Frank - O Caçador #8: Mente sã, Corpo são"


O odor fétido daquela fumaça amarelada ainda maltratava as narinas daquela mulher encurralada.

As brancas mãos gélidas, trêmulas e molhadas de suor frio tateando desajeitadamente a parede - à sua esquerda - do corredor semi-escuro. Seu nome era Olivia. O espaço ao seu redor parecia inclinar-se em vários lados, dando a impressão de estar subindo, caindo ou descendo. Ao menos era o que sua visão distorcida forçava-a a lidar. Seus molhados cabelos castanhos caíam-lhe sobre os ombros e alguns fios grudavam no suor da testa e do restante do seu branco rosto jovial. Sua respiração ofegante piorava a cada soluço de choro e lágrima caída. Sua mente não parava de repetir: "Alguém faz isso parar... alguém faz isso parar, por favor... por favor... por favor... alguém...".

Quando teve a impressão de reaver o equilíbrio, deu uns passos com segurança acelerando-os em seguida, quase sem precisar depender da parede para se apoiar. Sua visão periférica do lado direito a alertou automaticamente. Naquele lado estava uma mulher agachada cuja face era decrépita, cinzenta e apresentava órbitas oculares vazias com uma escuridão que se alargava dando impressão de serem maiores, além dos cabelos pretos esbagaçados e envelhecidos. Da sua boca golfava sangue fresco e pegajoso. Nas mãos segurava uma amálgama de órgãos vitais, sem ter como Olivia discernir se eram corações, rins ou fígados. Ela mostrava sua "coleção" como quem quisesse oferecer um presente, abrindo a boca que expelia mais sangue rubro.

Olivia gritara alto, correndo e afastando seu olhar daquela senhora assombrosa. Porém, foi barrada por uma aranha caranguejeira gigante cujas patas prendiam no teto, vendo os oito olhos a encararem fixamente. Ajoelhou-se chorando copiosamente com os olhos apertados, rendida ao seu desespero. Viu como única saída andar como um cão assustado, mantendo sua visão fechada e o pranto.

Ao bater a cabeça numa porta, reconheceu ser o banheiro. Ergueu a mão direita à maçaneta, abrindo.

Trancou-se sem esperar que alguém fosse resgata-la daquele pesadelo vívido. Acendera a luz, logo correndo a pia tirar as sanguessugas que mordiam suas mãos. Os bichinhos pretos e moles caíam no fundo através da água corrente, Olivia tirava-os um por um. "Eu vou te pegar... É por sua causa que ele está lá... ", pensou enquanto esfregava bem forte as mãos com sabão, depois dando uma olhada rápida no espelho. Seu rosto parecia o de alguém que não tinha dormido por semanas.

Quando voltou seus olhos para a pia, o baque foi instantâneo.

A água adquiriu uma coloração verde meio amarelado e um caráter efervescente. Ao remover suas mãos imediatamente, as lágrimas voltaram com nova força.

Olivia recuava alguns passos enquanto horrorizava-se com a carne de suas mãos profundamente corroída até os ossos da ponta dos dedos ficarem à mostra.

Emitiu um novo e intenso grito apavorado que ressoou até a rua escura.

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CAPÍTULO 08: MENTE SÃ, CORPO SÃO


A casa de Olivia estava ocupada de vários policiais que passavam o pente fino nos cômodos em uma busca esmerada por sinais do provável invasor que, segundo a vítima, a atacou borrifando um gás pútrido e amarelo de suas mãos que pareciam ter buracos no centro das palmas.

Os detalhes do caso estavam prestes a serem anotados por Frank que entrava de "penetra" com um olhar curioso, já sacando seu inseparável distintivo. Na sala de estar apresentou-se a um policial.

- Olá, DPDC. - disse, exibindo a insígnia. O policial assentiu amigavelmente, virando-se á ele. - Alguma outra informação que já não tenha sido repassada ao departamento sobre esse caso?

- Bem, ela se chama Olivia Madson - disse o policial checando o relatório preliminar -, ex-mãe solteira, batalhou pela guarda do filho e perdeu, abusando de álcool e drogas nesse meio tempo em que permaneceu reclusa. A propósito, deve ter visto uma van branca sair daqui agora há pouco. Certo? - indagou ele, olhando como se quisesse que o detetive confirmasse.

- Acho que cruzei com uma na rua... - disse Frank, o polegar esquerdo para trás, pensando no que viu - Espera, eu reconheceria aquele símbolo em qualquer lugar, foi de relance, mas deu pra captar. Aquele carro é do sanatório Eisenhauer. - falou, surpreso.

- Exatamente. - assentiu o policial - Como se não bastasse a ausência do filho, o irmão teve um surto de esquizofrenia, precisou ser internado às pressas. Depois de tanto receio, os tios acharam que a hora certa dele se tratar havia chegado. Isso a abalou, o que, segundo especialistas, pode ter desencadeado essa loucura que chegou ao limite. Não duvido nada vindo de psiquiatras e de loucos.

- Foi nesse mesmo sanatório...

- Que o irmão dela se suicidou. - disparou o policial, fitando o detetive com suspeita.

- Ele também?! - surpreendeu-se Frank - Foi um deles?

- Pior que ela ainda não sabe. É melhor assim, na minha opinião.

- Essa onda de suicídios... afetar até membros da família...

- Pelo que soubemos, só Olivia, única parente de um dos pacientes suicidas, foi afetada por esse maluco que solta gases alucinógenos. Como uma coisa que saiu de um lugar com segurança reforçada 24 horas vem parar numa casa justamente de um dos que se mataram? Tem muita coisa nessa história que não tá batendo. - confessou o policial, partilhando suas suspeitas.

"Pra mim não resta nenhuma dúvida.", pensou Frank, cogitando ligar para Carrie.

- A Olivia alucinou na noite de ontem. Os suicídios ocorreram há 5 dias. É um espaço de tempo curto demais pra deixar passar. - disse o detetive.

- O que pretende fazer pra solucionar? - perguntou o policial.

- Vou dar o meu jeito. - disse ele, vago - De repente, essas vítimas podem ter algo em comum. O idiota que fez isso talvez tenha um comparsa que esteja metido num plano de vingança.

- O Eisenhauer tem um banco de dados completo sobre eles, obviamente vai ter algo sobre o passado de cada um deles nas fichas. - informou o policial, dando um voto de confiança à investigação isolada de Frank.

- OK, assim espero. - disse ele, estendendo a mão direita para um aperto amigável - Muito obrigado pela atenção.

- Eu quem agradeço. - disse o policial, sorrindo de leve - Boa sorte na coleta de pistas.

Perto da soleira da porta foi para onde o detetive se enveredou para discretamente telefonar para Carrie. Deu uma rápida olhadela para trás a fim de se certificar de não estar sendo notado. Colocara no viva-voz em um volume moderado.

- Carrie? Tá fazendo o quê?

- Jogando Pac-Man enquanto as novidades não chegam. - disse ela, claramente mentindo - Brincadeira. Meus irmãos sempre me zoavam por eu sempre perder, então passei a odiar esse jogo tanto quanto odeio aquela tiração de sarro. E aí, o que conseguiu?

- A Olivia era parente de um dos suicidas. Só preciso saber a ordem das mortes, logo se o cara, o irmão dela, tiver sido o último, levando em conta o período de tempo entre as mortes e o ataque do Zeta contra ela... aí vamos confirmar que o desgraçado escapou só parar alvejar pessoas ligadas às suas vítimas.

- Esses carinhas são cheios de truques na manga. - disse Carrie, desconfiada - Mas como um Zeta escaparia? O sanatório tem segurança de fazer inveja a muitos presídios. Não podem ser dois? E por que dois Zetas estariam trabalhando juntos? Vo-você confirmou várias vezes, eles agem individualmente, não é possível que... ai, estou me sentindo cansada, não tô pra teorias hoje.

- As respostas pra essas e mais perguntas eu só vou conseguir se você fisgar um encaminhamento. - disse Frank, não pensando em outra coisa senão em partir para a ação com aquele plano em mente.

- Encaminhamento pra quê? - perguntou Carrie, o tom de apreensão.

- Olha... - disse Frank, dando uma risadinha rápida e nervosa - ... vai parecer loucura o que vou te dizer agora. Mas já aviso que esse é o único jeito.

                                                                                      ***

Hospital Psiquiátrico Eisenhauer 

Um médico com barba cinzenta relativamente volumosa em sua robusta face, e que usava óculos de alto grau, avaliava o que estava anotando sobre seu mais novo paciente que ali estava à sua frente.

- Muito bem... - disse ele, tirando os óculos e fitando-o com seriedade - Quer dizer então que Danverous City é uma cidade infestada de coisas sobrenaturais?

- Exato, senhor. - disse Frank, seguro na cadeira do consultório em boa postura - E-eu... eu gosto disso, eu adoro esse trabalho secreto... só que já tá começando a... sabe... - fez uma expressão de incômodo - ... começando a fazer mais mal do que bem. Noites mal dormidas... Sustos idiotas. Tipo, eu mal posso olhar pra minha sombra direito que já vejo um ser asqueroso me perseguindo querendo roubar meus rins, não sei como eu sei disso, só sei que eu sinto que ele quer e... ahn... - baixou a cabeça, fingindo não estar à vontade.

- Me fale sobre sua vida dupla. Especificamente, seu trabalho como... caçador de monstros. - pediu o psiquiatra, olhando-o com estudo.

- Ah sim, não chega a ser recompensador, mas agora eu sinto que não dá mais. - disse, inclinando-se para ele - Não recomendo à ninguém. A verdade está lá fora, mas ela é terrível. - falou em tom baixo.

- Então os mistérios que soluciona possuem uma base paranormal? Você tem plena certeza disso?

- Certeza? O que é isso? - indagou ele, rindo de si mesmo - Eu duvido de tudo, doutor. Não sei mais o que se passa direito na minha mente. É um caminho sem volta. Ontem mesmo eu fiquei fora de mim, não sabia se me matava ou matava alguém, não importasse quem eu achasse na rua, por exemplo... err... um cachorro, um cachorrinho... se eu visse um, eu diria - expressou revolta quando apontou para o nada assustando o doutor - "Ah-há, vai ser você, tem um demônio em você seu pulguento!" E é isso... Esse trabalho virou uma droga e drogas matam... não é?

- De fato. - concordou o doutor, fazendo anotações.

- Tudo demais ferra com tudo. Se torna... um veneno. - disse Frank, tentando fazer da sua atuação a mais convincente possível - Por favor, doutor - fingiu um tom choroso -, não aguento mais... o mundo vai acabar.

- O mundo vai acabar? Presumo que tenha relação com sua vida oculta. - disse o médico, interessado.

- Não! - disse Frank, levantando-se depressa e tocando nos ombros do doutor com as duas mãos - Não só a minha, é a de todo mundo! A do senhor também, a... a... da sua família... são esses terremotos, tudo isso aí é um sinal do apocalipse, doutor! O senhor tem que me salvar, urgente!

- Senhor Montgrow, é melhor se acalmar senão terei de chamar os enfermeiros. - ponderou ele, severo. - Você criou um universo de fantasia na sua mente e se prendeu em si mesmo. Posso garantir que aplicaremos os métodos mais eficientes para tirarmos você dessa bolha de ilusão. Agora fique calmo e relaxe...

- Tudo bem, tá legal... - disse Frank, voltando a sentar, pigarreando - Vou tomar remédios... pra doidos?

- Eu considero seu problema como um caso grave de síndrome do Messias. - disse o doutor, enfático.

- O... O que é que é isso? - perguntou Frank, estranhando.

- Vejo que tem uma vontade incontrolável de salvar o mundo desses monstros que vê. Acredita piamente que foi destinado à ser o protetor da humanidade contra forças ocultas que estão abaixo de nós, são elas as causadoras dos tremores na sua perspectiva.

O detetive o fitou com um olhar estático e vago. Depois formou um sorriso de satisfação.

- O senhor é demais, doutor. Eu sou mesmo um herói. Herói não... Super-herói. Sempre fui meio deslocado e ninguém confiava em mim, achei que eu fosse adotado, e de uns anos pra cá essa teoria fez mais sentido. Fui enviado por aliens a proteger esse mundo, doutor, e-eu... - transpareceu um semblante maravilhado - ... eu sou especial, eu nasci para salvar as pessoas desses monstros que só eu vejo, mas mesmo assim quero me curar disso porque do contrário eu nem estaria aqui.

- Ah certamente não. - disse o doutor, arqueando as sobrancelhas e balançando a cabeça com um não lentamente.

- Mas e então? Quando começa minha estadia?

- Hoje mesmo. - disparou o doutor, carimbando o papel de diagnóstico. - Vou ligar para sua irmã Carrie e pedir autorização. Sua ficha vai estar concluída até o final do dia. É óbvio que sofre de um quadro praticamente maníaco de paranoia e síndrome de Messias. Somado ao fato de quase ter me atacado e de dizer ter pensado em atacar outras pessoas, não posso categoriza-lo como nível intermediário. Em outras palavras, sua "vida dupla" - fez sinal com aspas - ocasionou esse efeito nocivo à sua condição mental gradativamente prejudicando sua distinção do que é real ou não.

- Eu sou perigoso, doutor? O senhor me acha perigoso? - perguntou Frank, nervoso.

- Você apertou meus ombros como se quisesse quebra-los. Ainda tem dúvidas?

- Ótimo... quero dizer, nossa, eu me sinto péssimo. - disse ele, sem jeito. Olhou de repente para as paredes brancas do consultório com um sorriso fechado - Quer saber? Eu acho que vou gostar daqui.

                                                                                  ***

Departamento Policial de Danverous City

Abrindo a porta da dispensa - um compartimento pequeno onde existiam armários apropriados para cada tipo de comida -, Carrie arregalou o olhar ao se deparar com uma surpresa que não lhe dizia uma coincidência positiva.

Megan estava saboreando um bombom de chocolate que retirara do armário de congelados. Ao perceber a presença da assistente de Frank, sua postura tornou-se menos tranquila. A secretária jogou o papel amassado numa lixeira de pedal de alumínio e virou-se para ela com certa altivez detectada facilmente pelo queixo levantado.

- Err... Não esperava encontra-la aqui tão cedo. - disse Carrie, fingindo um sorriso. Andou em direção a um dos armários para pegar um saco com amendoins. O local inteiro era revestido de cinza escuro e os armários constituídos de metal reforçado.

A insegurança de Carrie não escapou aos olhos bem perceptores de Megan.

- O Frank não veio hoje? Qual a desculpa dessa vez?

- Eu não acho... - disse Carrie, engolindo uns amendoins, de costas à ela - ... que isso seja da sua conta. Mas respeitando o seu interesse especial nele... diria que ele está numa missão confidencial.

- Confidencial, eu gosto dessa palavra. - disse Megan, aproximando-se dela para um entrosamento - Sabe, eu não trabalho aqui tanto tempo quanto você, então acho que fiz mal em perguntar.

- Que nada. - disse Carrie, virando-se para ela, com a boca mastigando - Você já é de casa, o diretor já te considera da família DPDC. Está em um cargo superior ao meu, talvez tenha liberdade em querer saber de coisas que não lhe dizem respeito. Sou um péssimo exemplo. Inconveniência às vezes faz parte do meu trabalho, por isso não estou mais certa do que você.

- Realmente admite que o fato de eu assumir um cargo maior pressupõe melhor liberdade? - perguntou Megan, estreitando os olhos.

- Não que eu estivesse afirmando algo assim, mas... - disse Carrie, amassando a embalagem e jogando na lixeira à sua esquerda - ... faz sentido. Podíamos ser mais próximas, sabia? Mal nos falamos desde que nos conhecemos.

- Pois é, também concordo. - disse Megan, caminhando até a porta. No entanto, em vez de girar a maçaneta para sair, girou a tranca em sentido anti-horário. Ao virar-se novamente para Carrie, sentiu-se uma fortaleza intransponível. A assistente estava numa curtíssima distância da secretária, já que estava prestes a ir embora. Carrie deu mais dois passos adiante, mas Megan, de braços cruzados, barrou-a andando para o lado esquerdo. A assistente tentou ir pelo direito - o seu esquerdo - mas Megan insistiu em negar sua passagem.

- Quando eu disse sermos mais próximas quis dizer sermos amigas... - disse Carrie, o sorriso nervoso.

- Eu determino o futuro dessa amizade. Afinal, estou num cargo superior. - retrucou Megan, todo a amistosidade da sua voz desaparecendo e cedendo lugar à uma arrogância nojenta - Fica tranquila, Wood. Não é uma briguinha de egos que eu quero.

- E-então o que você quer de mim? - perguntou Carrie, afligindo-se - Qual o seu problema comigo? Não venha com papo furado pra cima de mim, tenho certeza que você tem alguma coisa contra mim, nem que seja um tiquinho só, mas sem dúvidas tem. Até trancou a porta. Achou que eu não ia perceber?

- É, deu pra ver que observa tão bem quanto tagarela. - o tom de Megan assumiu infâmia. - Quero jogar um jogo legal com você. Se chama: Falando francamente. Quer que eu jogue as cartas primeiro?

Àquela altura, a assistente sentiu uma torrente de arrepios na nuca, sentindo-se ameaçada com o modo adotado por sua colega de trabalho. "Ai, caramba... Ela me encurralou. O que eu faço? Vamos lá, Carrie, não deixa essa vadia falsiane cantar de galo com você, toma uma iniciativa...".

- Quem é você, afinal? - perguntou Carrie, franzindo o cenho, não mais disposta a fingimentos. - Tá, você quer as cartas, aqui vai a primeira: Você tem ligação com as Indústrias Crissman, vi a marca no seu pendrive. Essa não tem erro.

- Certa resposta. Minha vez. - disse Megan, não alterando sua expressão soberba - Vou ser muito bem paga se eu trouxer a sua cabeça ao meu chefe. Figurativamente, claro. - falou, dando de ombros.

A assistente, como que por instinto de sobrevivência, enfiou a mão no bolso do seu bem abotoado sobretudo cinza para pegar o celular e gritar por socorro. Megan agilmente a impediu, agarrando o antebraço direito de Carrie antes que ela retirasse o aparelho.

- Me larga. - disse ela, os dentes cerrados.

- Por que? Só estamos começando. - disse Megan, formando um sorriso de canto maquiavélico.

Neste instante, o celular de Carrie tocou. Megan a soltara devagar, voltando a cruzar os braços.

- Atende. Vai que seja o Frank. Só não fale do nosso joguinho.

Carrie lentamente foi levando o celular ao ouvido enquanto lançava um olhar de repulsa contra aquela misteriosa e prepotente mulher travestida de boa moça.

                                                                                       ***

Encenando uma desorientação para fazer de sua performance como louco um sucesso, Frank perambulava pelo espaço aberto, que era tanto um playground quanto um refeitório, com paredes e pisos em cerâmica quadriculado totalmente brancos. Sua veste consistia da mesma dos vários pacientes ao seu redor: Camisa de manga curta e calça comprida, ambas brancas, além dos sapatos pretos de borracha. Ao olhar descontroladamente para os arredores, o detetive se esforçou para não comprometer o disfarce prevendo uma adaptação conturbada. "Onde foi que amarrei meu bode?", pensou ele, desapontado com a situação ao assistir loucos fazendo "artes" que se esperavam deles, como um em cima da mesa usando uma bandeja de alumínio como guitarra em um show alucinante para seus companheiros e alguns ursinhos de pelúcia colocados em fileiras.

Esbarou de leve em um enfermeiro. Propositalmente, claro.

- Opa. - disse Frank, percebendo ao olha-lo - Quer dizer... Me desculpa. - arregalou os olhos - Não me joga na solitária, por favor.

O homem - um rapaz de rosto meio redondo, cabelo castanho e estatura mediana - sorriu quase querendo dar uma risada.

- Quê isso? De boa, novato. Não leva a gente a mal, somos um pouco rígidos mas sensatos. - disse ele, dando uma batidinha no ombro de Frank - Aí, vem cá... - aproximou-se - Melhor tomar cuidado.

- Está se referindo aos... aos outros ali? - perguntou Frank, fingindo não saber, olhando de soslaio para os demais pacientes que bagunçavam o refeitório com brincadeiras absurdas. - Pra mim são perigosos, olha como se movem...

- Eles são o menor do seus problemas. - garantiu o enfermeiro, revirando os olhos - Falo da coisa que aparentemente mora nos dutos de ventilação ou no almoxarifado.

- E por que tá falando isso logo pra mim? Sou um calouro na faculdade dos doidos.

- Você, pelo visto, vai receber o certificado de sanidade mais cedo que qualquer um aqui. - disse o enfermeiro, encarando-o confiante e um tanto suspeitoso - Estamos nos falando há mais de 30 segundos e não me atacou, hoje é meu dia de sorte então.

- Olha, amigo, me conta mais sobre essa coisa. É algum monstro?

- Não tenho certeza... - disse ele, pensativo, cofiando o queixo. Deu de ombros - Os caras viam coisas onde não tinham, apontavam para monstros invisíveis a nós e depois, cerca de poucas horas...  - usou o indicador direito "cortando" o pescoço para simbolizar o suicídio, fazendo um barulho de "creck" com a boca - Se mataram com o que encontravam pela frente ou o que tinham à disposição. Enforcamento e faca na jugular foram os mais comuns.

Frank assentiu, tomando a seriedade perante o caso. Depois lembrou que estava interpretando um "personagem" do qual não deveria fugir.

- Nenhum de vocês arriscaram investigar?

- E quem iria comprar a teoria do cara menos remunerado desse pardieiro? - questionou o enfermeiro, sentindo dó de si mesmo. - Só te avisei porque você me parece são demais para morrer num lugar como esse. Boa aparência nem sempre é sinônimo de boas intenções, mas você é fácil de ler nesse ponto. Minha dica é: Não se misture. Se você morrer, só vai ser mais um no necrotério de loucos e, como sempre, não vou ligar. Todos aqui estão condenados ao abismo sem fundo da loucura. Faça com que seja diferente com você, prove a eles que estão errados ou morra tentando. É assim que a banda toca por aqui. - disse ele, logo batendo de leve no ombro de Frank novamente e andando.

Aquelas palavras fizeram o detetive imergir em reflexões profundas sobre aonde se meteu.

Ao erguer o olhar com mais atenção, viu um homem cuja fisionomia tornava-se familiar a cada segundo, a cada fragmento nebuloso de lembrança que ia se clareando. Foi dando alguns passos adiante, parecendo reconhece-lo à medida que chegava mais perto. O cabelo liso castanho na cabeça quase calva do homem reavivaram a memória do detetive.

- Morris? É você mesmo? - perguntou Frank, olhando-o suspeito.

O homem parara de fazer o que estava fazendo ao se empertigar por ter ouvido a voz de Frank.

- É quem estou pensando que é? Tenho medo de me virar e acabar descobrindo ser uma alucinação.

- Que nada, seu idiota, olha eu aqui. - disse Frank, andando para mostrar-se com um sorriso contentador.

- Quem diria. - disse Morris, um homem de meia idade com olhar penetrante e lábios finos, estudando o amigo de longa data que o acompanhara em diversas caçadas pela cidade - O destemido Frank Montgrow acabar num hospício. - estendeu a mão direita para apertar a de Frank.

- Nossa, no começo mal acreditei, pensei que seria uma alucinação. - disse Frank, sentando na cadeira à frente, apoiando seus braços na mesa - Eu soube do Jack ter vindo parar aqui. Aliás, esperava que isso acontecesse com ele cedo ou tarde, ele não tinha o preparo necessário que eu e você carregamos no sangue. Mas... você?

- Preparo não é o bastante, Frank. Você é o Frank, não é?

- Por que não seria? Olha, não fui afetado pelo Zeta que está escondido e nem você foi pelo que dá pra perceber. Na verdade, eu não pirei.

- Ah sim... - disse Morris, soando meio desanimado ao desviar o olhar - Entendi. Está aqui a trabalho.

- Isso. - confirmou Frank, assentindo - Mas quero saber de você. Não jogou sua vida no lixo a toa.

- Se é que eu tive uma. - retrucou ele, pouco disposto a conversar a respeito - Frank, é essa a punição pela vida que escolhi, a vida que priorizei. Não tenho nada contra você, fomos grandes irmãos de caçada, mas eu acabei trilhando meu caminho em direção à minha própria cova.

- Tá achando que pode ser a próxima vítima?

- Pode ser eu, você ou o Jack, ele está no quarto branco há dois dias e vai sair hoje. - informou Morris, sério. - Bem, sei que está querendo a verdade. Eles descobriram.

- O quê? - indagou Frank, franzindo o cenho para o amigo.

Morris assentiu com veemência.

- Senti na pele o preço desse caminho sem volta. Ou ele começa quando sua família desmorona ou ele termina quando você é banido dela. Quando ouvi sua voz, Frank, fiquei feliz mas ao mesmo tempo preocupado. Jack era fraco, ainda é, mas você... - apontou para ele com o indicador esquerdo - ... era o melhor de nós três. Não me importo em ficar com a medalha de prata.

- Vamos parar com isso. - disse Frank, fechando os olhos por um segundo - Não sou melhor do que você. Não sei porque escolheu viver aqui, mas...

- Eu não escolhi. - disse Morris, interrompendo-o - A vida me forçou. Aqui é meu expiatório. O Jack está querendo voltar a ser são, mas eu... tenho planos diferentes. Quero aprender a ser tão louco quanto os que morreram nos últimos dias, por ser a única coisa que vai me anestesiar dessa culpa. Consegue me entender?

O estado auto-flagelador de Morris dificultava o modo como Frank lidaria com ele e seu problema.

- Só te digo que não sabe o quanto está errado. Desculpa a franqueza, você é meu amigo, mas... se eu fosse você... não me acovardaria tanto assim. Todo mundo ganha uma chance de recomeçar. Mesmo longe deles, mesmo sem caçar monstros, você ainda pode se reajustar pra uma nova vida. Bem, eu não sou psicólogo, tentei te ajudar, mas você é quem deve se ajudar na maior parte disso.

- Vou refletir sobre a opção recomeçar. - disse Morris, sentindo um nó na garganta devido a emoção - Obrigado, Frank, sabia que podia contar com você.

- Não há de quê. Agora podemos conversar sobre o bicho que anda pegando por aqui? - perguntou, instigando uma improvável nova parceria investigativa.

                                                                                        ***

- Então quer dizer que Frank se internou por livre e espontânea vontade para desvendar um mistério sem saber que pode acabar sendo dado como louco de verdade. - disse Megan, provocativa no sorriso e no semblante. - Se ele morrer cedo demais, vai acabar frustrando os planos.

- Que planos? - indagou Carrie, fitando-a com raiva - Está metida em algum complô contra o Frank? Você é pau mandada das Indústrias Crissman que é pau mandada de alguma organização desconhecida. Então quero saber tudinho, tim-tim por tim-tim. Desembucha ou eu chamo a segurança. Devo te lembrar que tem câmeras aqui também? Alguém vai notar algo estranho e mandar suporte. A vigilância interna tem olhos em cada... centímetro... desse prédio. - falou, desafiadora.

- Bom, me convenceu. - disse Megan, mais flexível. - Mata-la aqui mesmo e agora só faria o diretor me jogar no olho da rua e como estou numa missão que exige muito estudo... não posso me deixar levar pelas emoções.

- Você só é uma boa menina quando te deixam encurralada? - perguntou Carrie, sarcasticamente.

- Nem sempre. - disse Megan, mantendo a postura arrogante - Pare de achar que me conhece só por se gabar de conseguir ler as pessoas com facilidade. Você é um estorvo, em algum momento eu vou ter que mata-la. É assim que gente que sabe demais precisa acabar.

- Eu sei demais?! - disse Carrie, surpresa, arqueando as sobrancelhas  - Eu acabei de conhecer a verdadeira Megan, a secretária que o diretor adora cortejar, e tudo que sei não chega nem perto da ponta do iceberg, então não me venha com acusações infundadas.

- Você tem algo que me pertence. - declarou Megan, o tom duro.

"Sim, uma mão bem fechada socando esse seu rosto coberto de hidratante."

- Tá falando do quê?

- Checo o histórico do computador do diretor todas as noites. Ele com certeza não instalou um dispositivo de conexão e baixou minha ficha curricular no dia 22 de Dezembro do ano passado. Como teve tanta sorte? Não disse que pontos cegos não existem no prédio?

- Digamos que subornei o cara que estava no comando das câmeras naquela hora. - confessou a assistente de Frank, meio retraída pela vergonha humilhante.

- Oh, isso devia ir pra minha lista de "razões para Carrie Wood ser demitida". - disse Megan, sorrindo cinicamente.

- Ora essa, não é louca de contar pro diretor se... - disse Carrie, na tentativa de coloca-la em suas mãos - ... eu te dar o pendrive com o arquivo que copiei. O pendrive... em troca do seu silêncio. E aí, o que acha?

                                                                                        ***

- Eu já cacei mais Zetas do que posso contar. - disse Morris, as mãos com dedos entrelaçados sobre a mesa do refeitório - O que posso dizer dessas mortes é uma teoria que talvez seja tão real quanto o clima de terror que se instalou nesse lugar. - se inclinou para falar mais de perto - Se você acha que está imune à loucura, é aí que você se engana.

- Como assim? Explica isso direito. - disse Frank, ávido por mais informações.

- Frank, nós somos dois homens sãos num antro de insanidade. As razões pelas quais estamos aqui não importam, podemos estar igualmente alvejados. O Zeta que pode ter atacado aqueles caras deixou um rastro imenso que se fortalece quando alvos potenciais sentem mais medo.

- Bem, até onde eu sei, o medo é a fonte de alimento do Zeta - disse Frank -, mas ele se alimenta somente quando a vítima está alucinando. Essa de rastro invisível servir de fonte pra ele é completamente nova pra mim. De onde você tirou essa ideia?

- Começou quando estranhei não ter visto o nome do Jack no prontuário de médicos. - declarou Morris, permanecendo sério - Mas eu o vi, é claro, ele está aqui há anos. Mas nunca vi nenhum médico interagir com ele, conversávamos às vezes e sempre um dos enfermeiros me olhava estranho, acho que era um estagiário que foi chutado meses depois.

- Insinua que... - disse Frank, desconfiado - ... o Jack não seja real? Então é isso que esse rastro da fumaça do Zeta faz?

- Exatamente. - confirmou Morris, assentindo - A gente tá preso numa espécie de redoma de loucura. O rastro só cobre alguns corredores e alguns quartos, mas o refeitório também está afetado.

- Então porque está me dizendo isso? Não acredita que eu seja uma miragem?

- Não, eu confio totalmente em você, Frank. - disse Morris, olhando fixamente para o amigo - Nós somos reais. O Jack não. Estou alucinando com ele. O rastro... parece estar se espalhando aos poucos, enlouquecendo você aos poucos até você avançar em todas as camadas e, enfim, se matar.

Frank não sabia por onde continuar a conversa devido ao peso que aquele sanatório o fazia lidar.

- Bem... Segundo a sua suposta alucinação, O Jack sai hoje do quarto branco.

- Ao que tudo indica, sim. - respondeu ele, pigarreando depois - Ontem mesmo perguntei a um dos homens de branco se tinha alguém na solitária. Ele respondeu não. E isso fora da fronteira. Acredite em mim, conheço esse lugar como a palma da minha mão, acho que já pisei na maior parte.

- Então... Talvez precisemos de um plano. - disse Frank, imaginativo por um instante, depois voltando os olhos para Morris. - Que tal uma caçada secreta como nos velhos tempos?

                                                                                    ***

- Vai ter que me provar que não leu nada. - disse Megan, resistente à tentação.

- Eu? Provar? Está falando com Carrie Nikson Wood. A assistente do agente mais requisitado do departamento mais importante da cidade que não tem absolutamente nenhuma obrigação de provar nada a ninguém quando tem uma vantagem suculenta nas mãos. É pegar ou largar. Ou podemos marcar um encontro. Pode ser na minha ou na sua casa, aí você traz um detector de mentiras. De qualquer forma, se você garante ficar de boca fechada, eu não digo o que sei... a ninguém. - sorriu de modo misterioso.

Megan estava demonstrando cansaço de todo aquele jogo.

- Significa que admite ter xeretado o arquivo? Sim ou não? - sua voz ficara ríspida.

- É tão grave assim o fato de eu saber mesmo jurando minha palavra? - questionou Carrie, sentindo-se poderosa por estar no controle da situação.

- Eu tenho ordens explícitas a cumprir. - disse Megan, irritando-se - Frank não pode cruzar a linha de chegada para se vingar.

- Se vingar? - indagou Carrie, sendo pega de surpresa - Ma-mas se vingar de quê? O que diabos você sabe do Frank que logo eu, a melhor amiga dele, não sabe?

- Assim como não tem obrigação de me provar não ter visto o arquivo, também não tenho de dar informações privilegiadas. - disse Megan, levantando uma sobrancelha - É justo, não acha? Você terá apenas meu silêncio como prêmio por ter escapado. Viu como sou esperta? Eu saio perdendo recebendo uma bronca que pode descontar do meu salário alternativo e você fica se contorcendo de curiosidade sobre o segredo do seu não tão honesto amigo. Esperava dar uma dica depois que você saboreasse a pose de dona da situação em não querer dizer a verdade.

Carrie estava paralisada de tensão ao pensar nas milhares de possibilidades a respeito do tal segredo.

"Frank numa vingança secreta?! Mas de quem?"

                                                                                        ***

- Se eu conheci o irmão da garota nova do pedaço? - perguntou Morris, franzindo a testa ao pensar por um segundo - Só de vista. - falou ele, dando de ombros - Vai mesmo perder tempo interrogando ela? Podemos ir direto ao plano, eu deixo você ser o líder se quiser.

- Pior que não sei como fazer isso. Digo, chegar até ela de um jeito que meu disfarce não se comprometa. - disse Frank, preocupando-se.

- Então esquece essa parte, vamos só nos concentrar em pegar o Zeta. O que ela vai dizer pode nem ser relevante pro caso, se é que você pode chegar nela facilmente. Pedir pra ser sua colega de quarto? Os loucos não tem voz ativa aqui. Só vai estar perdendo tempo e talvez até arruinando sua investigação.

- Tá legal, estou convencido. - cedeu Frank, erguendo de leve as mãos - Olivia descartada. Mas não vou ficar com essa pulga atrás da orelha mesmo com o Zeta fisgando a isca. Se existe só um nessa história, então como explica o que atacou ela?

- Eu posso estar falando bobagem, mas teve um cara que recebeu um certificado de sanidade há poucos dias, no período dos suicídios. - revelou Morris, olhando para os cantos a fim de se certificar que ninguém estaria com os ouvidos apurados na conversa. - E se for ele? Zetas são inteligentes. Pode ter hipnotizado um cara aleatório que passou no último teste de avaliação psicológica.

- Bem lembrado. Eles também controlam pessoas. - disse Frank, tentando ligar as pontas. - E quando fazem isso, as vítimas ganham suas habilidades temporariamente. Mas porque o Zeta levaria um cara a atacar um parente da última pessoa que ele atacou nesse hospício?

- Não sei não... - disse Morris, um pouco imerso em pensamentos - Esses desgraçados costumam ser vingativos... Falo por experiência própria, Frank. De todos os Zetas que cacei, sempre tiveram uns que escapavam e voltavam fazendo você pensar que era diferente, mas só vinham pra dar o troco. - estreitou os olhos para o companheiro - Por acaso você tem um que sempre falhou em matar?

                                                                                      ***

O jogo estava terminado para Carrie.

- É melhor nós voltarmos aos nossos postos. Vai que tenha alguém observando a gente conversar. É no mínimo estranho, nesse ponto de vista, ver duas pessoas ficando de papo na dispensa em pleno horário de trabalho.

- Então me mostre onde está. - exigiu Megan, arisca, descruzando os braços - Depois que eu matasse você, não me importaria de perder esse emprego, mas me custaria uns bons anos numa cela. Eu deveria ter forjado uma pane geral no sistema. Nem precisaria usar minhas mãos pra isso.

- Agora é tarde, querida. - disse Carrie, dando uns passos para sair. Destrancou a porta, depois virando-se para ela - Eu juro não mais meter meu nariz onde não devo. Pelo Frank.

- Juro não dar com a língua nos dentes pro diretor sobre você. - prometeu Megan, frustrada.

- Ótimo. - disse Carrie, sorrindo fechado - Anda, me segue. Nem pense em me esfaquear pelas costas.

A assistente saíra da dispensa, com Megan caminhando por trás. A secretária fechou a porta, séria e cautelosamente estudando o ritmo dos movimentos de sua rival.

                                                                                     ***

- Pra dizer a verdade... - falou Frank, ficando meio temeroso - ... eu sinto que há um deles que nunca consegui pegar. Ah, safado... - voltou-se para Morris, batendo sua mão direita aberta na mesa de leve - Tá na cara, isso é uma armadilha. Os suicídios, a alta do cara misterioso, a internação da Olivia, foi tudo um golpe pra me atrair a um lugar onde faz todo o sentido ele agir livremente. Pode até ser o mesmo Zeta que você andava caçando. - disse, apontando para o amigo.

- Mas fosse o caso, ele já teria me pego, estou vulnerável. - argumentou Morris - Ou só lançou a nuvem, o rastro invisível para criar a redoma e acabar com nós dois. Dois coelhos numa só paulada.

- É, pode ser. - concordou Frank, determinado a seguir com o plano - Temos que nos reunir com o Jack. Tem algum lugar onde a gente possa entrar sem ser visto?

- A sala de cirurgia quase sempre está destrancada.

- Beleza. Quando você ver o Jack, você chama ele, ignore quem rir de você e daí entramos. Eu não vou ver outra pessoa, o Jack e eu não éramos muito chegados tanto quanto eu e você éramos, mas se fui afetado por essa tal nuvem eu também vou vê-lo.

Um enfermeiro parou no meio do espaço e soprou seu apito de ruído estridente e agudo.

- Acabou o recreio, pessoal. Circulando, circulando... - disse, dispersando os pacientes dali.

A dupla de caçadores estava decidida com os próximos passos na captura do Zeta.

- Tá combinado, então? - perguntou Frank, tocando-o no ombro.

- Fechado. - disse Morris, fazendo que sim com a cabeça e apertando a mão direta de Frank.

                                                                                      ***

A "redoma" se estendia para a maior parte de corredores e era um deles no qual Frank resolveu adquirir uma informação concreta com relação ao saudoso companheiro de caçadas paranormais. Abordou um enfermeiro que alertou-se quase que intencionando agarra-lo.

- Oi. - disse Frank, com um sorriso exagerado para manter a pose - Err... Err... - coçou um lado da cabeça, meio sem jeito.

- O que você quer? - perguntou ele, em tom seco. - Ah, você deve ser o novato. O cara que diz ver monstros. Nossa indústria está testando um sedativo bem poderoso que pode reduzir as alucinações em 50% em menos de 48 horas. Devia ser um voluntário e se prevenir.

"Hoje não tô afim de ser ratinho de laboratório", pensou Frank, a pressa dominando-o.

- Olha, só queria uma informação básica, nada demais. Tem um cara chamado... Jack? Na solitária?

- É um dos pacientes do Dr. Hostler. - respondeu o enfermeiro, com suspicácia no olhar.

- Veja que coincidência. É o mesmo doutor que fez um relatório sobre mim. O Jack e eu somos amigos de longa data. - aproximou-se dele, com certa euforia - Será que eu posso vê-lo?

- Pacientes não tem autorização de visitar outros, mesmo que sejam da família. - disse o funcionário, barrando Frank com sua mão direita tocando no torso do detetive. - Se quiser rever o seu amigo, vai ter que esperar alguns minutos, ele está sendo submetido à avaliação. Onde fica seu quarto?

- Ahn... acho que à uns três corredores daqui. - disse Frank, mentindo, olhando meio desajeitado para trás.

- Então espere lá. Se fizer escândalo, você substitui a vaga deixada pelo seu amigo. Ouviu bem? - o enfermeiro o fitava com severidade. - E vê se não morre nessa noite. - disse ele, virando as costas com um tom de zombaria julgando-o como vítima potencial de uma nova onda de suicídios.

- Pode deixar... - disse Frank, não achando nem um pouco engraçado. Ao virar o pescoço para a sua esquerda, viu Morris meio escondido no outro corredor com a cabeça à mostra chamando por ele.

O detetive andara rápido até ele. Finalmente saberia como o aliado se saiu na sua parte.

- E aí? Como é que foi? A barra tá limpa?

- Como bumbum de bebê. - disse Morris, falando mais baixo e bastante perto de Frank - Lembre-se que estamos na redoma de loucura. Te vi falando com o enfermeiro. Eu tô te dizendo, Frank: O Jack pode não ser real. O que ele falou?

- Disse que visitas não são permitidas nem quando são familiares.

- Tá vendo só? É a nuvem. O cara pode ter falado algo completamente diferente. Tipo: Jack? Que Jack? Não tem ninguém com esse nome no quarto branco.

- Eu tenho minhas dúvidas. - disse Frank, passando a mão na boca até o queixo - Pode até fazer sentido a nuvem, sei lá, forçar você a ver uma coisa diferente do que realmente é. Baseado nisso, é bem possível que a aparência daquele enfermeiro nem seja aquela. A ilusão me convenceu de que o Jack está no meio de um teste final e prestes a ser aprovado.

- Exatamente. Se conseguisse chegar lá, veria só o Jack, sem médicos nem nada. Mas na verdade estaria sozinho. - disse Morris, logo retirando algo do bolso e verificando os arredores. O detetive ouviu um ruído inconfundível de chaves - Olha. Uma dessas três chaves abre a sala de cirurgia.

- Não disse que ela fica aberta na maior parte do dia?

- Bem... - Morris não soube bem como justificar - ... digamos que hoje foi um dia de desafios.

- Ai, meu deus... - disse Frank, pondo as mãos na cabeça em sinal de preocupação latente - O que você fez? Não me diga que...

- Ninguém vai reparar a ausência daquele cara. - disse Morris, com veemência - Era o zelador, ele sempre fica em poder das chaves quando está na faxina e eu o peguei de jeito.

- E pra onde você o levou? Nocauteou o cara?

- Fica tranquilo. Eles acreditam que a limpeza acabou. Ele fica horas passando o rodo naquele chão. Coloquei ele amordaçado e trancado no armário. Fica gemendo e grunhindo, mas vai dar pra gente se focar no plano.

- Tem certeza que ninguém pegou você entrando ou saindo? - perguntou Frank, à beira do desespero.

- Não, pode ficar sussa. - garantiu Morris, assentindo - Além disso, depois que saí fui até meu quarto e peguei a planta do prédio que eu roubei numa missão que quase me fez estar a um passo de ser trancafiado na cela. Ficava debaixo do meu travesseiro, onde eu também guardava os anti-depressivos que eu fingia tomar. Coloquei aqui atrás na minha calça.

Frank suspirou pesadamente com os olhos fechados. Um mau pressentimento não o deixava se centrar direito.

- Vê se toma cuidado. Se arriscou demais. - fez uma pausa, dando uma olhada rápida para os corredores - Assim que vermos o Jack mais tarde, a gente arrasta ele. Você tranca a porta por dentro.

- OK. - concordou Morris, guardando as chaves. - Lá vou aproveitar para dizer... o que vai facilitar nosso plano. Tem que ser essa noite, Frank.

                                                                                        ***

Precisamente à tarde, a dupla se encaminhou ao refeitório, não para comer, mas para caçar a presença de Jack em uma das mesas. Morris vasculhava atentamente, tentando ser discreto nos movimentos corporais perante à vigilância rigorosa do enfermeiros que estavam parados como estátuas em cantos que favoreciam bons campos de visão para flagrar uma eventual balbúrdia.

Frank fora andando por entre as mesas, ignorando qualquer louco que tentasse chamar sua atenção.

Num instante, Morris detectou uma fisionomia reconhecida numa mesa isolada e um pouco distante cujo ocupante estava solitário saboreando sua refeição. O ex-caçador fizera o sinal na medida certa com a cabeça para Frank se aproximar.

O desavisado Jack - um homem aparentando ter por volta de 30 e poucos anos, cabelo curto preto em corte social e rosto caucasiano magro com sobrancelhas grossas e nariz afilado - sentira uma mão tocar no seu ombro. Um arrepio instantâneo veio como um choque elétrico, fazendo-o virar-se com alarde, quase chamando a atenção dos olhares vigilantes dos enfermeiros.

- Quem é...? - disse ele, interrompendo ao rever a dupla.

- E aí, Jack? - disse Frank, sorrindo de leve pelo reencontro - Quanto tempo, não é?

- Fra-Frank?! - disse ele, confuso - Que diabos é isso? Tá fazendo o quê aqui?

Morris tomara a resposta.

- É uma longa história - disse ele, sisudo, logo olhando para Frank. - Sem tempo pra resumo.

- O Morris tá certo. Ficou na solitária um bom tempo, mas vou te dizer o básico: Um ser sobrenatural levou pacientes à morte com o seu poder faz cinco dias. Muitos tiraram suas vidas. Agora vê se adivinha: Esse lugar é terreno de fácil atividade pra qual criatura que está ligada aos piores medos que levam à loucura? - perguntou Frank, olhando-o com expectativa.

Jack concentrou-se para lembrar, o olhar baixo. Quando a charada foi morta, sua face lividou.

- Sacou a parada? - indagou Frank. - A gente tem um plano pra dar cabo do desgraçado.

                                                                                        ***

"Vamos ser sorrateiros. Acima de qualquer suspeita. Separados, de corredor em corredor até nos encontrarmos no ponto de reunião. Ainda pensam que o zelador está lá, a desinfetação da sala demora cinco horas e já passaram quatro desde que o prendi e roubei as chaves. Portanto, temos uma hora de sobra. Liberamos o cara, injetamos um daqueles amnésicos e ficamos livres de qualquer acusação". Dizia Morris, antes de seguirem separadamente como o planejado.

A porta da sala de cirurgia enfim fora trancada pelo caçador aposentado.

- Isso é impossível. - contestou Jack, incomodado - Um Zeta jamais encontraria uma brecha num lugar tão bem protegido como esse. Eles mencionaram fumaça amarela antes de morrerem?

- Alguns faziam descrições. - disse Frank, as mãos apoiadas na mesa - Mas acho que só do que viam.

- Então nada garante que foram atacados por um Zeta. Talvez só enlouqueceram.

- Jack, mais de quinze pacientes suicidados em apenas cinco dias não é normal. - retrucou Frank, fitando-o sério - Não peguei as fichas, mas pelas poucas informações que tive até agora... tudo leva a crer que sofriam de condições diferentes, nem todos eram esquizofrênicos.

Morris estendeu o mapa do sanatório sobre a mesa com rapidez.

- É aqui onde vamos pega-lo. - disse ele, apontando para um pequeno quadrado no canto inferior direito da planta que representava um local de acesso restrito - O almoxarifado. Lá existe um gerador que alimenta 90% do sistema elétrico do hospital. Jack será a isca. - sugeriu, olhando para o amigo.

- Por mim tudo bem. - disse ele, concordando.

- Não, espera aí, vamos ser coerentes. - salientou Frank, erguendo de leve um dedo indicador ,mostrando-se contrário à ideia à Morris - Te disse hoje cedo uma teoria que faz muito sentido, Morris. É um Zeta que agora virou predador e me tornou a presa. Os suicídios, a irmã do último cara a se matar dizer que viu fumaça amarela antes de pirar o cabeção e acabar vindo pra cá... Olha, tá mais do que óbvio que sou eu quem deve levar esse plano à cabo. Modéstia á parte, sou o mais experiente de nós.

- Ah, então me desculpe. - disse Moris, sentindo-se meio arrependido da escolha - Você tem razão. É o único do nosso clube que não encontrou esse fim da linha trágico.

- Tem certeza de que pode lidar com ele? - questionou Jack para Frank - É que essa história de nuvem, redoma invisível me parece meio forçada.

- Expliquei isso pro Frank. - disse Morris, soando meio rude - O acúmulo de fumaça alucinógena criou essa radiação em que todos estão expostos, inclusive nós. Eu pareço ser o único que conhece a fronteira e o almoxarifado fica além dela, mas mesmo assim há uma chance de encurrala-lo lá.

- Só nos diz como isso é possível. - pediu Frank, encarando o ex-caçador com suspeita.

- Soube, alguns dias atrás, que há um blecaute programado para a meia-noite de hoje. - revelou Morris, com certa empolgação contida no rosto - Manutenção de rotina no transformador principal. Isso vai beneficiar nossa deixa. O Frank atrai ele pra armadilha que especificamente é o gerador...

Jack interrompeu, novamente contestando.

- Calma aí. Até onde eu sei, na minha experiência não muito experiente de caçador, Zetas tem uma visão excelente no escuro. Como isso é uma vantagem?

- O blecaute dura aproximadamente... - disse Morris, com um dedo no queixo pensando - ... uma hora e quinze minutos, no máximo. Nos vinte minutos finais, as luzes vão começar a piscar. Meia-noite e meia Frank e o zeta começam a brincar de gato e rato. Até o almoxarifado, o caminho deve durar pelo menos quinze minutos.

- Você tinha falado sobre as camadas dessa nuvem. - relembrou Frank - A cada uma a alucinação fica mais intensa. E os últimos pacientes que morreram devem ter recebido um bônus da nuvem antes de receberam fumaça na cara já que morreram em menos de 24 horas ou a nuvem já tinha acumulado o bastante àquela altura para afeta-los depois do limite do tempo. - fez uma pausa, olhando fixamente para Morris com seriedade - Pensa bem: Estou aqui desde às nove e fui exposto. Até meia-noite são 16 horas e é uma curta distância pra 24.

- Então porque não se internou sabendo que poderia pega-lo antes do tempo esgotar? - indagou Jack, estreitando os olhos para o detetive.

- E eu lá sabia desse negócio de nuvem invisível. - defendeu-se Frank, meio exaltado. - Só achei de início que as coisas seriam mais fáceis. O Zeta viria até mim naturalmente, sem joguinhos e suspense, ou seja, eu seria a próxima vítima.

- Tô começando a achar que essa história de nuvem é conversa fiada. - disse Jack, relanceando Morris com olhar sisudo.

- Acha que menti pro Frank? Que eu quis complicar as coisas pro lado dele? - perguntou Morris, o cenho franzido para Jack em uma postura desafiadora. - Na verdade, eu nem sei porque fico aqui gastando saliva. Você nem é o Jack, não é real.

- Peraí, eu não sou real? - o caçador mais jovem do grupo revoltara-se - Talvez você não seja! - acusou, apontando com o indicador contra o ex-companheiro - Pôs a merda do mapa na mesa e o Frank mal olhou. Ele também deve achar o mesmo! Não é, Frank? - virou-se para o detetive.

- Melhor vocês dois pararem. Isso é um plano do Zeta. Deve ser o mesmo que eu ou o Morris caçou e quis fazer nossos cruzarem de novo. É isso que ele quer com a droga da nuvem, nos fazer brigar entre si. - argumentou Frank, tentando apaziguar o clima.

- Até você vai cair nessa?! - reclamou Jack, como tivesse se desiludido com o auto-proclamado mais experiente do grupo. Balançou a cabeça negativamente - Não, não vou comprar essa ideia nem a pau. Se essa nuvem existe e tem o mesmo efeito da fumaça... - olhou de forma atordoada para os dois - Ai, meu deus... Qual de vocês é real?

- Nós dois somos reais, Jack. Fica calmo. - disse Frank, tentando convence-lo.

- Você também foi afetado, Frank! Não seja imbecil! - disse ele, aborrecido - Devia estar tão desconfiado quanto eu! - fez uma pausa, lançando um olhar colérico para Morris - Eu sou real! Puramente real! - falou, categoricamente, apontando para si com o polegar esquerdo.

- Se fosse mesmo real seu nome estaria num prontuário médico. Eu juro que não vi ou ouvi nada sobre você nos últimos sete anos. - disse Morris, intimidando o ex-amigo. - O que tem a dizer em sua defesa?

- Que estive aqui o tempo todo, antes de você. - disse Jack, transparecendo verdade - Ou está alucinando ou está mentindo.

- De qualquer forma, você não pode provar. - disse Morris, sorrindo cinicamente.

- Não posso provar o quê? - indagou Jack, mantendo a irritação.

- Que esteve aqui há mais tempo que eu e que é real. E só pra constar, se você disse que posso estar alucinando eu não estaria sendo afetado pela nuvem, gênio? Logo, ou você acredita ou não na existência da nuvem. Pelo visto, esqueceram de fazer teste de Q.I em você. Portanto, eu estou alucinando, não mentindo.

- Mentindo sobre o que vê. - disparou Jack - A nuvem pode até ser real, mas você talvez não. O Morris que conheci nunca me acusaria injustamente. E estou são de novo como um alcoólatra volta a sobriedade. Afinal, como tem tanta certeza de que o Frank é real? Ele nunca estaria aqui! O Morris que conheci naquela época não engoliria essa tão fácil.

- Ai, caramba... - disse Frank, colocando a mão esquerda sobre o rosto em sinal de preocupação.

- Pra ser honesto, também não tenho muita certeza se ele é real. - confessou Morris, olhando meio retraidamente para o detetive.

Frank empertigou-se, espantado.

- Como é que é?! Vo-você fingiu acreditar em mim?

- Não, Frank, não me interprete mal. Eu só quero pôr o Jack como isca para confirmar se ele é ou não uma ilusão. Tenta me entender.

- Pode acreditar que estou tentando o máximo que posso. - disse Frank, fitando-o com forte seriedade.

- Viu só? Ele é um canalha. - disse Jack, não medindo o tom crítico - Por que me quer tanto como isca? Dá pra ver que não superou o passado.

- Então você quer arriscar a vida do Jack pra confirmar ou pra se vingar? - perguntou Frank, cada vez mais incisivo.

Ambos o olharam desconcertados.

- Você sabia do lance da dívida? - perguntou Jack, curioso.

- Já ouvi de outras bocas na mesma época - esclareceu Frank - Hein, Morris. Zetas, como a gente sabe, não atacam ilusões. Nesse caso, devíamos estar juntos no mesmo quarto até a energia voltar, assim vai ficar mais fácil descobrir. Disse que sou o líder, então vai ser do meu jeito.

- Pode esquecer. - recusou-se Jack, recuando alguns passos. - Vou ficar à mercê do monstro sem saber que estou sozinho. Desculpem, mas... não posso... - assumiu um tom choroso - ... não posso confiar minha vida a vocês. Mas que droga! - derrubara com as duas mãos uma mesinha de rodas com aparelhos cirúrgicos, fazendo grande barulho. - Talvez isso tudo seja mentira. Mentiram sobre tudo, tudo!

- Nada disso, as mortes são reais. - insistiu Frank - Olha, querem saber? Não podemos provar que somos reais! Continuar discutindo isso pode acabar nos deixando loucos de verdade!

- Frank está coberto de razão. - disse Morris.

- Opa, não quer dizer que eu não desconfie de você, Morris. - falou o detetive, mirando o dedo indicador à ele - Não que você não seja real, mas sobre o Jack ser isca pro Zeta. Isso eu não aprovo.

Jack reforçou com teimosia:

- Mas ele não é real, Frank!

- Cala a boca, Jack! - disse Frank, como única forma de acalma-lo.

- Eu cansei disso. - disse Morris, fazendo que não com a cabeça para Frank. Foi aproximando-se de Jack em passos vagarosos.

- Fica longe de mim. - sussurrou Jack, cerrando os punhos. - Você não é o Morris...

- Tornei você líder, Frank... - disse ele, ficando poucos centímetros frente à Jack. O rapaz esboçou um semblante de desconforto que o fez abrir a boca como se estivesse engasgado. Segundos depois, Frank sacara o que o corpo de Morris ocultava logo quando o ex-caçador que roubara o mapa do sanatório afastou-se devagar - andando para trás - do antigo companheiro.

-Ah, não... - disse o detetive, boquiaberto ao ver uma faca cravada na barriga de Jack em torno de uma mancha de sangue que aumentava na camisa branca. Voltou os olhos para Morris, tornando sua expressão de perplexidade em fúria. - Ora... seu maldito!

Morris dera uma risadinha zombeteira ao ver Jack caindo gemendo em dor enquanto dava a volta na mesa para chegar perto de Frank.

Sem ação, Frank ficou a observar o amigo praticamente agonizando com o sangue derramando-se no piso em granito cinza.

- Morris... O que... Por que? Não precisava ser assim!

- Mas é claro que precisava, Frank. - disse ele, logo em seguida desferindo um soco cruzado de esquerda contra o rosto do detetive que fora derrubado rapidamente ao chão. - Agora vai ter que me deixar trabalhar. Ele anseia por isso há anos.

Ao ouvir a frase, Frank sentia as peças encaixando. Levantou-se, tentando manter uma distância segura de Morris.

- Ele quem? Tá falando do Zeta? - perguntou, limpando o sangue da boca. - Desgraçado...

- O verdadeiro plano não se resume apenas à minha vingança pessoal. Eu preciso fazer isso, Frank, não posso contraria-lo. Eu tenho que fazer acontecer. Terminar a missão que aquele cara começou. - disse Morris, erguendo a mão esquerda e mostrando a palma. Dela abriu-se um pequeno orifício no centro, um pontinho preto pela visão de Frank.

- O cara... - disse o detetive, pensando em ninguém menos que Olivia - O cara que recebeu o atestado de sanidade e atacou a Olivia hipnotizado pelo Zeta?! Quer dizer que você... Quando e como isso aconteceu?

- Na noite de ontem, pra ser exato. - revelou Morris, dando passos adiante com a mão erguida e pronta para borrifar o gás alucinógeno - Senti as mãos geladas e escamosas dele no meu rosto. E vi seus olhos. Ele os abriu pra mim. São brancos como as paredes da solitária. Pensei que veio para me matar, mas foi o contrário. Foi para me presentear com esse poder e fazer você sentir esse ar que sai por este buraco até seus pulmões se encherem e sua mente entorpecer em loucura e medo.

- E sobre o Jack? - perguntou Frank, em posição de enfrentamento.

- Eu menti. - disse Morris, sucinto - O plano original se eu conseguisse... manter a pose... - deu uma risada infame e rápida - ... era nos reunirmos no quarto e meu senhor liquidar com vocês dois. Mas tinha uma cláusula que dizia para agir quando eu sentisse que as coisas ficariam insuportáveis. E ficaram, como pôde ver.

- Morris, esse não é você. - disse Frank, numa tentativa desesperada de traze-lo de volta sem muitas esperanças - Deixa eu te ajudar.

- Vai ajudar muito... - disse ele, de repente pegando-o pelo pescoço e jogando-o contra parede. As costas de Frank bateram com impacto, mas logo seu pescoço foi agarrado pela mão direita e firme de Morris que o levantava exibindo uma força descomunal - ... quando estiver à beira da insanidade, com camisa de força e tudo. - aproximou a mão com o orifício ao rosto dele - É assim que ele acredita que caçadores devem acabar. Não pensava que ia ser diferente com você só porque se achava especial né?

A passagem de ar foi obstruída com o forte aperto que o detetive sofria nas veias de seu pescoço.

Aproveitou que Morris gabava-se do poder olhando para a mão perigosa quando desviou a visão para sua esquerda onde enxergou uma bandeja de alumínio facilmente alcançável. Esticou a mão meio trêmula na direção do objeto, tocando-o após cinco segundos.

Ao pegar seguramente, tacara a bandeja contra a cabeça de Morris num violento golpe que o fez cair inconsciente para o lado e sobre uma outra mesa com rodas.

A porta se abriu pegando Frank de surpresa que virou-se assustado.

- O que está havendo aqui? - perguntou uma enfermeira ao lado de um enfermeiro que arrombou a porta.

Frank largara a bandeja, soltando-a para cair.

- Olha, não é o que tá pensando... - disse ele, erguendo os braços se dizendo inocente.

O enfermeiro sacou uma pistola com dardos tranquilizantes, prontamente disparando três,. sendo dois deles pegando no peito do detetive e um na mão esquerda.

Ao cair e sentir a inconsciência tomar conta, Frank fez um último pensamento, olhando para o dardo na palma da sua mão.

- Que merda... Tô me sentindo aquele leão...

A inconsciência total cortara sua frase.

                                                                                         ***

As pálpebras de Frank voltavam a ficar leves à medida que sua visão se desenturvava e a sensação de estar em um ambiente retornava aos poucos. O cenho franziu quando sentiu o ar suavemente gelado em volta de seu corpo. Depois a memória clareou. Morris precisava ser detido juntamente com o Zeta que o transformou naquele louco obsessivo por se vingar. A partir daí, seus olhos permaneceram bem abertos como se um alarme estridente tivesse soado dentro da sua cabeça.

As paredes brancas do local o preocuparam. Um belo rosto feliz se aproximou para vê-lo.

- Finalmente acordou. - disse uma enfermeira jovem de rosto meio arredondado, óculos de grau maior e cabelo castanho claro amarrado numa presilha. - Como se sente, senhor Montgrow? Está de volta ao paraíso.

- Como é? - indagou Frank, atordoando-se ao tomar ciência de onde estava, levantando-se rápido - Espera aí... Onde eu estou? Que história é essa de... paraíso? - perguntou olhando para ela e de relance para as paredes alvas como a neve.

- O senhor despertou de seu inferno particular. - disse a enfermeira, sentada numa cadeira sem braços, aparentando certeza - Literalmente, de um coma que durou exatos 30 anos.

A informação soltada o fez encara-la como se não tivesse escutado direito.

- Olha, não sei quem é você, mas eu preciso sair, tenho contas a acertar com aquele cara que estava caído em cima da mesa, ele me atacou e me enganou descaradamente. Não mereço estar aqui...

- É claro que não. Ninguém merece. - disse ela, interrompendo-o. - Está disposto a saber a verdade?

- Não vou cair nessa. Me viram atacando aquele cara, mas não foi razão para me jogarem aqui. - contestou ele, relanceando a porta - Onde ele está? O nome dele é Morris, tinha outro, o Jack, ele...

A enfermeira balançou a cabeça com um não.

- Devem ser as últimas lembranças do sonho.

- O quê? Sonho?! - disse Frank, franzindo o cenho, pensando em correr até a porta em disparada - Os donos desse muquifo pagam você pra tirar onda com os malucos que são condenados a viverem aqui? Já vou avisando que não sou um deles, então o melhor que você tem que fazer é abrir aquela porta, me deixar sair e fazer meu trabalho. - pusera os pés no chão, querendo sair a todo custo - Esse vai ser nosso segredo: Não sou louco. Me internei por vontade própria e menti sobre várias e várias coisas só para investigar a causa dos suicídios que andaram ocorrendo aqui, tem que acreditar em mim, sou credenciado pelo DPDC, agente especial.

- DPDC? O que significa isso? - perguntou a enfermeira, sentindo-se um tanto assustada.

- Para de brincar comigo! - disse Frank, enfezado, agarrando-a nos braços e apertando - Sou um investigador do Departamento Policial de Danverous City! Se ligar pra lá, vai estar confirmando, tenho licença autorizada para conduzir uma investigação mesmo sob disfarces.

- Está completamente delirante. Não existe... nenhuma Danverous City. O senhor está aqui há anos! Em Nova York, nasceu e foi criado aqui até a tragédia que tirou seus pais de você. Não tem os nomes que citou nos registros. Sofreu um acidente quando criança com os seus pais que o deixou catatônico. Quando pacientes nesse estado acordam juram que ainda estão vivendo a realidade falsa que acreditavam ser real. Isso é muito comum. Você não lembra de nada por causa do impacto e as lembranças desse sonho...

- Chega! - vociferou Frank, empurrando-a com força até fazê-la cair - Você não é real... - disse ele, andando até a porta - Quarto branco não é lugar de gente que acorda de coma.

O detetive ouviu o click de uma arma. Virou-se, estranhando. A enfermeira havia levantado-se, apontando uma arma com tranquilizantes.

- Cruze a porta e vou seda-lo para que durma por mais 30 anos.

- Ah, os novos sedativos fazem isso é? - disse ele, sem se intimidar - Quer um conselho? Abaixa essa arma. Eu posso não ter controle sobre as alucinações que a tal nuvem do Zeta me faz ter e que está se espalhando feito radiação, mas sou difícil quando o assunto é me fazer de otário.

A enfermeira tremia a mão que segurava a pistola, indicando insegurança.

- Eu sei a vida que eu tive. - disse ele, ficando um pouco pensativo ao desviar o olhar para o nada - Até gostaria que fosse um sonho. Após acordar eu estaria diante de um mundo diferente. Mas é a vida que eu tenho. Me tornou quem eu realmente sou. Você é só um fantasma da minha cabeça que está tentando me fazer aceitar um mundo que não existe, um mundo que não foi feito pra mim. - estreitou o olhar sério para a ilusão - Tem mais é que desaparecer. "Vamos ver se funciona...", pensou, testando uma teoria improvável. - Estou tomando minha pílula vermelha e voltando à realidade. É melhor sumir da minha frente... - disse, apontando para ela que recuava enquanto baixava a pistola devagar. - Minha mente é mais forte do que qualquer ilusão. Anda logo, some de uma vez! - bradou, forçando seu potencial psíquico ao máximo.

A figura da enfermeira lançou um semblante de horror antes de desaparecer como uma fumaça cinzenta. A porta tinha sido deixada escancarada para dar passagem a um médico que avaliaria Frank como consulta noturna.

                                                                                         ***

Após muitos corredores atravessados, Frank sentia-se perdido em um labirinto sem fim, embora tivesse uma ponta de certeza sobre estar na parte que compreendia os laboratórios de manipulação para substâncias utilizadas contra pacientes violentos. Estes possuíam grandes janelas com vidro retangular. Seus olhos vasculhavam de um lado para o outro alguma saída que lhe dissesse estar indo à área certa. No entanto, um peso em sua visão o fragilizou, como se tudo ao redor começasse a tremer e se enturvar intermitentemente.

Pôs uma mão na cabeça, sentindo-se mal, não duvidando mais a respeito da nuvem invisível.

- Ah, não...

Lembrou-se da fala de Morris.

"O rastro... parece estar se espalhando aos poucos, enlouquecendo você aos poucos até você avançar em todas as camadas e, enfim se matar."

Ao que tudo indicava, o rompimento da última camada estava prestes a ocorrer.

- Muito bem, mudança de plano. - disse ele para si mesmo - Parece que não vai ser hoje que vou te pegar, seu laranjão de uma figa. - tornou a andar, mesmo tendo a sensação de um tremor de terra se intensificar. Por um momento cambaleou quase caindo devido as vibrações que impossibilitavam de se equilibrar.

Vendo as paredes racharem-se progressivamente e escutar barulhos do piso cedendo atrás de si, hesitou em olhar para trás e começara uma corrida desesperada pelo corredor que desmoronava.

- Socorro! - gritou, submetido à ilusão por completo, querendo escapar para nunca sequer voltar para uma nova tentativa. As vidraças da janelas estilhaçavam fortemente próximo à ele que se protegia com os braços enquanto corria.

Poucos médicos ainda ficavam de plantão àquele horário, mas se encontravam distantes demais para serem solicitados pelo desespero de Frank. Fora que os outros funcionários haviam sido dispensados uma hora mais cedo por conta da manutenção.

"Não se esqueça da velha regra, Frank: Não se pode salvar a todos! Eu tinha que pôr isso na cabeça desde Novembro passado com aquele caso dos Ambrozes!", pensou ele, passando por vários corredores em disparada como nunca tinha corrido antes. "Isso é terrível! Agora sei como os japoneses se sentem! É como se... a crosta da terra tivesse sendo sacudida! Isso deve dar uns 9.2 na escala. Será que exagerei? O último terremoto aqui na cidade foi de 8.1! Por que tô falando desse jeito? Até parece... que nunca senti um terremoto antes! Será que foi isso que aquele demônio falou? O tal grande evento apocalíptico? Deve ser, só pode... Não! Não, não e não! Isso é a nuvem te manipulando! Resiste, Frank, resiste... Seja forte... ".

O cansaço falou mais alto. Felizmente, o tremor diminuía à medida que ele sentia se distanciar do ponto crítico da nuvem, porém uma vez atravessada a última barreira para se tornar refém da loucura não havia como voltar atrás. Apoiou sua mão esquerda na parede branca para reaver o fôlego. Visualizou a lâmpada fluorescente acima de sua cabeça com os olhos meio apertados. A visão ainda era trêmula e embaçada, mas a luz estava ampliada a ponto de fazer arder a retina.

Baixou o olhar ainda aflito para a porta azul meio escuro escancarada do quarto à poucos metros à sua frente daquele lado. Engolindo a saliva, o detetive caminhou lentamente, quase na ponta dos pés.

Quando encostou a mão direita na porta para abri-la, a mesma produziu um rangido fino. Sua expressão empalidecia quanto mais a cena revelava-se diante de seus olhos.

- Oh não... - disse ele, lamentando profundamente. No piso daquele quarto escuro jazia o corpo de uma mulher que Frank reconheceu por lembrar-se das fotografias fornecidas pela polícia. Uma faca estava cravada no peito esquerdo dela, diretamente no coração, além de uma poça de sangue que se avolumava vagarosamente. - Olivia. - falou, num sussurro pesaroso. Antes que fosse ir até ela para ao menos fechar seus olhos, o detetive foi surpreendido pela brusca queda de energia, fazendo o corredor mergulhar numa semi-escuridão. A luz da lua que atravessava a janela do quarto de Olivia tranquilizava um pouco a sensação apavorante de estar envolvido num escuro que surge de repente.

Recuando alguns passos, horrorizado, Frank encostou-se na parede à frente do quarto. Sua missão de interrogar Olivia arruinou-se. "Que merda. Seria injusto sair daqui sozinho... Ela não era louca.".

Com o silêncio dominador, pensou ter ouvido um ruído ínfimo bem na parte inferior da sua nuca em centímetros de distância.

Sentiu um gelado próximo ao seu ombro como se algo líquido estivesse derramando. Ao virar-se, passou primeiro a mão no ponto. Olhou para a mão sem entender, depois para a camisa que tinha um pontinho vermelho e, por fim, para a parede de onde escorria um filete de líquido meio enegrecido.

- Sangue. - comprovou Frank, atônito. Claramente parte do show de horrores ilusório que o atormentaria e o levaria a uma decisão com a qual temia não conseguir lutar contra se arriscasse chegar naquele nível.

Os filetes desciam em linha reta por vários pontos das paredes, lado à lado e crescendo volumosamente, o que novamente despertou o instinto de sobrevivência do detetive para correr dali.

O choro sangrento das paredes não parecia ter fim, como se estivessem sendo repintadas de vermelho escuro quase vinho.

Entrando rapidamente em outro corredor, Frank soltara um breve grito de pavor, recuando uns dois passos ao se deparar com uma figura humanoide e grotesca resumida em olhos vermelhos de mosca, cabeça de pelo negro, dentes de aranha movendo-se e garras de louva-deus balançando.

Frank passou a andar de lado, roçando suas costas na parede, para ultrapassa-lo, mantendo os olhos fechados apertadamente. Quando sentira que estava livre, tornou a correr. No entanto, uma atmosfera diferenciada o deixou intrigado a princípio, fazendo-o reduzir o ritmo até parar um pouco para dar uma olhada para trás. A coragem que encontrou para isso foi julgada como estranha.

A amálgama de mosca, aranha e louva-deus desaparecera e o que se via nada mais era que um dos seguranças que muito provavelmente teria escutado o grito de socorro ou os de Olivia enquanto alucinava novamente com quantidades absurdas de fumaça inaladas. O homem vestindo um macacão cinza escuro corria até Frank, apontando o facho ofuscante de sua lanterna, dando ordem para ele colocar-se ao chão. Ali a ficha caíra por inteiro.

"Isso significa que posso ter atravessado a fronteira... Eu tô fora da redoma, então quer dizer...Sim, o Morris talvez estava certo, o almoxarifado tá há poucos corredores daqui!".

Frank pensou em voltar a fugir, mas antes que desse um passo sentiu a mão forte do segurança agarrar a manga direita de sua camisa para puxa-lo de volta. Por reflexo, Frank desferiu uma cotovelada contra o nariz do funcionário cujo corpo inclinou para trás ao ser atingido certeiramente.

Tentou revidar em Frank com um soco, mas o detetive desviou habilmente, pegando-o pelo braço e chutando-o rápido na barriga conseguindo subjuga-lo com facilidade. Enquanto o segurança grunhia de dor caindo no chão, o detetive surripiara o cassetete preto dele. Em seguida, andou para pegar a lanterna grossa que ele largara quando levou o primeiro golpe.

- Desculpa aí, amigo. Causas maiores. - disse ele, tornando a correr em ritmo acelerado, seguindo com a luz da lanterna rasgando a escuridão por onde passava e o cassetete erguido com a ponta para cima e segurado firme.

Em um outro corredor, a luz captou o que parecia ser uma cauda de lagarto. Era parte da anatomia do Zeta. A cauda sumiu com rapidez pelo corredor à direita. "Tá acontecendo exatamente o contrário. O miserável é quem tá me atraindo pra armadilha."

Frank seguiu a cada vestígio da presença do Zeta que ia sendo detectado pela sua percepção rápida.

Eram apenas vultos que escapavam com velocidade quando a luz o banhava.

A perseguição dava sinais de progresso quando o detetive finalmente havia alcançado a escada que descia até o local exato. Frank chutara a porta metálica mas nada surtiu efeito. Apontou a lanterna para o duto de ventilação que daria precisamente em algum ponto do almoxarifado. Obviamente, ele havia chegado primeiro já que a tampa foi removida.

Ao tentar arrombar a pesada porta, o detetive colocou a lanterna abaixo da axila esquerda, largando o cassetete no chão que "quicou" com barulho, e empurrou com os dentes cerrados e os olhos apertados. A porta aparentava estar deslizando para trás, o que só animou Frank a insistir.

Vários segundos de esforço pesado depois, a porta rangeu altíssimo após abrir-se. Frank rosnou cutucando o ouvido pelo som estridente que transpassou seu canal auditivo. Descera os três lances de escada de ferro que seguia até o "alçapão" por onde outra escada conferir passagem ao lugar certo.

Apontou a lanterna para uma parte do duto que descia até o fim da parede. Chutara a porta de madeira desfazendo a pequena brecha de antes. A luz branca da lanterna pegou uma nuvem de poeira levantar quando a porta virou para o chão no outro lado.

- É hora de vermos quem é o melhor. - disse Frank, entrando no buraco quadrado para descer a escada tão enferrujada quanto a de cima. Seus passos desesperados faziam barulho metálico.

O detetive pisara no empoeirado solo do almoxarifado, lançando a luz da lanterna para várias direções. Elucidadas por ela estavam estantes enfileiradas de perfil para Frank, nas quais continham caixas com materiais de construção, primeiros-socorros, extintores de incêndio e equipamentos cirúrgicos entre outros. "Hoje cê não me escapa, verme...", pensou ele caminhando por entre as estantes com a lanterna seguramente firme na mão direita mirando de cima à baixo.

Guarda baixa naquele momento não era uma opção. Se desse uma coceira em alguma parte, que deixasse. Era percepção ouriçada ao máximo e o detetive levou essa habilidade a um outro nível.

Isto o fez com que percebesse logo na hora alguns ruídos de algo pulando entre as estantes.

Mirou a luz na direção de onde veio, passando-a. Depois o ruído reconhecido vinha do teto. Sem hesitar, o detetive ergueu a luz diretamente ali.

A criatura de pele escamosa alaranjada estava grudada feito uma aranha pronta para lançar sua teia. Mas parecia mais como uma salamandra humanoide e sem boca.

Os olhos fechados do Zeta davam a sensação de estarem realmente encarando.

Frank correu para atraí-lo. Seria a vez de encontrar o gerador. As luzes começaram a piscar tremulamente, conferindo à situação um ar mais macabro.

"Nos vinte minutos finais, as luzes vão começar a piscar"

"Mais uma vez ele tinha razão. Devem estar terminando o serviço", pensou Frank, passando pelo labirinto de estantes sentindo a presença ameaçadora do Zeta perseguindo-o com a rapidez de um animal selvagem para abocanhar sua caça. "Cadê? Cadê?" Mesmo com o pisca-pisca incessante, ainda era de dificuldade tremenda achar o gerador principal. O pior medo não era exatamente a caçada continuar e - consideravelmente falhar - após o término da manutenção, mas sim estar andando em círculos pelo labirinto estranho. Um barulho alto de uma estante caindo assustou-o.

Esbarrou em uma descuidadamente, deixando cair a lanterna ligada que rolou por baixo de uma outra estante.

- Merda... - disse ele, apertando o ombro que bateu no ferro oxidado do móvel. O jeito era guiar-se pelo pisca-pisca irritante. Levantou-se, olhando para trás vendo flashes assombrosos do zeta chegando mais perto numa velocidade impressionante como se teleportasse-se a cada piscada das lâmpadas. Conseguiu despista-lo com muita sorte escondendo-se rápido numa estante e andando de lado. Quando escutou passos de ruído gosmento, sabia que ele colocara os pés no chão para procurar Frank sem trapacear. O detetive continuou a andar de lado - pela direita - com cautela. Depois que o caminho da estante terminou, arriscou desviar para a direita do "labirinto". Ficou entre duas estantes de perfil para ele, preferindo seguir adiante no mesmo ritmo.

Vira os pés "dracônicos" do Zeta vindo do beco à esquerda numa piscada só da lâmpada. "Droga, droga...", pensou Frank, recuando e seguindo pela outra direção. Passando pelo outro beco que sairia de onde o Zeta teria caminhado, o detetive entreviu uma caixa com um apoio de quatro rodas. A tal caixa do tamanho de uma caixa d´água tinha materiais de limpeza, vassouras amontoadas e panos. Bem em frente, com uma certa distância, de uma outra caixa bastante específica. O Zeta estava de costas andando vagarosamente para descobrir-lo e pega-lo desprevenido.

A ordem era: Carro de limpeza, Zeta e gerador. Era pegar ou largar.

- Ei, seu idiota! - gritou Frank, ousadamente. O Zeta virou-se no mesmo instante, preparado. Frank canalizou toda a sua força em um único chute de direita na caixa-carrinho que foi impulsionado em direção ao Zeta em movimento conveniente para o que Frank planejava. Na medida correta. O carro de limpeza atingira o Zeta com força, empurrando-o diretamente contra o gerador.

O efeito do impacto começou salpicando faíscas intensas por todos os lados e um som de eletricidade crua soando no espaço com a alta voltagem que o gerador proporcionava a quem o danificasse.

A barreira criada pelo carrinho impediu o Zeta de se desvencilhar dos raios elétricos que "chicoteavam" sua frágil pele, envolto de mais faíscas ardentes enquanto seu corpo debatia loucamente e chamuscava.

A intermitência das luzes parou e só o que dava luminosidade eram os estralos e faíscas sibilantes que afugentaram Frank dali o mais rápido possível. O detetive ansiava para encontrar a saída, passando em correria de estante em estante, de beco em beco. "Agora onde é que fica a maldita escada?"

Com as lâmpadas cedendo ao chão com os fios pendendo em meio à mais faíscas, o detetive precisou urgir com o tempo. Mas foi uma pequena explosão do gerador que o deixou em alerta. Ao ver a nuvem flamejante subir ao teto, Frank arregalou os olhos correndo mais depressa. Até que esbarrou com a barriga no corrimão inferior da escada. Ignorando a dor, pensou em mil palavrões enquanto subia os primeiros degraus, a fumaça do princípio de incêndio adentrando nas narinas. No meio do caminho, tossira várias vezes. Havia uma porta dupla por onde os funcionários vinham do primeiro andar, mas estava trancada e impercebida por Frank.

Uma lâmpada caíra por detrás dele, por pouco não o atingindo, partindo-se ao meio.

A luta ainda estava completamente ganha. Seria de imprescindível necessidade sair do hospital antes que o fogo se alastrasse para o andar de cima. Com o corpo finalmente fora da zona de primária de perigo, o detetive bolou no chão em umas duas voltas até ficar de bruços tossindo.

Ofegando bastante, Frank olhou para a fumaça que saía da passagem. No entanto, o sentimento de missão cumprida se sobrepunha ao de emergência.

                                                                                   ***

Uma hora depois... 

Frank, com a camisa branca suja de pó, estava sentado na traseira aberta de uma ambulância tomando inalação ao mesmo tempo em que uma loucura de sons dessincronizados de sirenes de viaturas policiais e carros de bombeiro abafava um pouco as vozes. Jatos potentes d'água cuidavam de apagar o incêndio que emergira do almoxarifado em poucos minutos, forçando desesperadamente os seguranças e médicos a conduzirem os pacientes para fora. Três pessoas morreram eletrocutadas após o dano severo no gerador pois a manutenção possuía alguns minutos antes de encerrar.

Um carro policial bastante familiar, com sirenes ligadas - apenas as clássicas luzes vermelha e azul e sem som - chamou a atenção de Frank logo de imediato, fazendo-o baixar a máscara do inalador. Na porta do carona claramente os dizeres em fonte específica e em dourado: DPDC.

Saiu de lá um homem engravatado segurando com as duas mãos uma maleta de ferro cinzenta, aparentando ter entre 40 e 50 anos de idade - calvo, cavanhaque castanho e óculos de armação média.

- Senhor Montgrow? - indagou ele, aproximando-se da ambulância onde estava Frank - Permita-me apresentar: Sou John Hass, porta-voz do superintendente Hockler. Não posso apertar sua mão - deu uma risada leve -, porque estou com seus pertences. - pusera a mala no chão - Por muito pouco foram salvos do fogo hein.

- Caramba, me espanta o superintendente ficar sabendo dessa cilada que me meti hoje. - disse Frank, sorrindo fracamente - Tudo bem, pode falar, ele vai obrigar o diretor a descontar do meu salário por não ter pedido autorização para investigar sob disfarce.

- Está enganado. - disse John, ajeitando o óculos - Na verdade, ele quer parabeniza-lo pela sua coragem em ir até o fim para capturar o maníaco que de alguma forma causava alucinações nos pacientes e os fazia se matar e que se escondia muito bem. Como conseguiu?

- Se eu contar, vamos ficar falando disso até o sol nascer. - disse Frank, nem um pouco a conversar a respeito. - Mas obrigado, Jonh. - apertara a mão dele - Te devo uma.

- Disponha, senhor. Não me deve absolutamente nada. - disse ele, sorrindo fechado - Ahn... na verdade, deve sim... mas não a mim. O hospital exige que você pague uma multa por ter agredido um segurança, embora eu saiba que foi para não fazê-lo perder tempo já que estava em plena perseguição ao culpado. Certo?

- É bem por aí. - disse Frank, sendo vago - Por mim está de bom tamanho. Antes multa que cadeia.

- É, tem sorte por ser da polícia. - disse John - Quer saber quanto vai ser?

- Não, por enquanto não. - recusou Frank, erguendo de leve uma mão - Foi muita dor de cabeça pra uma noite só.

O celular de Frank dentro da mala começou a tocar.

John, educadamente, abriu-a e retirou o aparelho para entrega-lo.

- Espero que nos vejamos novamente algum dia. - disse ele, despedindo-se ao assentir - Até mais.

- Falou, John. - disse Frank, grato pela contribuição inesperada do braço direito do rigoroso superintendente. Atendera a chamada - Qual é a nova, Carrie?

- Só liguei para perguntar se você está bem, me disseram que houve um incêndio no sanatório. - a assistente falava dentro de seu carro, prestes a sair do estacionamento após um longo dia de trabalho.

- Ah, pois é, mas já está tudo bem, consegui sair inteiro. - disse Frank, observando os bombeiros trabalharem - No fim das contas, a Olivia foi a última vítima. E a pior parte: Esqueceram do corpo dela largado no quarto e... ela foi consumida pelas chamas. Em compensação, eu peguei ele. Te conto os detalhes amanhã. Tá bom pra você? - perguntou, já esperando a resposta previsível.

- Por mim está ótimo. - disparou ela para a surpresa do detetive.

- O que é que tá acontecendo, Carrie? Você nunca aceita quando eu deixo informações pra depois. Com você é sempre: "Quero agora e pronto". - falou, imitando o tom de uma criança na última parte.

- Não é nada demais. Liguei também pra te dar um aviso... seríssimo. - disse a assistente, não alterando a seriedade da voz. - Serei direta. É sobre a secretária do diretor, a Megan. Três palavras: Não confie nela.

- Como é? - indagou Frank, franzindo o cenho - Espera aí... Tenho a leve impressão de que a sua investigação secreta que você fez questão de não me dizer o que era tem a ver com a Megan.

- Sim, você acertou. Mas só me tira uma dúvida: Qual foi a última vez que você e ela se falaram?

- Sei lá, acho que faz uns dois meses. Ela é tão atarefada que a gente mal se esbarra.

- Isso é bom. Bom não, excelente. - disse Carrie, dando ênfase - Só fica longe dela por favor. Dizer isso é o máximo que posso fazer pra te ajudar.

- Carrie, eu não tô gostando nada disso. - declarou ele, o tom meio aborrecido.

- Muito menos eu. - disse ela, soando tensa - A gente se vê amanhã. - desligara, deixando Frank a pensar e refletir sobre o quão misterioso sua tão estimada parceira fez parecer o obscuro caso de Megan baseado numa suspeita que ele considerava sem sentido.

                                                                                      ***

No estacionamento, um sedã preto encontrava-se à uma boa distância do carro de Carrie.

Dentro dele estava Megan com um headfone conectado ao seu laptop durante o rastreamento da ligação de Carrie para Frank. Apertou um botão ao ouvir a chamada ser terminada.

Um sorriso de canto se formou em seu estonteante rosto.

- Boa garota.

                                                                                       ***

Confessionário:

O dia de ontem foi uma tremenda loucura. E que loucura viu... Bem, resumidamente foi assim: Fui investigar a causa dos suicídios ocorridos no sanatório Eisenhauer, mas tive que me fazer de doido se quisesse extrair o máximo de pistas possível e, com muita sorte, capturar o responsável. Pra falar a verdade, o responsável, como não podia deixar de ser na minha vida ainda mais em um caso que envolve doentes mentais, é uma criatura sobrenatural chamada Zeta. Acho que já dei umas dicas do que ele podia ser num outro áudio, então quem já é inscrito deve ter um conhecimento prévio. Ele se origina a partir dos cogumelos que brotam da terra perto da fenda externa. Quem estiver ouvindo isso e tiver ligações com o governo, pode sugerir uma remoção desses cogumelos, tipo arrancar até a raiz pra nunca mais nascer... quero dizer, se tiver um novo terremoto é esperado que nasçam outros novos, até porque, em tese, as vibrações das placas tectônicas da fenda reverberam na crosta terrestre e isso tem alguma explicação surreal que não vou me aprofundar muito hoje, então fica no ar a questão. 

Em meio a essa investigação maluca, reencontrei dois amigos, colegas de trabalho pra ser exato.
Morris e Jack. O primeiro foi hipnotizado pelo Zeta para me encurralar quando desse na telha e não passou de uma peça no jogo dele. Já o segundo está há mais tempo no hospício e nos juntamos à ele para nos apoiar na caçada contra o Zeta. Morris quase me ferrou e o ataquei até fazê-lo desmaiar. O efeito da hipnose do Zeta dura apenas um dia e através dela ele compartilha suas habilidades com a vítima. Explicando melhor: Ele empresta seu poder enquanto te hipnotiza e sob esse controle você escolhe quando usar. Felizmente, o Morris está bem. Mas não se lembra de nada, nem do nosso reencontro. E o Jack... Quando se desmascarou, o Morris tinha enfiado uma faca na barriga dele e não vou culpa-lo. O Jack acabou morrendo por hemorragia. 

Esse foi mais um caso onde pude aprender uma boa e dura lição: Vida de caçador não tá com nada. Ou acaba em morte ou em tristeza... ou em loucura. Se achar forte o bastante pra entrar nesse barco, meu amigo... tem que ter uma boa razão pra seguir esse caminho. Na morte você acaba numa cova. Na tristeza você fica recluso. E na loucura... tudo acaba num maldito quarto branco e você vestindo uma camisa de força. A ordem desses fatores pode não estar certa, mas o que descrevi é a mais pura verdade. Eu oriento vocês: Não sigam essa vida. Não é como nos jogos de RPG ou nos filmes. Digo isso para que não acabem como Morris e Jack. Ser caçador não é desbravar um mundo com pozinho mágico e fantasia como nos contos de fada. Ser caçador é trilhar um rumo perigoso e carregar nas mãos um oceano de sangue. Não é diversão ser caçador, é responsabilidade e, principalmente, um fardo. 

Até o próximo caso. 

                                                                                      -x- 


Nota do autor: Os enfermeiros não serem afetados pela nuvem invisível do Zeta tem uma explicação. Ela só é efetiva à pessoas com séria propensão a um estado psíquico frágil que pode levar a demência e/ou esquizofrenia. Caçadores se enquadram nesse grupo. Frank é um personagem forte, um caçador forte, mas sua mente tem seus limites, limites estes que um ser humano despreparado a um mundo de sombras e terror nem chegaria a alcançar.


*A imagem acima é propriedade de seu respectivo autor e foi usada para ilustrar esta postagem sem fins lucrativos. 



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