mantendo os braços cruzados - Tudo no seu tempo. Não iremos meter nossas mãos onde não devemos e estragar o espetáculo. - dera uma risadinha, fazendo o parceiro sentir-se ligeiramente contagiado pelo espírito de neutralidade numa guerra onde os dois lados poderiam estar fadados a sucumbirem. Pois lá no fundo o que prevalecia era o típico orgulho de um coletor, o qual semeava a ideia de nunca estar de fato lutando por um lado.

                                                                                   ***

QG Alternativo do Exército Britânico

O amplo refeitório possuía seu espaço ocupado pelo som das vozes dos soldados que punham a conversa em dia aproveitando o único e breve momento de lazer que era oferecido.

Porém, todas as atenções, simultaneamente, voltaram-se para o alto-faltante que normalmente era impercebido, produzindo seu característico ruído agudo. A última vez que havia sido utilizado foi quando ocorreram as operações paralelas em Birmingham e Liverpool.

A voz grave e áspera do General Holt retumbou sobre o espaço.

- Atenção, todos! É uma pena interromper a hora do recreio, mas devo informar que estamos diante de uma situação urgente e que exige medidas preventivas imediatas! A líder das operações de desmanche das fábricas ilegais, Rosie Campbell, se revelou uma ameaça potencialmente alarmante em todo o país! Mais do que isso... Revelou ser o que nós, seres humanos, mais tememos! Preparem-se agora, acionem a frota de tanques e a força aérea! Sinto muito desiludi-los, rapazes, mas, a partir deste momento, Rosie Campbell, de modo geral, não é mais uma de nós! É uma assassina paranormal que deve ser detida a qualquer custo!

- Eu avisei que essa garota era encrenca...

- Verdade. Não dava para confiar nela desde o início. Sabia que tinha algo no mínimo estranho nela.

- Que droga! Da próxima vou me lembrar de não deixar o melhor pedaço por último! - reclamou um soldado de porte robusto, largando sua bandeja e saindo às pressas.

Uma torrente de cochichos exasperados tomou conta de todo o local. Soldados comentavam entre si, enquanto se levantavam apressadamente, sobre o quão decepcionante a revelação era e o quão impactante foi sentida. Vários soldados largavam seus pratos e saíam das mesas diretamente ao vestiário

O refeitório se esvaziava à uma velocidade nunca antes vista.

                                                                                              ***

Uma dor de cabeça latejante acometia Holt logo ao sentar em sua cadeira de couro após retornar ao gabinete. Não tinha percebido de ter esquecido a porta escancarada, mas ignorara completamente. Apoiou os cotovelos sobre a mesma e, com seu único olho fechado, passou as mãos pelo cabelo quase branco dando um suspiro pesado em explícito desespero. Suor fresco pingava de sua testa.

Uma olhadela no telefone à sua esquerda o fez cogitar algo incerto.

"Não faça besteiras, Holt! Você enxergou a prova, ela tinha toda a razão e não tem obrigação de reportar isso à ela só para receber zombarias e piadinhas em troca. Eu sinto... tanta vergonha! Jamais me senti tão impotente em toda minha vida!", pensou ele, logo, impulsivamente, puxando uma gaveta da mesa cujo interior abrigava uma pistola 45mm de cor preta. "Que se dane!". A pegou tremulamente, mirando o cano exatamente para sua testa e o encostando na mesma segurando com as duas mãos

"Fui tolo... tão tolo em negar que estava pronto. Estou cansado de enganar a mim mesmo!"

Pusera o dedo no gatilho, verdadeiramente preparado.

A entrada de um soldado, entretanto, quebrara o momento assustando o General de modo a fazê-lo sobressaltar e a arma acabar por disparar acidentalmente. Por sorte, o tiro atingiu a janela atrás da mesa. Holt, estabanado, largou a pistola na mesa, voltando os olhos horrorizados para o soldado que o encarava com um misto de temor e estranheza.

- O que está fazendo? O senhor está pálido... Olha, sem querer ser invasivo, mas me pareceu...

- Não é da sua conta. - interrompeu Holt, soando ríspido, tentando reaver a calma ao ofegar - O que me traz?

- Só vim avisar que os leitores de atividade sofreram um grave curto-circuito. De uma só vez.

- E de onde vem essa atividade com toda essa magnitude? - indagou Holt, levantando-se para se certificar do que estava temendo.

O soldado hesitou por alguns segundos, nervoso.

- De Rosie Campbell, senhor. - respondeu, sério. - Ela foi vista em Londres após cometer várias chacinas. Essa leitura suplanta a que foi feita por Edgar e seu grupo há dois anos naquelas ruínas.

A face chocada de Holt permaneceu por vários instantes. As palavras de Sekhmet remoíam-se mentalmente. "Um poder incontrolável.", pensou ele, a aflição crescendo no âmago como uma bomba-relógio. "Ela não estava mesmo errada".

                                                                                          ***

O cadáver de um dos clientes daquele restaurante caíra reduzido à carvão, exalando uma fumaça abafada e exibindo parte de sua arcada dentária aberta. O estabelecimento possuía uma infraestrutura relativamente semelhante ao que fora invadido pelo deus solar anteriormente.

Yuga limpara as mãos, fitando o corpo em puro desdém, os cabelos loiros - outrora negros de Rosie - realçando com a luz solar que adentrava pelas janelas quebradas. Em algumas partes da parede amarela viam-se resquícios de carne humana tostada e resíduos de cinzas também achados nos cantos. O deus solar voltou-se para um atemorizado homem gorducho e ruivo de barba volumosa que se recostava sentado numa parede observando com pavor, praticamente respirando pela boca. Seu olhar de súplica intensificou-se quando o atroz executor deu passos adiante à ele.

- Muito bem. Onde nós paramos? - perguntou Yuga, debochante.

- Po.. Por favor, eu faço tudo, tudo o que você quiser, mas não me mate! - implorava Lorry, entristecendo a expressão de horror.

- Você realmente ainda não entendeu o porque de eu te-lo poupado. Sorte sua a paciência ter sido uma das poucas virtudes que me sobraram depois que eu mudei. - disse o deus, mantendo-se ameaçador.

- Então o que você quer de mim? - perguntou Lorry, suando profusamente - Dinheiro? Joias?

Yuga dera uma risadinha zombeteira.

- Me parece que não compreende mesmo o que acabou de acontecer diante dos seus patéticos olhos. - olhou em volta, as mãos levemente erguidas ao mostrar o espaço ocupado por corpos carbonizados - Veja ao seu redor, não está enlouquecendo, tudo isso foi real - olhou para Lorry -, e pude ver nos olhos dessas pessoas toda a angústia e o medo. Tentamos impor respeito com a melhor das intenções, mas o que ganhamos em troca é desproporcional ao nosso esforço... Nós incentivamos respeito e adoração e o que vemos por baixo da carne não passa de acovardamento. - deu uns passos à frente - Os mortais são desonestos, instáveis e escravos de seus temores. E quando se trata de eliminar as impurezas, não existe preço que pague a satisfação de realizar esse trabalho que foi conferido à mim.

Lorry engolira a saliva de forma súbita, afrouxando a gravata vermelha.

- Se entendi bem... Me poupou para que... para que eu escolhesse minha morte?

Um sorriso fechado e de canto surgira na face de Yuga.

- Não exatamente, mas gostei da ideia. - disse ele, deixando emanar um ar imprevisível - Mas como estou no controle, não seria justo essa decisão ser sua. Concorda? - indagou, logo depois erguendo levemente sua mão direita com a palma para cima e os dedos em posição de "garra", incutindo um efeito ardorosamente letal sobre aquele homem que chefiou as atividades humanas do escriba de Abamanu. O corpo de Lorry convulsionara e expelia-se sangue pela sua boca e pelos olhos que reviravam até as pupilas não ficarem mais visíveis.

- Ahn... Acho que passaram do ponto. - disse Mihos, surgindo de repente próximo a uma mesa queimada, olhando para cada um dos cadáveres queimados, logo voltando os olhos para seu pai.

Ao sentir a inconfundível presença do filho, Yuga virou-se com um semblante fortemente sério.

- E devo dizer que Rosie Campbell não lhe caiu bem. - provocou Mihos, sorrindo com ironia. Olhou-o com minúcia - Você mudou.

- Tudo mudou. - disse Yuga, aproximando-se - A propósito, por onde esteve... meu estimado filho?

- Fazendo o mesmo que você, só que não com tanta... - visualizou os corpos - ... impulsividade. Espero que o castigo dobrado não esteja de pé ainda.

- Isso vai ter de aguardar. - disse o deus solar, sucinto - Tenho punições mais importantes a executar, além de explorar os limites dessa força que este belo corpo ajudou a aprimorar em anos.

- Mamãe deve estar se mobilizando junto com a tropa de capachos - disse Mihos, virando-se de costas para o pai -, é só uma questão de tempo até a família estar reunida novamente.

- Ela que se dane. - disparou Yuga, esbanjando desprezo - E seria bom que mantivesse seu posicionamento. Uma vez que eu sentisse culpa por alguma insolência... seria pela morte do meu próprio filho.

A expressão de Mihos adquiriu uma seriedade embargada com um nervosismo incontrolável. Mas algo lhe dizia que a reação imaginada o prepararia melhor para fazer o que achava ser preciso.

- Sabe... O motivo pelo qual eu vim à este mundo foi pra extravasar toda a dor que as suas decisões me fizeram sentir. E não importava quanto sangue era derramado, toda aquela... sensação de insatisfação não diminuía. Era como se ter escapado só para ter que me distanciar não preenchesse a ferida. No fim das contas, eu só queria mesmo nossa família unida. Como nos velhos tempos.

- Eu o obrigo a aceitar os novos que estão por vir. - falou Yuga, o tom autoritário e soberbo - Venha comigo, estou lhe dando uma única chance de reconsiderar seu objetivo de vida ao lado do seu pai.

- A resposta é não. - declarou Mihos, lacônico, mantendo-se de costas - A questão é que... não bem é esse o caminho que deveria ter escolhido para reaver a glória do império. Você quer triunfar, mas está extrapolando, e como o filho dedicado e cuidadoso que sou... - levou a mão direita até seu colete marrom, tirando de dentro uma afiada adaga dourada em tamanho maior que o convencional - ... quero curar a doença do meu amado pai. - virou-se rapidamente, logo golpeando-o com a reluzente lâmina que, para o seu completo espanto, quebrara-se em pedaços ao chocar-se com o corpo de Rosie.

Yuga reergueu o olhar para seu filho, depreendendo o significado daquela visita. Sem mover um dedo, o empurrou com telecinesia contra a parede.

- Questione mais uma vez as minhas decisões e o farei padecer em um destino pior que a morte. - disse o deus solar, fitando-o com fúria. - Considere isso um aviso.

Mihos o encarava com repúdio.

- E eu pensando que já tinha gastado todas as opções. - ironizou ele.

- Não vou deixar seu atrevimento me testar. - disse Yuga, enfático - Você, ela e a massa de subordinados tratem de ficarem fora do meu caminho. Me arrependo de ter pensado em arrasta-lo comigo achando que isso me faria redescobrir os antigos valores, mas eu já tenho tudo o que preciso.

Uma ponta de rendição pôde ser observada na expressão de Mihos quando o mesmo assentiu positivamente ante à implacável decisão do soberano.

- Tudo bem. Fique por sua própria conta... já que meus serviços não são mais necessários.

E por fim o guerreiro escarlate desaparecera em nanosegundos, deixando seu pai solitariamente saborear a diversão sádica que só estava em seus primeiros avanços.

"Bem... Próximo.", pensou Yuga, olhando para toda a arrasada extensão do restaurante com um claro sentimento de trabalho concluído.

                                                                                          ***

Croydon

Da sala de estar ao quarto de hóspedes, tudo inspirava puro silêncio. Algo percebido como muito repentino e suspeito por Eleonor que voltava da cozinha com uma bandeja amarela na qual continha cookies em prato e uma xícara de chá sobre um pires branco. Por reflexo, virou o rosto para a porta da frente, alterando a expressão para suspicácia imediata. Depois baixou seus verdes olhos para a mesinha de centro, onde se via um bilhete dobrado.

- Alexia? - chamou ela, querendo se certificar, olhando de soslaio para o corredor. Não obtendo resposta após cinco segundos, andou em direção à mesa, pousando a bandeja perto do vaso marrom com tulipas vermelhas, logo pegando o papel e o visualizando.

"Desculpe sair sem ter avisado, mas é urgente, preciso conhece-lo o quanto antes. Quanto mais forte essa ligação se torna, mais próxima eu sinto que devo estar dele. É como um instinto despertado muito tarde. Veja pelo lado bom antes de sair desesperada pra me buscar. Se o que Hector disse a você for verdade, então existe uma chance de me reaproximar à Rosie, ainda que remota, mas eu quero continuar acreditando. Vou retribuir todo o seu apoio à mim trazendo Rosie de volta à você. Eu prometo."

"Sua tola", pensou Eleonor, fechando os olhos por uns segundos e passando a língua entre os lábios para manter a calma. "Faça promessas que pode cumprir. Mas... quem sou eu pra impedi-la? É o escriba de Abamanu. Minha serventia não é nada comparada à dele. Então esse é verdadeiro lado bom da história: Finalmente vai estar ao lado de alguém especializado no seu dom. Não conte com trazer Rosie de volta, porque... as coisas nunca ocorrem exatamente como se planeja."

A bruxa deu um suspiro pesado e longo, amassando o pequeno papel, um tanto pensativa sobre a possibilidade de rever sua querida neta após o fim da luta, deixando derramar uma lágrima de incerteza.

                                                                                       ***

O local selecionado para o teleporte havia sido uma antiga mansão abandonada por uma família cuja linhagem masculina detinha um extenso legado militar no Exército Britânico. No interior da estrutura colossal, mais precisamente no salão de festas, apenas Údon se encontrava, sozinho à espera da chegada do imperador solar ser capturado por um dos 10 sigilos teleportadores ligados ao único sigilo de Onúris localizado na sala de estar da cabana em Kéup, antigo QG da Legião.

O arqueu assoviava baixinho enquanto dava passos vagarosos no meio do recinto com as mãos nos bolsos da calça bege escuro. Lester, Hector e Áker estavam escondidos próximos à porta, observando pela brecha. O caçador estrategista não deixou de mencionar o quanto duvidava da coragem de Údon ao notar manchas de suor na camisa branca, exatamente na região das axilas.

- O barba cinza está tremendo nas bases. - disse ele, pouco confiante no plano.

- Nós avisamos que se algo der errado, iremos intervir. - salientou Áker, pacientemente vigilante.

- Como é? Ouvi um "nós"? - indagou Lester, olhando-o fingidamente confuso. - Você, quis dizer. Hector e eu ficamos na retaguarda até o fim e não se fala mais nisso.

- Lester. - disse Hector, desaprovando-o - Não é nada coerente você acusar Údon de estar sendo covarde e querer permanecer apenas assistindo, sem colaborar com nada. Temos as lâminas exclusivas que Áker nos deu e as balas douradas com sigilos entalhados.

- Ele forjou balas? Como assim tão rápido? - questionou Lester, apontando para o arauto.

- A partir das lâminas especiais. - informou Áker - Aqueço até liquefazer o material e extrair a quantidade exata. - voltou sua visão à Údon - Os efeitos podem ser temporários, mas talvez seja possível freá-lo para no caso do sigilo de Onúris não funcionar como esperado.

- Ah sim, se o barba cinza estiver errado é basicamente o mesmo que confirmar nossos leitos de morte. - disparou Lester, irrequieto.

- Não existe nada, nem mesmo um item raro capaz de drenar a energia bruta em toda a sua essência? - perguntou Hector, mantendo os olhos fixos em Údon.

- À esta altura, receio que nem mesmo o brasão de Sekhmet seja forte o bastante. - disse Áker, soando um tanto pessimista - Ele se tornou um monstro destruidor nunca antes visto. Algo que se contrapõe ao majestoso rei a quem jurei lealdade eterna. Não espero que nossas opções dobrem. Você, Hector, teve o desprazer de sentir uma fração do seu poder. O que me diz sobre isso?

O caçador baixou um pouco a cabeça, mordendo os lábios. Uma descrição era praticamente inviável.

- Creio que não experimentei nem um décimo. - disse o caçador, honestamente. - Você fez a ligação há 8 minutos... Essa demora toda é para nos testar? O que esse maldito pensa que...

Cortando a frase de Hector subitamente, Yuga aparecera diante de Údon que se virou com alarme.

- E falando no diabo... - disse Lester, em seguida estreitando os olhos - É impressão minha ou... ela tingiu o cabelo? - deu um sorriso malicioso - Até que caiu bem.

Uma atmosfera silenciosa fez o ar do salão tornar-se carregado de tensão.

Údon o fitava sério, a postura equilibrada.

- Ora, ora, ora... - disse Yuga, sorrindo para o arqueu, dando alguns passos - Se não é o meu ilustre confidente. Veio renegociar os termos?

- Não vim negociar nada. - disse Údon. "Mantenha a calma, não olhe para o chão...".

- Você nunca foi de poucas palavras. - disse o deus solar, continuando a andar - O que houve? Estou tão feio até pelo meu conveniente aliado?! Não me leve a mal... mas é um pouco decepcionante, se precisou do meu segundo em comando pra me chamar sobre algo tão importante, deveria ao menos prestar algum respeito. Que tal começar com uma reverência, só pra variar? - sugeriu, erguendo a mão direita e usando sua aura para fazer Údon curvar-se perante à ele.

Hector não se aguentou ao ver o arqueu cair de joelhos com os ombros encolhidos e sendo forçado a realizar um gesto diante de alguém que não merecia.

- Está o torturando...

- Não. - disse Áker, impedindo-o de fazer uma besteira - Údon vai se sobressair. - falou, assentindo positivamente. - Tenho certeza.

Údon contorcia-se por dentro devido ao imenso poder de submissão incutido sobre ele, rangendo os dentes com os olhos fechados e apertados e sua cabeça sendo abaixada ao chão.

Parecendo entediado, Yuga suspirou e desfizera o controle, baixando sua mão.

- É, sou mesmo um teimoso. - disse ele, olhando o arqueu com altivez - Nunca tem graça quando é forçado.

- Eu não me referia... á monstruosidade que se transformou.... - disse Údon, levantando-se - ... Meu repúdio vai ao fato do quanto esta mortal está sendo maltratada por dentro.

- Que estranho. Ao fazer a previsão, não via toda essa piedade no seu rosto. - declarou Yuga, não deixando dúvidas de que ainda mantinha-se no controle - Talvez seja porque... - ergueu de leve a mão direita com os dedos indicador, maior e polegar juntos - ... não queira desagradar os seus novos amigos ali atrás. - estalara os dedos.

Como fantasmas, o trio surgira no meio do salão de festas. Hector demonstrou estupefação intensa na face. Lester olhou ao redor, tocando no corpo, completamente impressionado.

- O que é que foi isso? - indagou Lester, recuando alguns passos, amedrontado.

Hector fitou o deus solar com um misto de seriedade e raiva.

- Por que ficaram espiando? - perguntou Údon, aborrecido. - É essa a confiança que vocês querem que eu aceite?

- Errado, arqueu. - disse Yuga, elevando o tom da agradável voz de Rosie - A pergunta que não quer calar é: Tínhamos um acordo ou não, Hector?

Tanto Údon quanto Áker voltaram olhares surpresos para o caçador. Desconcertado, Hector se limitou a ficar nervosamente pensativo. Lester não mediu protesto.

- Como é que é?! - disse, franzindo o cenho - Hector, que história é essa de acordo? Fez um pacto com esse monstro?

- Eu posso explicar... - disse o caçador, erguendo de leve sua mão esquerda em pedido por calma.

- Na verdade, sou eu quem devo. - retrucou Yuga, com um olhar infame - Concordei com o prazo de cinco dias para que ele pudesse encontrar a quimera e enfim aceitar seu verdadeiro destino, em troca de poupar suas vidas miseráveis.

- Cara, você ainda não aprendeu que esse negócio de guardar segredo sempre acaba em merda. - disse Lester, repreendendo-o.

- Se entregar à Abamanu em sacrifício por nossas vidas!? - disse Áker, olhando-o com o cenho franzido - Onde estava com a cabeça, Hector?

- Está bem, chega. - disse o caçador, aparentando estar farto - Já não importa mais.

- A sobrevivência dos seus aliados? - indagou Yuga, visualizando cada um deles com canalhice - Benevolência não é de fato uma característica inerente aos que são destinados às trevas.

Em um impulso surpreendente, Lester chamara atenção do resto do grupo ao sacar seu revólver e aponta-lo bravamente em direção à Yuga.

- Lester, o que vai... - disse Hector, apreensivo, quase considerando detê-lo.

Antes que deixasse o amigo concluir a frase, o caçador disparara contra a testa de Rosie em um estampido retumbante que fizera o deus solar inclinar rapidamente a cabeça para trás devido ao impacto da bala.

- Idiota! - disse Údon, recuando alguns passos.

- O que foi? Só o peguei de surpresa pra testar uma teoria! - defendeu-se ele, a fumaça saindo do cano da arma.

- Foi um movimento muito imprudente, Sr. Cooper. - reprovou Áker, concordando com os demais. - Combinamos que as balas seriam usadas se as coisas não saíssem de acordo com o plano.

A gargalhada espalhafatosa e maléfica de Yuga com a voz de Rosie assustara-os.

- E quando isso esteve ao ponto de dar certo, afinal? - questionou ele, desinclinando a cabeça e baixando-a à frente, ainda dando com ares de riso. A bala dourada caiu com um tilintar ressoante estando retorcida. - São ignorantes... estúpidos... e amadores. - falou, erguendo a cabeça exibindo a marca do tiro na testa se regenerando. - Hector, tolero todos os pecados... menos a traição. Ainda mais sendo pelas minhas costas! Agora entendo como Rosie se sentiu quando a enganou porque no fundo você não passava de um covarde, incapaz de proteger alguém que ama!

Hector o fitava com mais fervorosidade, ouvindo as provocações em silêncio por via das dúvidas. Mas palavras começavam a engasgar-se a cada segundo. "Se eu pudesse arranca-lo dela com minhas próprias mãos..."

- E como punição pela deslealdade... - disse Yuga, fazendo crescer labaredas de fogo do seu braço direito que o preenchiam - ... vou começar com seu insolente companheiro. - visou Lester com fúria, logo em seguida esticando o braço flamejante e lançando uma poderosa rajada de chamas.

Áker prontificou-se e, superveloz, correu para salvar Lester de ser atingido, tirando-o do caminho no último segundo antes que o fogo alcançasse.

Ambos caíram no chão após bolarem até baterem na parede.

- Como se sente? - perguntou o arauto.

- Um pouco constrangido. Será que dá pra sair de cima? - pediu Lester, educadamente, arqueando as sobrancelhas.

Údon não perdera mais tempo e assumiu a frente, recitando o dialeto divino para acionar o sigilo.

Um intenso clarão formou-se ao redor de Yuga que visualizava as linhas que reconheceu ao seu redor. Um vislumbrante olhar de revolta foi a última que o arqueu viu no deus solar antes da claridade esbranquiçada irromper com mais potência por todo o salão.

Hector protegera os olhos com um dos braços, enquanto Lester era levantado por Áker.

- Obrigado. - agradeceu o caçador, ignorando o clarão - Se não fosse por você, o desgraçado ia comemorar a vitória com churrasquinho de Lester.

A luz diminuía em questão de segundos. Údon voltara-se para Hector e escancarando sua pressa pela forma como ia se aproximando.

- Rápido, toquem em mim. - disse ele, pegando a mão direita de Hector e a colocando sobre seu ombro. - Menos você, Áker. - determinou o arqueu, enfático, olhando com firmeza. Lester chegara perto, tocando-o.

- Podem ir. - aquiesceu Áker, assentindo - Eu cuido de reparar os danos que ele causou nas pessoas. - fez que sim para Hector que retribuíra com o mesmo gesto.

- Tudo bem. Nos vemos em breve. - disse Údon, logo desaparecendo dali com ambos os caçadores na velocidade de um pensamento.

                                                                                           ***

Região montanhosa de Kéup

- O que significa isso? - se perguntava Yuga, esquadrinhando o ambiente que o cercava na forma de um espaço médio como uma sala de estar com paredes e telhado um tanto desgastados. - Não posso... me mover... - disse, forçando os músculos do corpo da jovem que pareciam terem sido congelados por dentro.

Para sua total infelicidade, Údon, Hector e Lester apareceram por teleporte. Lançou-lhes um olhar embargado de cólera pulsante.

- E de volta ao antigo lar. - disse Lester, vislumbrando alguns pontos do cômodo mais amplo da cabana onde se reunia com seus companheiros de caçada, sentindo uma pontada de saudosismo angustiante pelos tempos mais simples.

- Acabou, Yuga. - disse Hector, entre o arqueu e o caçador estrategista, a postura brava e confiante - Assim que livrarmos o corpo de Rosie da sua influência maléfica, vamos protege-la como se nossas vidas dependessem disso até você voltar. E pode acreditar que vamos estar preparados.

Com um estalar de dedos, Údon acendera o bem confeccionado sigilo do deus da guerra Onúris que se iluminou sob os pés do demiurgo com uma luminosidade amarelada e visivelmente mais forte que as dos convencionais.

- Então é isso. - disse o deus solar, sorrindo com infâmia, a luz do sigilo iluminando-o de baixo à cima, lhe dando um caráter relativamente tenebroso - Já imaginava, mas não esperava que reunissem tanta coragem para fazê-lo. - pausou, desdenhando a armadilha - Não posso silenciar o arqueu... mas não quer dizer que não exista um modo de interromper seu genioso plano.

- O que quer dizer com isso? - perguntou Údon, temerário.

- Não perca tempo - disse Hector, ansioso -, é a nossa deixa. Faça o exorcismo.

- Todos possuem alguém com quem se importe. - disse Yuga, fazendo suspense - Hector e Rosie. - olhara para o arqueu - Údon... e sua preciosa escolhida. - fez uma pausa, deliciando-se ao ver o desespero tomar conta da face do ex-confidente - Com a quebra do acordo entre mim e Hector, não dou nada menos que 30 segundos para esses rabiscos fosforescentes se apagarem para que eu possa visita-la.

- O que ele tá dizendo? - indagou Lester, demonstrando apreensão na voz - Diz que isso mentira. 30 segundos?!

- 95, na verdade. Tendo já se passado 26. - corrigiu Údon, retraído pelo medo e fitando-o com raiva - Não vou culpa-lo, Hector. - disse, virando-se para o caçador como quem pede desculpas - Mas se eu negar meus instintos agora, pode ser que minha honra como arqueu seja completamente perdida. Não posso. - balançou a cabeça em negação - Não posso deixa-la morrer. Me perdoe. - falou, desaparecendo em um piscar de olhos, o que despertara imediatamente a revolta em Lester.

- Desgraçado! Covarde! - exclamara o caçador, chutando uma cadeira, inconformado pela decisão inconsequente do arqueu em deixa-lo sozinhos com Yuga.

- Lester, pense antes de falar. - aconselhou Hector, afastando-se do sigilo ao virar-se para o amigo e convence-lo -  Olhe pra mim. - tocou-o no ombro - É Alexia. Se estivesse no lugar de Údon, o que você faria?

- Será que não passou pela cabeça dele que foi pego num blefe? - questionou o caçador, exasperado.

- 15 segundos... - disse Yuga, absorvendo a energia contida no sigilo. Por reflexo, Hector virou-se e enxergara as linhas do símbolo perdendo luminosidade rapidamente, logo erguendo seu olhar espantado para o corpo de Rosie que reluzia fortemente graças ao progressivo aumento de poder, refletindo até mesmo nos cabelos loiros que esvoaçavam tal qual a capa vermelha. - Estão sentindo o ar mais abafado? Se os incomoda, então eu sugiro que saíam para tomar um ar antes que fique pior.

Uma adrenalina obrigou Hector a buscar uma salvação urgentemente no menor tempo possível.

- Rápido, Lester, vamos sair daqui, depressa. - disse o caçador, quase que puxando o amigo pela manga da camisa, encaminhando-se para a porta a passos largos.

Na corrida desesperada, o caçador estrategista dava rápidas olhadelas para trás, apavorado.

- Ali! - disse Hector, apontando para uma rocha praticamente do tamanho de um carro, direcionando-se mais veloz até ela com o companheiro atrás. Ambos esconderam-se e agacharam-se com segurança por detrás da grande pedra.

Dentro da cabana, Yuga intensificara sua reluzente aura coruscante que preenchia cada polegada do recinto, ultrapassando pelas janelas em alguns feixes. Os olhos e a boca iluminaram-se fulgidamente até o ponto de liberação da energia alcançar seu pico explosivo que destruíra a cabana instantaneamente e alastrando-se aos arredores em chamas densas.

O fogo avassalador chegara até a rocha na qual Hector e Lester protegiam-se, passando como um furação infernal acima de suas cabeças.

- Já sinto minha pele chamuscando! - disse Lester, com os olhos apertadamente fechados em pavor.

A tempestade de chamas dissipara-se velozmente.

- Acho que já podemos ficar expostos. - disse Hector, confiando em sua intuição ao se erguer ao poucos e parecer não estar sentindo a presença de Yuga.

- Continuaria aqui se fosse você. - disse Lester, cauteloso -  Ele pode voltar só pra nos fritar de vez.

- Não. - retrucou Hector, levantando-se mais rápido, as mãos seguradas na pedra, logo enxergando a extensão devastada do campo que circundava a cabana. - Ele não vai nos matar, desde que o permitamos explorar seu potencial. É o seu principal objetivo, atrás de enfrentar Abamanu.

- A barra está limpa então? - perguntou Lester, mantendo-se hesitante. Hector preferiu o silêncio ao encarar aquela visão horrenda e entristecedora - Tudo bem, vou considerar essa cara de espanto como um sim. - disse Lester, se levantando, logo assustando-se com o se deparara.

Toa a área ao redor da cabana estava com o solo enegrecido pelo calor das chamas ardentes, cujos vestígios ainda se viam em alguns pontos. Em linhas gerais, uma destruição incendiária e extrema.

- Não sobrou nem um tiquinho de grama. - disse Lester, atrás de Hector , visualizando o campo totalmente queimado, espantando a fumaça com a mão direita. - Olha... vamos recapitular: Rosie aceitou ser armadura pra um deus insano, você e ele fizeram um acordo, nosso plano de derrota-lo foi por água abaixo, o antigo QG da Legião já era... - olhou para Hector que, de costas à ele, observava a destruição silencioso, dando uns passos em sua direção - Ou a gente rastreia o barba cinza calças borradas pra arriscar um plano B... Ou podemos pular para o plano F... de funerário.

O emudecimento de Hector durou por mais alguns segundos.

- Ainda não perdi as esperanças. - disse o caçador, virando-se para o companheiro - Podemos localizar Údon se formos até Croydon. É lá onde estão Alexia e Eleonor.

- Ah sim. - aquiesceu Lester, assentindo, mas logo franziu o cenho em confusão - Espera... Quem é Eleonor?

- Não importa, já perdemos tempo demais. - desconversou o caçador, seguindo em frente - Com Áker ocupado, só nos resta irmos por nossa conta. Údon não só obedeceu ao instinto, como também viu um refúgio seguro nessa aproximação com Alexia. Na verdade, eu até suspeito que ele sabe que será encontrado cedo ou tarde, aconteça o que acontecer, está ganhando tempo para solidificar sua relação com Alexia a tempo de apostarmos no próximo passo. Ele não teve escolha, precisou sacrificar o plano em prol da segurança de sua eleita. Devia compreender isso tanto quanto eu, Lester.

- Ahn... É que eu... Sim, eu assumo, fui um tremendo idiota. - desabafou Lester, rendido ás desculpas por sua inflexibilidade, coçando a parte de trás da cabeça ao seguir Hector - Mas você ouviu o que ele disse. Pareceu que ele ia fazer mais pela própria honra, ao próprio ego, do que pela Alexia.

- Gosto de acreditar que é pelos dois. - declarou Hector, sendo realista.

A aparição repentina de Áker à alguns metros de distância os fez se virarem quase que em simultâneo. O ex-segundo em comando do exército de Yuga observava o cenário devastado pela fúria de seu outrora imperador.

- Áker. - disse Hector, andando até o arauto em ritmo rápido, enquanto Lester vinha por trás - E então? Conseguiu algo a respeito das vítimas?

- Chamei reforços. - informou o arauto, desviando o olhar sério para a dupla - Os estragos causados... são extremos de tal forma que não podemos deixar que os mortais lidem com essa realidade tão precocemente.

- Como assim? - indagou Lester, levantando uma sobrancelha.

- É uma questão de segurança. Nenhum ato de terror provocado por ele deve ser assimilado, e pensando nisso recorri ao meu pequeno grupo para tomar as medidas preventivas e eliminar qualquer iminência de efeitos a longo prazo. - explicou Áker, objetivamente - Sei que não tenho muitos ao meu lado, mas os encorajei a serem firmes e vigorosos, não deixar essa calamidade desanima-los e força-los a entregar os pontos. Muitos que apoiavam a minha causa passaram para o lado de Sekhmet, por ainda acreditarem que sou favorável a nova política do imperador.

- Sorte a sua ter convencido os poucos que restaram. - disse Hector, mostrando-se consolador - Como esperam contornar todos os danos?

- Estamos considerando um método eficaz, porém ainda deve ser revisto com cautela. Não deve demorar até que tomem a decisão correta. - disse o arauto, assentindo positivamente. - Onde está Údon?

Lester sentiu-se no direito de responder.

- Ahn, mas o desgraçado escapou, o plano não foi...

- Isso eu já percebi. - retrucou Áker, logo expressando desconfiança - Quero saber por que Údon não está com vocês. - fechou os olhos por um segundo, imaginando a razão - Não me diga que...

- Não, ele não abriu mão da aliança. - disse Hector, erguendo de leve uma mão para acalma-lo - Acontece que ele foi indiretamente coagido a procurar Alexia por uma chantagem de Yuga com base na quebra do acordo. E, como pode imaginar... - demonstrou certo desalento - ... isso fez com que perdêssemos a chance valiosa.

- Mas a gente não vai desistir. - disse Lester, surpreendentemente determinado, alguns fios no alto de seu cabelo curto e preto balançando com o vento - Não vou me permitir fraquejar logo agora que cheguei no nível máximo de caçador.

Hector deu um leve sorriso fechado e bem humorado ao amigo, tocando-o no ombro.

- Vou leva-los de volta ao Casarão. - decidiu Áker - Enquanto ficam em segurança, vou rastrear Údon, tenho certeza que ele não vai dificultar em vista das circunstâncias.

- Está bem. - concordou Hector, a expressão séria - Certamente ele quer se encontrado. Só precisa de um tempo ao lado da pessoa que ele jurou proteger.


                                                                                             ***

Ifley, Oxford

A residência antes pertencida ao desconhecido Christian Nevook possuía uma visita específica naquela tarde ensolarada. Ao entrar devagar, Údon sentiu a reação com um nó na garganta quando bateu os olhos nas belas madeixas ruivas alaranjadas da pessoa que estava sentada de costas à ele no sofá de couro castanho caramelo. Estacado, ficou sem a menor ideia de como se apresentar. "Previ que eu fosse convida-la, não que ela viesse sem meu consentimento. Pelo visto, a ligação se estendeu até demais. Mas ela finalmente chegou à mim. Espero não assusta-la...".

Foi andando a passos vagarosos e quase inaudíveis.

- É bastante tímido para alguém com tamanho poder. - disse Alexia repentinamente, fazendo-o estremecer e apressar o ritmo dos passos - Vamos, só quero conversar. Não estranhe eu estar tranquila no meio de toda essa situação.

O arqueu se pusera diante dela com rapidez, um pouco desajeitado e visivelmente nervoso.

- Em primeiro lugar: Não tem autorização para pegar café sozinha, poderia esperar que a servisse. - disse Údon olhando-a com firmeza - E em segundo lugar: É um prazer tê-la aqui. - deu um sorriso amigável.

A vidente o estudou por um instante, o semblante de gratidão bastante nítido. Sorriu de leve, depositando a xícara e o pires na mesa.

- Bem, nem sei como agradecer... - disse ele, um tanto acanhada - Fico... lisonjeada. - ergueu os estonteantes olhos verdes para o deus-profeta - Vindo de você é honroso. Posso sentir. É estranho, mas creio que com o tempo eu vá me acostumar.

- Ahn... - disse Údon, sentando-se no sofá à frente do qual a vidente estava, inclinando-se para ela em seguida, pigarreando - Posso assegura-la de que está fora de perigo ao meu lado. E peço desculpas se meu poder psíquico a incomodou...

- É exatamente sobre isso que vim tratar. - disse Alexia, sem rodeios, fixando seu olhar concentrado no arqueu - Eu saí da casa da minha amiga, uma bruxa, ela conhece Hector e ele a informou de que você é uma entidade com avançados poderes psíquicos, designada a eleger... pessoas como eu.

- Então era mesmo uma mulher. - disse Údon, desviando o olhar com um sorrisinho enigmático, saindo do foco - Uma bruxa?! Isso é interessante. E explica porque não quis nos contar.

- Como é? - indagou Alexia, perdida, franzindo o cenho.

- Ah, não, nada demais. - disse o arqueu, recompondo-se - Bem, você... Você quer saber tudo sobre mim. Tudo bem, é justo, mas vou ser cuidadoso em não alongar a história. A coisa anda pegando fogo lá fora e o nosso tempo ficou bem mais curto.

- Ah, é verdade. - soltou Alexia, pondo as mãos na cabeça ao lembrar da situação de Rosie e deslizando-as sobre as maças do rosto, recostando-se no sofá - Dei tanta atenção pela minha ansiedade para encontrar você logo que acabei me cegando ao problema da Rosie. - fez uma pausa, olhando para o escriba de Abamanu com nervosismo - O que aconteceu? Como ela está?

Era forte o aperto no coração sofrido pelo arqueu ao ouvir o tom alarmado da jovem profetisa. Por mais que achasse estranho, ele tinha de admitir que uma semente de empatia foi plantada graças ao apelo de Hector, Áker e Lester, principalmente de Hector, e interromper o crescimento dela só o faria considerar-se um fugitivo egoísta e covarde que não se dá ao luxo de arcar com as consequências de seus atos por um bem maior, pondo sua própria sobrevivência à frente de uma frágil vida humana que foi severamente violada. As mãos sobre os joelhos fecharam-se e ele exibiu certa tristeza.

- Nada bem. - disse ele, secamente.

- O que realmente aconteceu? - perguntou Alexia, inclinando-se com a face embargada de aflição.

- Ela aceitou ser o receptáculo de Yuga em troca da liberdade de sua mente. - disse Údon, sem muita clareza.

- Yuga!? - disse a vidente, surpresa, automaticamente rememorando a primeira sessão de regressão na qual se viu como espectadora do confronto titânico entre as duas divindades há 500 mil anos - Não pode ser... Libertar a mente dela? De quê?

- Da minha influência. - revelou Údon, sem medo - Eu fiz isso com ela. Fui um agente duplo.

- Você o quê? - indagou Alexia, elevando o tom, levantando-se depressa e olhando-o com confusão.

- Está bem, sei o que deve estar pensando - disse o arqueu, deixando esvair a tranquilidade -, sou um traidor, talvez merecedor de sofrer punições que me conduzam à morte, mas... - pausara, sem saber como tentar convence-la de modo mais esforçado.

- Tudo faz sentido agora. - disse Alexia, pensativa, mas não menos abalada - Não foi coincidência eu ter sofrido com a ligação no mesmo dia em que o Hector liga para a Eleonor avisando que a Rosie teve um surto psicótico a partir de uma dor de cabeça. - olhou-o, séria - É tudo parte do plano de Abamanu, não é?

- Sim. - confirmou Údon, assentindo - Mas por favor - levantou-se -, tudo o que fiz foi para manter-me vivo. Sem mim todos vocês estariam às portas da aniquilação total. Yuga está por aí espalhando terror e destruição, usufruindo de um corpo que não é seu e que detém um poder que virou sua mente do avesso. Eu fiz uma escolha, Alexia. Por obrigação, mas fiz. Então, por favor, não me rejeite, não me odeie e nem me veja como um criminoso.

A vidente permaneceu em silêncio por vários segundos, aparentando não ter ideia do que decidir.

- Por onde esteve... antes de me encontrar?

- Com Hector e o amigo resmungão dele. - respondera, o tom mais calmo - Estávamos a um passo de arrancarmos Yuga de Rosie, no entanto... o miserável mencionou você. O resto da história é bem previsível. - expressou confiança na face - Larguei um plano que tinha uma certa chance de falhar para vir proteger você.

- Me proteger?! E quanto à Hector e Lester? - questionou Alexia, cada vez mais duvidando das intenções do mentor - Os deixou lá para morrer?

- Claro que não. Obviamente, eles são espertos, deram um jeito de escaparem ilesos, isso eu garanto.

- É bom mesmo. - retrucou Alexia, mantendo sua reação negativa à revelação - Olha... Eu acho que... é melhor eu voltar.

- Não, não, você deve ficar. - insistiu Údon, segurando delicadamente o braço direito da vidente - Independente dos meus erros, tem que aceitar que é comigo onde deve aprender mais sobre si mesma. Eu faço questão. Por favor. Você... é extremamente importante pra mim. - tocou nas brancas mãos da jovem. - Não me abandone.

A imploração nos olhos do arqueu tocava a sensibilização fácil da vidente.

"É inevitável... Vejo uma sinceridade transbordar dele que me atrai, mas... Não sei o que pensar, não sei como me decidir, ele mentiu... Mas eu também guardei segredos por muito tempo, não tenho direito de apontar o dedo e acusa-lo. É como se depois dessa revelação uma boa parte daquela empolgação se perdeu. Agora imagino como Rosie se sentiu. Porém, meu caso é um pouco mais diferente. Rosie e Hector ainda estavam plenamente conhecendo um ao outro naquela época, já eu e ele... sinto como se tivéssemos um vínculo forte desde o início, e é exatamente a força desse vínculo que me leva a reconsiderar apoia-lo, mesmo hesitando.".

- Está bem... - disse o arqueu, parecendo rendido, afastando-se - É inútil força-la. Volte para sua amiga bruxa... se sente-se mais à vontade com ela, mais segura e confortada, não vou convence-la do contrário, você é livre.

- Espere... - disse Alexia, com menos relutância na voz - Posso não confiar totalmente em você, mas a última coisa que quero é que se magoe e se torture por minha causa. Honestamente, eu sinto que semanas com a Eleonor não se comparam a minutos diante de você. Ela me ajudou, fez o melhor que pôde, mas tenho consciência de que você vai me mostrar um longo caminho a percorrer onde eu vá encontrar o meu eu por inteiro. Então... - baixou um pouco a cabeça, o olhar meio distante - ... sim, eu quero sua ajuda, eu... preciso saber mais sobre você para eu me conhecer melhor.

Um sorriso de satisfação formou-se em Údon.

- Acho que temos um tempinho para uma longa história resumida. - disse ele, reavivando a esperança.

Alexia sorriu abertamente, seus límpidos dentes realçando sua beleza. Voltou a se sentar.

- Bem, vá em frente.

                                                                                        ***

Liverpool - 17h22

O movimentado centro da cidade do noroeste, sob o céu azul em tons levemente alaranjados do poente, estagnou sua atenção para um elemento ligeiramente atípico e que ganhou arquejos de espanto pela maioria da população que observava e murmurava a respeito da aparição inesperada.

Um grupo de homens de ternos sociais - dois deles com chapéus - que saíam de um prédio de advocacia reuniam-se à multidão curiosa ao invés de adentrarem nos seus carros e retornarem ás suas casas. Multidão esta que se avolumava a cada minuto.

As vestes da misteriosa garota que pareceu ter surgido do nada chamavam atenção em uma escala de reação bastante oscilante. Muitos se perguntavam, veementemente, quem era a tal jovem com roupas extravagantes e de capa vermelha que julgavam estar perdida. Mas faltava algo para concluir esse julgamento com melhor segurança. A expressão dela, aliada à postura firme, pouco sinalizava um desamparo esperado de alguém naquela condição. Alguns podiam jurar, com todas as forças, que perceberam o exato instante no qual viram-a surgir de modo quase fantasmagórico. Ouviam-se cochichos a respeito.

- Calem-se! - bradou Yuga, a voz de Rosie retumbando sobre todos que assustaram-se com sobressaltos e tremulações como se tivessem escutado um som reproduzido como mil trovões.

O trânsito congestionara devido ao alvoroço, com sons exaltados de buzinas ouvidos ao longe.

- Essa garota é insana? - indagou uma simples mulher loira da área residencial, procurando manter distância, lançando um olhar de estranheza - Como ela apareceu assim tão de repente? - tremia devido ao som da voz da jovem estranha.

- Ouçam-me - disse Yuga, dando alguns passos adiante - Estão prestes a testemunhar algo que desafiará todos os conceitos que a simples existência humana construiu. Vocês criaram regras e ensinamentos baseados em seres como eu... - ficou pensativo por um segundo - ...como eu costumava ser... Mas nunca questionaram os próprios limites da ignorância. Eu estou aqui para mostrar que estavam completamente enganados esse tempo todo. E vou adorar vê-los gritarem por vidas. - ergueu seu braço direito, manifestando sua aura pressionadora sobre todos ao seu redor.

Uma série de gritos de dor ocupou o espaço intensamente, com várias das pessoas que encaravam a garota desconhecida e louca ajoelhando-se com mãos na cabeça e olhos fechados sendo atormentados por uma força submetedora que se efetuava como um peso de toneladas sobre as costas misturada a um zumbido agudo e ensurdecedor. Por conta do forte impacto da enorme aura, carros tinha seus vidros quebrados sequencialmente e suas latarias amassadas como papel, tal efeito estendendo-se aos prédios e estabelecimentos comerciais cujas vidraças estilhaçavam ao mesmo tempo.

- Isso... Curvem-se... - dizia Yuga, sorrindo maleficamente - Gritem por misericórdia. Até reconhecerem verdadeiramente aquele que devem louvar em absoluto temor.

Uma voz feminina quebrara a atmosfera de súbito.

- Eles não devem nada à você. Se quer um conselho: Nenhum deles vale o esforço. - disse Sekhmet, parada com os braços cruzados próxima a um poste em um ponto próximo à estrada onde se via o engarrafamento à alguns metros - Desperdiçar energia com tortura só para provar seu valor é um passo bem preguiçoso. - dera dois passos adiante - Um deus com auto-controle saberia disso.

Yuga foi virando-se lentamente, a expressão enfurecendo-se aos poucos, logo desfazendo seu poder submissor sobre os inocentes que caíram sobre o chão enfraquecidos.

- Essa é você de verdade. Por um momento imaginei que meu ex-mensageiro criou uma cópia fajuta para me ludibriar como distração a mais uma tentativa desesperada de me separar à Rosie Campbell.

- Vim por conta própria. - assegurou a deusa, firme na postura - Não que eu esteja afim de me aliar á eles, mas isso não significa que vou ficar satisfeita apenas assistindo.

- Então por que veio? - perguntou Yuga, levantando uma sobrancelha - Fui generoso com Mihos, não espere que o mesmo aconteça à você.

- Eu vim na espera de enfrentar um medo que fez parte de mim durante todo o tempo em que desejei a cabeça de Rosie Campbell na palma da minha mão. - disse a deusa solar, exprimindo raiva no tom - Lutei esse tempo todo para evitar, a qualquer custo, o que está bem na minha frente. Agora só me resta encarar a verdade: Nada será como antes. - deu de ombros, balançando de leve a cabeça em negação.

- Se está pensando em salvaguardar o que restou da nossa família tentando me impedir - disse Yuga, desafiador - , eu diria que já cavou sua própria cova. Olhe pra eles. - relanceou as pessoas que corriam apavoradas por todos os cantos em um alarido tresloucado - Vermes de carne e ossos desesperados ao sentirem na pele o poder de um verdadeiro deus! - deu uma risadinha infame - Não é de dar dó? São como... uma colônia de formigas, em que basta matar uma para todas irem à loucura.

- Não os culpo por agirem pelo instinto. - disse Sekhmet, severa - São imperfeitos, frágeis e patéticos, mas quem sabe, com uma metodologia mais eficaz... - olhou-os de soslaio - ... talvez um dia aprendam a viver. Você se tornou refém da sua própria loucura. Essa é a diferença entre você e eles.

- Deixa eu adivinhar: Prefere lutar para reconquistar minha confiança? Se sacrificar para ser lembrada como uma guerreira que morreu lutando pela honra do império?

- Não. - respondeu Sekhmet, apertando o passo em direção ao deus solar - Quero lutar... exatamente como manda o protocolo: Até que a morte nos separe.

- Com certeza não será a minha. - retrucou Yuga.

Ambos colidiram-se supervelozes gerando um impacto fatal. Yuga a erguera com sua extrema força e a arremessara brutalmente contra um carro de cor preta estacionado próximo ao prédio de advocacia.

Amassando completamente a parte superior do veículo, o corpo de Betsy Rossman que a deusa usufruía estava praticamente imobilizado pelo ataque.

Yuga estalara os dedos da mão esquerda, explodindo o carro instantaneamente, com alguns pedaços do mesmo voando pelos lados. A densa nuvem flamejante subira com bastante rapidez. O deus solar, confiante do golpe, sorriu de canto debochadamente. Porém, viu-se agarrado por trás pelas mãos ardorosas da esposa que teleportara-se milésimos antes da explosão.

- Ora, sua... - disse ele, logo depois "voando' para trás a fim de fazê-la larga-lo quando se colidisse contra alguma parede. As costas da deusa foram de encontro à uma pilastra de um prédio, rachando-a completamente, em seguida recebendo uma cotovelada forte de Yuga que a fizera sangrar e, por conseguinte, perder a firmeza do agarro. O deus solar virou-se e a pegou pelo pescoço, tirando-a do chão e em seguida jogando-a violentamente.

Levantando-se rápido da pequena cratera formada, Sekhmet, através da mão direita aberta, o empurrou telecineticamente, fazendo com que os pés se arrastassem no chão. No entanto, o efeito surtira fracamente, para o total azar da deusa que fitava o resultado desconcertada.

- Sua brisa refrescante mostra que continua amável. - ironizou Yuga, com um sorriso canalha. - Até fez umas cócegas. O que acha da minha? - perguntou, realizando o mesmo ataque. Sekhmet dera um grito rápido ao ser abatida pelo golpe, mil vezes mais efetivo, sendo empurrada até chocar-se contra um outro veículo severamente danificado, quase fazendo-o pender para cair.

Enquanto os minúsculos cacos de vidros caíam sobre seus ombros, a deusa sentiu um gosto molhado e inconfundível na boca, comprovando ao encostar sua mão direita. Ao ver certa quantidade de sangue na mão, admitiu estar com a derrota garantida. Mas ainda precisava atrasa-lo por mais um tempo. "Meu emblema vai recarregar em breve. Só preciso segura-lo por mais 30 minutos. Mesmo que essa cidade seja varrida do mapa."

- Vamos mesmo continuar com isso? Estou ficando entediado. - disse Yuga, andando na direção dela. - Só um lado dessa luta vai se preocupar com desgaste. Posso liberar e repor o que foi gasto na mesma medida.

"O que ele está dizendo?! Não pode ser verdade..."

- Não vou parar... - disse a deusa, ignorando as feridas no rosto - Até fazê-lo pagar.

- Até que essa cidade vire pó? - indagou Yuga, curioso quanto ao desafio.

- Não me importo! - retrucou ela, trincando os dentes em cólera - Eu vou desintoxica-lo e depois tranca-lo numa cela e jogar a chave fora!

- Ótimo. Vou gostar de vê-la tentar. - disse Yuga, exibindo uma iluminação amarelada em seus olhos que progredia rapidamente... até culminar em duas rajadas ópticas e retilíneas.

Sekhmet não demorou nenhum segundo ao imitar o movimento e atacar.

Os raios chocarem-se com extrema intensidade proporcionando uma espécie de "cabo de guerra", sendo a parte de Yuga a que levava uma evidente vantagem. Um constante "vai-e-vem".

O deus solar rira de uma forma insana como nunca antes vista, impondo mais força a sua rajada. Em seguida cerrou os punhos e dera um estridente urro que ajudara a fortalecer o ataque, seus cabelos loiros esvoaçando quase que em câmera lenta.

A deus solar tentou forçar um pouco mais, embora sentindo as pernas ficarem bambas. Urrara no mesmo tom num esforço dobrado, sua rajada sendo empurrada de volta ao meio do campo de batalha... entretanto, rivalizando por pouco tempo.

Com um impulso ainda mais forte, as rajadas de Yuga obtiveram a vantagem, empurrando as de Sekhmet até chegar ao ponto de atingi-la certeiramente e fazê-la colidir com uma loja de joias que explodira com o abalo, afetando dois carros que estavam próximos que praticamente voaram até capotarem repetidas vezes.

O incêndio na loja alastrou-se pelas proximidades, alertando as pessoas ali por perto a solicitarem a emergência imediatamente.

Quando pensou que havia terminado, Yuga detectou, extra-sensorialmente, um objeto vindo em sua direção... pelos céus. Ainda sentia a energia de Sekhmet enfraquecida, mas passou a se concentrar no tal objeto que tinha ele em sua mira

Virou-se com pressa, esticando o braço direito e erguendo-o um pouco com a palma da mão aberta contra um míssil disparado por um avião que sobrevoava pela região.

A colisão evocou uma explosão arrebatadora que gerou um impulso pelos arredores, fazendo vidraças de prédios localizados a um raio de dois quilômetros estilhaçarem simultaneamente. Pessoas continuavam correndo e lutando por suas vidas para se protegerem, ´tendo uma boa parcela ficando mais calma graças à chegada do Exército Britânico com sua intervenção rigorosa.

Em velocidade aterradora, Yuga absorvera todo o fogo gerado pela explosão, com os olhos fechados, mas ainda deixando resquícios de brasas espalhados à sua volta. Ao abrir os olhos, sentiu o poder ser reabastecido em toda sua plenitude.

Cerca de oito carros militares se avizinhavam, com potentes metralhadoras acopladas na parte superior. O comandante do grupo - um homem troncudo e de rosto rechonchudo com barba por fazer - bradou sua voz autoritária enquanto alguns soldados desciam dos veículos e se juntavam fortemente armados.

- Fique onde está! Não se mexa! Um movimento brusco e abriremos fogo!

Yuga, indiferente à mobilização, voltou-se para o grupo que lhe apontavam as armas. Percebeu que do outro lado da rua vinham em torno de três tanques super-pesados, com suas esteiras barulhentas passando pelo asfalto e canhões direcionados ao alvo.

- Diga para seus lacaios não chegarem muito perto, quem sabe assim eu os deixe viver por mais... algumas horas. - dissera o deus solar, zombeteiro. O comandante descera do carro principal, andando para falar diretamente com o causador daquele rebuliço.

- Rosie Campbell, as leituras de EMF implicaram considera-la uma anomalia classe Alfa, e além de receber a classificação terá o direito de permanecer em silêncio até que sua sentença seja declarada pelos crimes de genocídio e terrorismo.

- Não vão nem perguntar porque meu cabelo mudou? - questionou ele, enrolando alguns fios no dedo indicador esquerdo, assumindo uma direção conveniente e visando algum tipo de saída que lhe beneficie em curto prazo ao se passar pela jovem, em uma atitude ousada e certamente presunçosa.

- Como se atreve a zombar de nós só porque é uma aberração com enorme poder destrutivo? - perguntou o comandante, exaltado.

Sem responder a pergunta, o deus estalara os dedos da mão direita, teletransportando para perto um soldado aleatório da equipe de força-tarefa móvel. O rapaz ficara sem ação ao perceber ter se deslocado de um ponto ao outro em velocidade impressionante.

- Como eu vim parar...

Yuga não permitiu que concluísse a pergunta ao pega-lo pelo pescoço com a mão direita e levanta-lo.

- Estão afim de uma barganha?

- Socorro... - dizia o soldado, sentindo-se asfixiado pela imensa força aplicada.

- Ponha-o no chão agora ou seremos obrigado a atirar! - vociferou um soldado, com todos os outros ganhando mais proximidade.

- O que você quer? - perguntou o comandante, recebendo olhares de estranheza ao concordar com a negociação.

- A localização do meu confinamento. - disse Yuga, incutindo mais força no aperto - A meditação é um caminho seguro para o fortalecimento da mente e do corpo.

- Acha que vai para um clube de campistas? - indagou o comandante, franzindo o cenho - É a cela de contenção revolucionária que vai fazê-la sentir uma dor a ponto de desejar ter morrido. Com placas geradoras de energia eletrizadas em mais de 2.000 volts.

- Serão as melhores férias que alguém como eu poderia merecer. - retrucou o deus solar, irônico.

- Então, se concorda em vir conosco, cumpra sua parte. - ordenou o comandante, severo no tom - Ponha-o no chão, inteiro!

Um sorriso de escárnio foi tracejado na face da recém odiável Rosie Campbell.

Em um golpe surpresa e traiçoeiro, o deus solar quebrara os ossos do pescoço do soldado com a mão que o segurava, em seguida largando-o no chão como papel descartável.

O comandante, em lamento, fechou os olhos por um segundo.

- Você disse inteiro. - disse Yuga, logo mostrando-se rendido ao poder do Exército Britânico ao juntar os pulsos - Não mencionou vivo. Vocês tem a mim agora, agradeçam minha generosidade.

- O General Holt terá uma longa conversa com a senhorita. - disse o comandante, algemando-o - Vamos destrinchar sua natureza sobre-humana... e depois garantir que coisas como você sejam banidas do convívio em sociedade.

- Como se esse mundo os pertencesse. - rebateu Yuga, mantendo o sorriso sacana.

Por um instante, o comandante o encarou profundamente, para depois puxa-lo com força.

- Venha. - disse, com rigor.

Camuflada pela fumaça que expelia da loja destruída ainda em chamas, à alguns metros de distância, Sekhmet observava atenciosamente aquele que um dia amou para uma vida eterna ser levado pelos soldados que acreditavam estarem prendendo Rosie.

Os olhos azuis claro realçavam-se com a expressão séria indicando que teimaria no objetivo de reaver o deus honesto e justo que acreditava existir em algum lugar por baixo daquela casca refém.

                                                                                          ***

QG Alternativo do Exército Britânico 

Um gole do uísque dado de uma única vez pelo General Holt seria o primeiro de vários após o que se passara horas antes. O chefe militar, visivelmente cabisbaixo, parou a mão que segurava o copo que iria depositar sobre a mesa, novamente repensando sobre o complexo de inferioridade que recaíra sobre sua mente em relação aos acontecimentos aterrorizantes registrados. Lhe corroía a sensação de que o mundo estava prestes a mudar para uma era de medo e encolhimento ante ao mal súbito que apareceu como se o universo estivesse o testando até onde iria sua autoridade e a sua firmeza quanto aos dejetos anormais que escorriam direto ao mundo que considerava bonito com as leis e ordens mantidas. A adaptatividade da espécie humana a esse novo mundo era o ponto mais crucial.

A mão que segurava o copo tremia.

"Estou me testando... ao mesmo tempo em que me açoito com esse... temor. Por que? Por que não consigo ficar satisfeito com minha humanidade frágil? Por que... Por que eu sinto tanto medo?"

Enfurecido, arremessara o copo em direção à parede próxima à porta do gabinete.

Uma mão o pegara de forma certeira antes que se espatifasse.

Holt, estupefato e boquiaberto, foi levantando-se devagar sem ter como responder àquela rapidez.

- Como entrou aqui? - perguntou ele, o tom de voz elevado.

Áker ficara "estudando" o copo por alguns segundos até erguer o olhar para o General.

- Sua raiva é injustificável. - retrucou o arauto, devolvendo o copo ao joga-lo à Holt que o pegara por um triz. - Mas estou aqui para ameniza-la. - deu alguns passos na direção dele - Nunca fomos apresentados formalmente, me chamo Á...

- Parado aí! - disse Holt, sacando um revólver e apontando-o para o arauto - Se for um deles...

- Na verdade, eu sou. - respondeu Áker, parando - Mas saiba que tomei a iniciativa por independência. Eu fui encarregado de avisar à Rosie Campbell de seu destino e fui longe demais, talvez... eu tenha desenvolvido uma espécie de afeição que não sinto vergonha de ter. Os humanos me mostraram mais do que apenas seus instintos enraizados. Me mostraram o propósito real da vida e o quanto vale a pena lutar por ele, não importa o que aconteça.

A expressão de Holt ainda exibia irredutibilidade.

- Então foi para isso que veio? - indagou ele, mantendo a arma mirada - Dizer o quanto ama a humanidade para tentar provar que é uma exceção à regra? Me poupe, eu não nasci ontem!

- Por favor, General, escute. - pediu Áker, o olhar pacífico - Sei que está perturbado com os últimos eventos que envolvem Rosie... Mas há uma razão contundente que, no momento, é demais para que assimile.

- Vocês são cheios de segredos! - reclamou Holt, a raiva sendo indicada pela veia saltada na testa suada - Mas não me importo. - passou a língua entre os lábios - Chegará um dia em que vou idealizar uma maneira de confrontar, banir e, se possível, exterminar qualquer ameaça que fuja à compreensão humana. Se uma bala disparada dessa arma ao menos o ferisse gravemente... - disse, baixando o revólver para a mesa, desistindo do ato estúpido - Como disse mesmo que se chamava?

- Áker. - disse o arauto - Ex-subordinado de Sekhmet. Lamento pelos tormentos que ela lhe causou...

- Se refere a isto? - indagou Holt, apontando para o seu tapa-olho - Não é nada comparado a toda a humilhação que tive que me permitir sofrer se eu quisesse confirmar a impressão negativa que ela tinha da senhorita Campbell. Agora que a verdade veio à tona da pior forma possível... - levantou uma sobrancelha ainda furioso - Onde a vadia se meteu?

- Essa pergunta nos leva direto ao ponto-chave do que gostaria de discutir com o senhor?

- Não seja ridículo. - retrucou Holt, pegando a garrafa do uísque e dando um gole pelo boca dela - Não precisa me dirigir a palavra com tanta formalidade. Você é um deus. - olhou-o da cabeça aos pés. - Mesmo sob a pele de um só homem tem a força de um milhão.

- Não sou um deus. - afirmou Áker, olhando-o fixamente - Agora não passo de um desajustado que se designou a proteger um mundo que repele tudo o que lhe escapa ao senso comum. - fez uma pausa, aproximando-se um pouco mais do General - E o que ocorreu hoje me deu a oportunidade de começar essa missão.

- Do que está falando? - perguntou Holt, franzindo o cenho, andando meio cambaleante até o arauto.

- Sekhmet... e Rosie... se enfrentaram no centro de Liverpool há pouco menos de meia hora. Muita destruição. E muitos olhares curiosos, aterrorizados e confusos. Sem mortes. Concordamos em intervir depois de uma reunião bastante concentrada. Diante de todo esse baque que sofreram... não consigo vê-los seguindo em frente sabendo que uma fagulha da verdade até então oculta está gravada nelas como marcas de feridas que talvez continuem doendo. Poucos de vocês estão prontos para essa verdade.

- E o que decidiram fazer? - perguntou o General, completamente atento.

- Limpar suas mentes. - respondeu Áker, andando pela sala vagarosamente com as mãos para trás - Apagar cada resquício absorvido desse confronto. Começará em poucos dias, assim que os danos forem consertados.

Uma ponta de compreensão surgira na mente do General, fazendo-o avaliar a situação minimamente.

- Você também... Quero dizer... Eu também terei minha memória deletada?

- Não exatamente... - disse Áker, fazendo um certo suspense, logo virando-se - Embora seja difícil que se adapte à essas novas condições em pouco tempo, vai conseguir encara-las quando menos perceber e só quando estiver preparado. - fez uma pausa, chegando mais perto e erguendo sua mão direita - Hector precisa estar ao lado de Rosie quando tudo isso acabar. E como eu soube que ainda guarda ressentimentos sobre o que ele é e o que foi forçado a fazer.... - direcionou rapidamente a mão à têmpora esquerda do General a fim de apagar das entranhas da memória do chefe militar qualquer lembrança relacionada às evidências colhidas do assassinato dos tios de Edgar ocorrido após a primeira transformação do caçador em licantropo meta-simbionte.

Holt baixara a cabeça gemendo devido ao forte efeito do poder de Áker. O arauto, satisfeito, respirou fundo, mantendo-se ciente de seu propósito de vida dali em diante.

                                                                                      ***

Área florestal de Raizenbool - 19h30

No Casarão, Hector e Lester aguardavam pacientes por novidades, fossem elas agradáveis ou terrivelmente desastrosas. O caçador-detetive estava reflexivo olhando pela janela, de braços cruzados e com o ombro encostado na parede, a luz do luar banhando-o. Já o caçador estrategista estava sentado no sofá com a perna esquerda sobre a coxa direita, a luz amarela do abajur pegando metade de seu corpo. Por um momento se pegou a fitar o companheiro como se tivesse uma curiosidade pedindo para ser respondida.

- Só agora que percebi... - disse ele, estreitando os olhos - ... Você enjaulou mesmo a fera, de verdade. Pra estar contemplando a lua cheia com toda essa calma, deve ter exigido muita força de si. - fez uma pausa, mordendo os lábios e olhando para o chão - O Adam deve ter surtado quando te viu transformado... não foi?

- Olha, Lester...  - disse Hector, passando uma mão no rosto em sinal de cansaço - Não quero falar sobre isso agora.

- Ah, tudo bem. - aquiesceu Lester, se levantando do sofá - Com agora você quer dizer... nunca. Certo? OK, entendi. - deu uma batidinhas na calça, logo suspirando longamente - Porque temos coisas mais importantes a resolver.

- O que você quer que eu diga? - perguntou Hector, virando-se para ele, aparentando estar aborrecido - Quer  que eu me transforme para saciar sua curiosidade como o jeito fácil de enterrar esse assunto?

- Ei, ei, calma aí. - disse o caçador, erguendo de leve as duas mãos, incomodado - Não vá descontando essa raiva pra cima de mim. Porque pra ser honesto eu também sinto que perdi a Rosie. Tudo bem que não éramos muito chegados, mas... - demonstrou sensibilidade - Não tô afim de parar. Disse que não ia desistir e vou manter essa promessa até o fim. - falou, cerrando um punho.

- Está bem. - disse Hector, mais calmo, desviando os olhos para um canto - Me desculpe, eu...

- Não, sem mágoa, eu te entendo perfeitamente. - disse Lester, compreensivo - Só... vamos continuar esperando o barba cinza ou o ave de rapina voltar.

Poucos segundos depois de Lester menciona-los, um deles surgira no meio da sala em teleporte.

Hector alertou-se e se aproximou rápido.

- Údon.

- Bem-vindo de volta. Calças novas? - indagou Lester, apontando, em tom irônico e brincalhão com o arqueu.

- Ha-ha. - riu Údon forçadamente para o caçador, desfazendo o sorriso logo em seguida - Voltei para ficar dessa vez. Não que signifique que pretendi fugir com Alexia para bem distante, meu nome está na lista negra de um demiurgo e já ficou bem provado que não sou tão bom como fugitivo quanto sou em rabiscar sigilos.

- E quanto a Alexia? - perguntou Hector, intrigado - Imaginei que viria na sua companhia.

- Deixei que ela passasse a noite na minha casa para reorganizar as ideias. Tivemos uma conversa bastante aprofundada. - disse Údon, em seguida andando devagar pela sala juntando as mãos e esfregando-as suavemente - Ela ficará bem, desde que Yuga não tenha um surto psicótico e a transforme em poeira cósmica pelas minhas costas.

- Posso assegurar que isso não tem a menor chance de acontecer. - dissera Áker, aparecendo repentinamente próximo a uma das janelas como um vulto. Foi andando até o trio.

- Isso aqui ainda vai virar a casa da mãe Joana. - disse Lester, em tom baixo, referenciando o quanto os teleportes inesperados o incomodavam.

- Áker, o que quer dizer? - perguntou Hector, curioso.

- Ele aceitou a rendição de uma forma muito estranha. - disse o arauto, olhando para os aliados - Não sei se souberam, mas... Sekhmet o confrontou em Liverpool publicamente, houve intervenção do Exército Britânico que vai ajudar a apagar os rastros de destruição.

- Eles lutaram!? - questionou Hector, espantado - Mas por que Sekhmet acreditaria que tivesse alguma chance de vencer?

- Atrasa-lo, talvez. - especulou Áker, dando de ombros - Ou, sendo ingênua, esperando que o amuleto drenasse toda a energia insistindo no plano de salva-lo.

- Que imbecil. - debochou Údon sorrindo de canto - À esta altura, deve estar rastejando feito uma barata com sua casca mutilada.

- Receio que não. - retrucou Áker, voltando-se para o arqueu - Aquele receptáculo é o seu passe livre para interagir com o General Holt. Se gravemente ferida, vai se regenerar em poucos dias. Caso o contrário, pode ter conseguido escapar bolando alguma outra estratégia com sua tropa. E é nesta hipótese em que confio.

- Então Yuga se rendeu ao Exército. Como isso aconteceu? - perguntou Hector.

- Obviamente, acreditam ser Rosie. - disse Áker - Teoricamente, ele pode estar desejando competir com Abamanu sobre quem governará o mundo, querendo fazer do QG o seu palácio. Só está esperando uma brecha.

- Que pena, pois isso vai demorar. - disse Údon, fazendo com que olhares estranhos o encarassem - Estava até pensando em estabelecer contato para reconsiderar o acordo que ele selou com Hector.

- Espere aí, Údon, o que está planejando? - perguntou Hector, olhando-o suspeitoso.

- Ainda temos o exorcismo, esqueceu? - disse Lester, não esperando algo benéfico do novo plano.

- E vamos utiliza-lo, mas desta vez será por definitivo. - disse Údon, esbanjando uma surpreendente confiança - Afinal, porque o desafixarmos de Rosie e esperar que ele volte só para enfrentar Abamanu... quando podemos aprisiona-los para sempre?

- Agora ficou interessante. - disse Lester, cruzando os braços. - Nos conta mais.

- Há uma dimensão, assim como o Salão das Duas Verdades, fora do tempo e espaço. Mais do que isso, nela não se propaga som, não há gravidade...

- Espera, você tá considerando manda-los para um tipo de espaço sideral? - perguntou Lester, duvidando com certa confusão.

- Me deixe terminar e saberá. - rebateu Údon, arqueando as sobrancelhas - É uma prisão cuja abertura é solicitada quando deuses de qualquer escalão cometem atos que vão contra as leis universais. Conhecida como o Vazio, foi a medida radical determinada por unanimidade no Conselho Geral. Abamanu e Yuga feriram estas leis, cuja violação prevê exatamente essa punição.

- Desculpe, Údon, não vou ser parte disso. - disse Áker, mostrando-se contrário ao plano - Não estamos em posição de julgarmos. Pode haver consequências se agirmos deliberadamente.

- Você tem uma ideia melhor? - retrucou o arqueu, levantando uma sobrancelha - Continuando... O portal só pode ser aberto a cada 1.000 anos e a chave para abri-lo só pode ser obtida se 7 armas divinas do mesmo panteão forem reunidas e banhadas com o sangue de um mortal próximo a um deus.

- Temos o mago do tempo. - disse Áker, ainda aparentando estar hesitando contra o plano.

Hector sentiu o desânimo tomar conta dele amargamente.

- Mas Charlie está confinado sabe-se lá em qual ponto do palácio de Abamanu. Teremos mais trabalho, gastaremos toda a energia para ser investida nesse plano tentando uma invasão que pode acarretar em sérios problemas. Lembrem-se que os coletores estão aliados a ele e podem ser usados como bucha de canhão para nos encurralar em relação às armas e os soldados de Abamanu para barrar o local onde está a prisão de Charlie.

- Eu tive a ideia do acordo ser restaurado, mas não disse que Yuga deveria saber. - declarou Údon, mantendo-se seguro com a aposta - É aí que você entra.

- Não está sugerindo... - temeu Hector, fechando os olhos aturdido com o que estava prestes a ouvir.

- Sim, você vai. - disse arqueu, o tom de voz convencedor - É o único que pode fazê-lo. Sem mago do tempo, sem plano. Com seu pior inimigo detendo um poder incontrolável, vai se sentir entre a cruz e a espada e nem é preciso prever qual opção ele achar conveniente, ainda que de má vontade.

- Por mais que eu odeie admitir... - disse Áker, a inquietação querendo domina-lo - ... ele tem razão. Não existe outra saída senão arriscar esta.

O caçador tinha de aceitar que encontrava-se em um beco sem rumo.

- Farei por Rosie. - declarou Hector, a voz firme, assentindo positivamente.

Údon concordara.

- Você dirá que nosso único alvo é Yuga, o convencendo de que sua influência pode arruinar com seus planos, daí você explica os detalhes do nosso plano. - olhou para Lester e Áker com certa expectativa - Com essas caras vocês com certeza não estão preparados para ter o Cavaleiro da Noite Eterna como improvável aliado.

- E quando ele descobrir que passamos a perna nele? - perguntou Lester, temeroso.

- Ah, meus amigos... - falou Údon, estranhamente auto-confiante na visão dos companheiros - Quando menos ele perceber, já vai estar bem aqui... - tocou seu indicador direito na palma esquerda virada para cima, dando um sibilino sorriso.

                                                                                       ***

QG Alternativo do Exército Britânico 

No corredor de paredes cinzentas e iluminado por boas lâmpadas fluorescentes que dava até a sala de controle de acesso restrito, dois soldados bateram continência ao General Holt que se aproximava para fazer sua análise do panorama geral da situação.

- Olá, General. - disse um deles, com orgulho.

Holt fez que sim com a cabeça, a expressão séria.

- Qual é o status?

Ambos os subordinados entreolharam-se como se sentissem obrigados a decidir quem relataria.

- Indefinível, senhor. - respondeu o segundo - Desde que a cela foi trancada ela entrou em um aparente estado meditativo que não respondeu a nenhum estímulo externo. - fez uma pausa, meio relutante ao engolir a saliva - E está... flutuando.

Sem surpresa esboçada, Holt captou a mensagem e, em silêncio, andou para abrir a porta para conferir com seus próprios olhos e tentar extrair uma conclusão.

A sala de controle deveria permanecer escura. A única fonte de luz encontrava-se acima da cadeira do mediador de experiência que se encarregava de acionar todo e qualquer funcionamento que a cela de contenção disponibilizasse para determinados fins. À frente do painel estava uma ampla vidraça reforçada que oferecia uma visão geral da cela que era coberta por placas metálicas verticalmente retangulares, com altura de mais de 8 metros.

A atenção do General focou-se somente no corpo de Rosie Campbell pairando no ar em posição de meio lótus com os olhos fechados.

A cor do cabelo alterada foi a menor das dúvidas.

Com o olho estreitado, o General ficou a observar, intrigado e divagante, mergulhando fundo em um oceano de dúvidas que a qualquer instante poderia tornar-se uma forte correnteza e arrasta-lo para uma vala onde encontraria um fim que detestava imaginar.

"O que você é... Rosie Campbell?"


                                                                                CONTINUA...



*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos. 


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